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Claúdio Salles

Claúdio Salles

Com o tema "Homicídios e fluxo do sistema de justiça criminal brasileiro" o NEVIDH EM PAUTA, apresentado por Letícia Paiva Delgado (NEVID-UFJF E NSD-UFF) trás como convidado especial,   nessa sexta, dia 24 de abril ,  o pesquisador Michel Lobo (INCT/INEAC). Acompanhe a live pelo instagram, às 18 horas, no endereço @nevidh.ufjf 

 

 

 Está aberto até o dia 04/05/2020, , o prazo para submissão de resumos para o Simpósio de Pesquisa Pós-Graduada (SPG) 43 - "Rituais judiciários, profissões jurídicas, sistema de justiça e pesquisa empírica no e/ou do direito em diálogo com a antropologia e a sociologia", que acontecerá no 44º Encontro Anual da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), marcado para 8 a 11 de setembro de 2020, na UFABC em São Bernardo do Campo, SP.

O Simpósio de Pesquisa Pós-Graduada (SPG) 43 - "Rituais judiciários, profissões jurídicas, sistema de justiça e pesquisa empírica no e/ou do direito em diálogo com a antropologia e a sociologia" é coordenado pelos pesquisadores do INCT/INEAC Michel Lobo e Fabio Medina .

Outros detalhes acessem o site : https://www.anpocs2020.sinteseeventos.com.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=2339

 

 

 

Publicamos aqui no site do INCT/INEAC o artigo VELHA ORDEM:  A cidadania vertical no Brasil e o coronavírus ,  publicado no LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL ( https://diplomatique.org.br/a-cidadania-vertical-no-brasil-e-o-coronavirus/) e escrito pelo pesquisador do INCT-InEAC/UFF Marcelo da Silveira Campos é doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD e professor convidado da Faculdade de Medicina da USP. Confira abaixo .

 

VELHA ORDEM

A cidadania vertical no Brasil e o coronavírus

por Marcelo da Silveira Campos
17 de Abril de 2020
 

Isolamento parcial, ou vertical como vem sendo denominado, consiste essencialmente em retirar das relações sociais somente os grupos mais suscetíveis à mortalidade pela Covid-19 como, por exemplo, as pessoas acima de 60 anos e portadores de condições de risco como hipertensão, diabetes, doenças respiratórias. A defesa do atual presidente Bolsonaro por essa medida, na base do discurso bolsonarista, toma como justificativa a “volta ao trabalho” em massa. É precisamente isso que fez insuflar as pequenas (ainda bem) carreatas em 12 de abril a favor da “volta ao trabalho” ou ainda o encontro o “corpo a corpo” do presidente, em Goiânia, com alguns apoiadores um dia antes. Entretanto, em constantes reuniões e pronunciamentos no Planalto, diga-se muitas vezes contrárias às diretrizes do próprio Ministro da Saúde – demitido, aliás, pela defesa do isolamento horizontal – e da Organização Mundial da Saúde, as autoridades federais admitem que não há qualquer estudo para justificar tal orientação e que o pico da Covid (hoje com mais de 30 mil casos confirmados e oficialmente registrados) será em maio. No dia 14, novamente, o presidente distorceu a declaração do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, ao questionar a quarentena e dizer que ele está certo na condução da crise. 

Sabemos bem, diariamente desse contexto particular, lamentável e muito específico do Brasil: o país deve ser um dos poucos mantém um chefe de Estado dizendo para pessoas “irem trabalhar” concomitantemente com o número de casos aumentando vertiginosamente dia após dia . Entretanto, o que quero chamar a atenção para reflexão é que a ideia do isolamento vertical, contudo, não é (nem nunca foi) nova no Brasil. Especialmente, quando nós relacionamos essa proposta de isolamento ao que denomino neste texto como cidadania vertical no Brasil. Em termos sucintos, podemos dizer que a cidadania é vertical no Brasil porque ela, desde sempre, é uma cidadania fundamentalmente hierarquizada: os grupos privilegiados, que constituem uma pequena parcela da população, possuem a maioria dos recursos sociais, jurídicos, econômicos e simbólicos para exercer a diferenciação e reproduzir a desigualdade no espaço público e no espaço privado; por outro lado, a maioria da população – as classes menos privilegiadas que compõem fundamentalmente o mercado de trabalho dos serviços domésticos, trabalhadores da indústria de bens e serviços, trabalhadores do mercado informal e os profissionais da saúde que atuam na ponta das redes de assistência em saúde e social – não detém os mesmos recursos sociais, jurídicos e econômicos para exercer os direitos no espaço público e privado, ou seja, para ser e exercer uma cidadania horizontal. 

 

Ora, como se sabe é a composição do nosso mercado de trabalho durante o século XIX, constituído basicamente pela escravidão massiva de negras e negros, que fez uma cidade como a do Rio de Janeiro ter aproximadamente 50% da população formada por escravos. É do mesmo século XIX que uma das primeiras obras consideradas sociológicas no país – Os sertões de Euclides da Cunha – descreve como, na recém-república, a forma como Canudos atraiu centenas de nordestinos pobres despertando a ira dos grandes fazendeiros e da elite política localista: morreram mais de 15 mil pessoas no país sendo a grande maioria, os pobres e pardos.   

 

Chamo a atenção para esses dois pontos porque, no meu entender, eles estão articulados na reação sociopolítica à Covid-19; e constituem, hoje, o maior risco para o alastramento da doença em nosso território e um novo genocídio da população pobre e periférica do país. Em outras palavras: a defesa política do isolamento vertical (e os seus defensores) representam o maior risco à nossa democracia, bem como, representam a continuidade e reprodução do que proponho aqui como uma cidadania vertical. 

Logo, como consequência, os trabalhadores das classes médias altas e altas continuarão em seus isolamentos horizontais, trabalhando no chamado home office, e tomando as medidas de não exposição pública necessárias para todas e todos. Em contrapartida, o isolamento vertical atingirá majoritariamente os moradores das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras, os trabalhadores da saúde que dedicam suas vidas ao trabalho na ponta da saúde pública e assistência social, os empregados domésticos, os 12 milhões de desempregados e, evidentemente, os encarcerados nas masmorras superlotadas de todos os nossos estados. Estes sim estarão expondo – novamente, aliás – suas vidas ao isolamento vertical. E, mais uma vez, retomará a cidadania vertical no país. 

 

Nas comunidades do Rio de Janeiro, por exemplo, pelo menos sete mortes (notificadas oficialmente) foram registradas em cinco favelas: Rocinha, Vigário Geral, Maré, Manguinhos e Cidade de Deus. É nesse contexto que agora ocorrem as medidas de “higienização” nas comunidades, novamente, onde são alvos privilegiados (como já os são cotidianamente nas operações policiais e sistema prisional) as populações e classes “mais perigosas”: corpos negros, pobres e periféricos. Há, nesse ponto, ainda uma associação entre perigo e a “volta ao trabalho”: se rearticula um discurso de “isolamento” para as comunidades e favelas – “é lá que está o perigo” – ao mesmo tempo que sabe-se que neste momento lá está a maior dificuldade de acesso à renda, educação, saúde e posição home office no mercado de trabalho. Que evidentemente será desigualmente distribuída por raça, gênero e posição social.  

 

Os dados oficiais da pandemia divulgados nesta semana à pedido da Coalização Negra por Direitos (e mais 150 entidades) revelam justamente, com base no último boletim epidemiológico, o que nós sempre soubemos: o coronavírus é muito mais letal entre nós negros, como aponta Tay Cabral. O percentual de óbitos de negros e negras é 32,9% maior que o de pessoas negras hospitalizadas (23,1%). E o mais importante é que 67% dos brasileiros negros dependem integralmente do SUS. Ou seja, não possuem recursos materiais, simbólicos e privados para o tratamento da Covid-19. O Cadúnico (cadastro necessário para os acessos aos programas sociais e rendas mínimas) tem 71,5% de negros, com renda média de R$ 285 por mês. Quando correlacionamos gênero, classe e raça no Brasil, iremos observar que 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza. 

Lembre-se da “divisão sexual do trabalho” relacionada à distribuição diferencial de homens e mulheres no mercado de trabalho e nas profissões associadas prioritariamente à divisão desigual do trabalho doméstico entre os sexos. São desigualdades sistemáticas e reproduzidas a partir de hierarquizações associadas, especialmente, ao trabalho informal e às trabalhadoras da saúde. O isolamento horizontal, logo, é uma medida somente posta para os mais ricos e com capital cultural em todos os países do globo. Entretanto, a especificidade da cidadania vertical no Brasil é que a defesa explícita do isolamento vertical pode vir a ser enunciada pelo Poder Executivo porque para uma parcela da população brasileira o direito à vida, à saúde, à integridade física do corpo – os chamados direitos civis e sociais – só podem ser aceitos e legitimados para uma pequena parcela privilegiada. Que, evidentemente, estará menos exposta ao coronavírus.

 

Afinal de contas, essa é a história de nossa composição do mercado de trabalho formal após a escravidão nos grandes centros urbanos. Essa também é a nossa história – que só começou a mudar poucos anos atrás – com a educação superior, com os cursos de medicina e direito instaurados em poucas capitais para que voltado para as classes altas, compostas de homens brancos. Que constituíam, ao mesmo tempo, a elite política, jurídica e econômica de nosso país. Aliás, essa é também a história dos nossos direitos humanos, onde, os presos oriundos das classes médias e altas intelectualizadas compunham as motivações para as grandes campanhas para a defesa dos direitos humanos. Enquanto os chamados “presos comuns” – vejam que apenas no Brasil essa expressão pode ser verbalizada – ocupavam e morriam nas masmorras brasileiras.

Ora, a defesa do isolamento horizontal, portanto, igualmente distribuído para os diferentes grupos, setores e classes sociais da população – com todos submetidos à mesma medida de quarentena – é algo mais do que necessário. É uma afirmação de cidadania universalizante no Brasil. 

 

Mas infelizmente inconcebível para boa parte dos setores privilegiados. Trocando em miúdos como nos ensina a canção do Chico: o isolamento horizontal está relacionado fundamentalmente a uma concepção prática no espaço social – público e privado – de exercício de uma cidadania plena (parafraseando Parsons no sempre necessário texto sobre a “Cidadania plena para um americano negro”) para todas e todos. O que em nossa história republicana continua a ser tarefa urgente a ser construída e reconstruída cotidianamente: uma cidadania plena para os brasileiros, especialmente, para os negros e negras, os periféricos, as empregadas domésticas, as trabalhadoras da saúde que não querem mais nada de vertical. E sim horizontalidade.      

1  HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad. Pesqui.,  São Paulo , v. 37, n. 132, p. 595-609, Dec. 2007.

2 Parafraseando Parsons no sempre necessário texto sobre a cidadania plena, nos EUA, para os negros.  PARSONS, Talcott. ([1965] 1993), “Cidadania plena para o americano negro? Um problema sociológico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 8, n. 22, p. 32-61.

Marcelo da Silveira Campos é doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD e professor convidado da Faculdade de Medicina da USP. Pesquisador do INCT-InEAC/UFF. 

* Uma versão sucinta deste texto foi publicada no Boletim “Cientistas Sociais e o Coronavírus” publicados em uma ação conjunta da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM).

 

Publicamos aqui o artigo da antropóloga Jacqueline Muniz, pesquisadora vinculada ao INCT/INEAC, intitulado A VONTADE DE PODER DA SANTÍSSIMA TRINDADE BOLSONARIANA NA CRUZADA CONTRA OS MENSAGEIROS DO COVID-19.


Há um cálculo na jogada da Santíssima Trindade (Pai, Filho e as Fakenews). A retórica libertária antissistema-"não tô nem aí"-substitui a condução política "impura" do Estado por um comando missionário "puro" da nação. Em vez de agir como governante, age intencionalmente como um mártir destemido, independente e visionário, o ELEITO, que vive o RITO do sacrifício público das desmoralizações, xingamentos e panelaços dos eleitores para se fazer MITO.
"Ser (do) contra" o seu próprio governo é uma tática para obter um poder virtuoso acima da política corruptora da "boa ordem, da boa moral, dos bons costumes". Um jogo do ganha ou ganha de qualquer modo. Ele é a unidade na revolta: um artilheiro solitário do exército "contra tudo que tá aí", contra si mesmo se preciso manipular for. Um artilheiro, com a língua feito mira giratória, que precisa ser perseguido por todos e injustiçado pelos seus. É assim que ele ganha novas adesões. Apresenta-se como a Grande Vítima que serve de saco de pancadas no lugar do povo simples, ordeiro e trabalhador porque é o seu Grande Irmão: aquele que apanha no seu lugar para te defender e, com isso, ter o privilégio de ser sempre o primeiro a bater em você.
Ele é o combatente que, ao sobreviver a agonia de ser traído por dentro, tem a missão heroica de denunciar tudo, todos, ele mesmo. Ele, o (des)político (des)comprometido que faz e desfaz o que não fez para despolitizar o rebanho, provocando um estado de susto que alerta suas ovelhas contra as tramoias dos outros, as raposas da política. Os outros tem ideologia, ele tem a verdade revelada.
A unidade é ele, o profeta que cura o rebanho e o chefe tribal que leva a Terra sem Males. A unidade do pensamento único, totalitário-afetivo que faz crer que os ELEITORES são especiais porque foram por ele ELEITOS quando aceitaram o chamado da cruzada moral libertadora em seus corações. Foram escolhidos para viverem a sina do rebanho imunizado que reconhece a sua desigualdade como "natural" e aceita as perdas de direitos como o preço a ser pago para seguir glorioso na sanha da travessia fantasiosa para a terra prometida. Foram escolhidos para viverem diariamente as batalhas apocalípticas do juízo final porque estão curados pela palavra (des)ideologizadora. Agora, a batalha é contra o COVID e seu exército de mensageiros e devotos (STF, parlamentares, governadores, prefeitos, ministros tomados pelos demônios da OMS, mídias, esquerdistas, etc.) para salvar vida: a vida política dele que foi eleito presidente.

Publicado no site da UFRJ , reproduzimos aqui, o artigo da antropóloga Kátia Sento Sé Mello, professora do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Grupo de Pesquisa Sociabilidades Urbanas, Espaço Público e Mediação de Conflitos (GPSEM/CNPq). Pesquisadora associada ao Núcleo Cultura Urbana, Sociabilidade e Identidades Sociais (Nusis/ESS), do e Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu/Ifcs) da UFRJ e do INCT-Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos/UFF. 

O sistema prisional brasileiro no contexto da pandemia de COVID-19

Por Kátia Sento Sé Mello*

 

Foto: Imagem de Arquivo/Agência Brasil

 

A pandemia provocada pelo novo coronavírus traz à luz o papel fundamental da universidade pública, assim como o papel do Estado na manutenção de políticas públicas e do Sistema Único de Saúde (SUS). Importante, portanto, esclarecer que falo aqui como professora e pesquisadora de uma universidade pública, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordeno, juntamente com a professora Christiane Russomano Freire, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), uma pesquisa de natureza comparativa entre Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul sobre as condições e os processos sociais da aplicação do artigo 318 do Código de Processo Penal (CPP), que trata do direito à prisão domiciliar das mulheres gestantes, lactantes e mães de crianças até 12 anos de idade. Esse projeto está cadastrado no Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, sob a coordenação-geral do professor Michel Misse.

Para falarmos sobre o impacto da COVID-19 no sistema carcerário brasileiro, precisamos esclarecer que, com base nos dados do último Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), o Brasil possui, hoje, cerca de 726 mil pessoas em privação de liberdade, mas as vagas disponíveis somam apenas 436 mil (1). Do total da população carcerária, cerca de 250 mil têm algum tipo de doença. O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de países que mais prendem no mundo, ficando atrás apenas dos EUA e da China. Imaginemos um vulcão prestes a entrar em erupção quando o assunto é encarceramento no momento da pandemia de COVID-19.

A taxa de aprisionamento no Brasil entre os anos 2000 e 2016 foi de 157%, ou seja, em 2000 tínhamos uma população de cerca de 232 mil presos e hoje, 726 mil. Para mostrar o quão perverso é nosso sistema de justiça criminal, a população que potencialmente será mais atingida pela COVID-19 é negra e pobre. Basta ver que é representada por 64% da população prisional em 2016, segundo dados do último Infopen. Isto é, o novo coronavírus tem um poder destruidor no planeta, mas aqueles com menores condições de se proteger do vírus fazem parte da população negra e pobre. 

Condições insalubres potencializam a contaminação

É importante destacar que não há homogeneidade no que se denomina sistema prisional brasileiro, o que, de certa forma, aponta para maneiras distintas de se lidar com a gestão das unidades prisionais. Seja como for, a situação é gravíssima porque, como é do conhecimento de todos, as penitenciárias brasileiras, por oferecerem condições insalubres, potencializam a contaminação e a proliferação de doenças. E o problema não é somente o coronavírus, mas seu potencial de proliferação devido à existência de diversas outras doenças contagiosas que há muito tempo afetam a população carcerária e os servidores responsáveis pela organização e gestão das unidades prisionais. Estima-se que o risco de contágio de tuberculose nos presídios, por exemplo, seja 30 vezes maior do que o risco verificado na população comum. 

Com base no Infopen, a Rede de Observatórios da Segurança destaca que a proporção de presos acima das vagas disponíveis varia em cada estado. Ceará e Pernambuco parecem liderar a superlotação. Ceará tem 173% a mais, Pernambuco, 172%. Rio de Janeiro está com 70% de presos acima das vagas disponíveis. 

Ainda de acordo com esses dados, a Rede de Observatórios da Segurança chama a atenção para a disponibilidade de celas destinadas à observação de pessoas privadas de liberdade que estão doentes:

Rio de Janeiro: 12 celas de 50 unidades; Bahia: 14 de 25 unidades; Ceará: 15 de 36 unidades; Pernambuco: 16 de 76 unidades; São Paulo: 140 de 173 unidades

Vamos lembrar quais são os principais procedimentos para minimizar o risco da rápida proliferação do coronavírus no mundo: em primeiro lugar, evitar aglomerações e contato pessoal; higienização das mãos e das superfícies às quais as pessoas têm acesso; manutenção da ventilação dos ambientes; atendimento imediato daqueles que apresentam os sintomas e o seu isolamento, que, no Rio de Janeiro, se trata do pronto-socorro Hamilton Agostinho, em Bangu, que atende a população carcerária. Então, de um lado, tais orientações gerais que pressupõem um perfil de pessoas com acesso aos bens de proteção e prevenção da disseminação do vírus; do outro, as condições paradoxais em que se encontram os presídios, que favorecem o justo oposto.

As pessoas encarceradas já têm as vidas marcadas pela ausência de políticas de saúde, educação, habitação e emprego, para dizer o mínimo. Como é o ambiente prisional? É insalubre, lotado, sem ventilação, tem problemas advindos da inconstância no fornecimento de água. Em algumas unidades as celas são projetadas para 12 pessoas, mas são ocupadas por 50 ou 60. O atendimento médico é precário e os serviços técnicos de enfermagem, serviço social e psicologia sofrem em virtude de uma organização que não conta com plano de cargos e salários nem formação continuada dos servidores, também sujeitos à precariedade das unidades prisionais. Como podemos ver, as condições são propícias ao desenvolvimento e contágio de doenças dos mais diversos tipos. Ainda que houvesse servidores suficientes para atender as pessoas doentes nas unidades prisionais, de nada adiantaria, porque elas, mesmo depois de atendidas − vejam bem, não quero dizer pessoas tratadas ou cuidadas, mas apenas atendidas −, continuam no mesmo lugar onde desenvolveram as doenças.

A tuberculose, a sarna, o HIV e a sífilis são doenças comuns e não tratadas em muitas unidades prisionais no Brasil. Já sabemos quais são os fatores que contribuem para desenvolvimento e transmissão dessas doenças.

Ausência de profissionais de saúde

No sistema prisional do Rio de Janeiro, a água é um bem intermitente. Até o momento não há previsão de aumento de fornecimento de água para que as pessoas privadas de liberdade possam higienizar as mãos e, muito menos, para lavar o chão, as paredes e os objetos de uso pessoal. Como evitar aglomeração e contato pessoal se os  encarcerados dividem celas superlotadas e mais de uma pessoa compartilha a mesma cama para dormir? Tal quadro é o que tem permitido a transmissão de tuberculose, meningite e, atualmente, a presença de casos de sarampo, especialmente na Penitenciária Ary Franco, conforme identificado pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT-RJ) nos presídios. Do mesmo modo, as orientações sobre o atendimento médico qualificado batem de frente com a ausência de profissionais de saúde nas unidades prisionais. Os que existem devem dar conta de um número elevadíssimo de doentes que se encontram no cárcere. Na maioria das vezes, tendo que ser atendidos pelos servidores que atuam no cotidiano das unidades. O que dizer, ainda, da vulnerabilidade desses servidores, submetidos  ao mesmo ambiente das pessoas internas?

No último dia 13/3, o governador do estado do Rio de Janeiro emitiu um decreto que previa a suspensão de todas as visitas em unidades prisionais, mesmo as íntimas e familiares; a suspensão das visitas dos advogados e do deslocamento de presos para suas audiências. No mesmo dia, o Ministério Público pediu ao juiz titular da Vara de Execuções Penais (VEP-RJ) a suspensão das saídas de todos os presos, incluindo aqueles que cumprem regime semiaberto. Dessa forma, não somente a VEP como também o MP do estado não parecem alinhados às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das autoridades de vigilância sanitária e de saúde nacionais e internacionais.

Diversas vozes se levantaram contra tal decreto. Além do Conselho Nacional dos Defensores Públicos, outras entidades da sociedade civil apontam para o impacto da disseminação da COVID-19 não somente na população carcerária, mas em toda a sociedade. O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e outras entidades em níveis locais e nacional têm alertado para o problema e demandado determinadas medidas de contenção do vírus. A Frente Estadual pelo Desencarceramento, por exemplo, desde o dia 20/3 monitora o funcionamento do sistema prisional durante a pandemia.

O MEPCT-RJ, em 2018, redigiu o relatório Sistema em Colapso: Atenção à Saúde e Política Prisional no Estado do Rio de Janeiro, sobre o tema da saúde nas prisões brasileiras, e já havia alertado para o colapso do sistema prisional. Além disso advertiu que medidas fossem tomadas e embasadas no saber técnico, médico e sanitário. Dessa forma, o MEPCT considera que uma diretriz de desencarceramento é emergencial para a contenção dos danos provocados pela pandemia de COVID-19.

Grupos de risco devem ser transferidos para regime domiciliar

A Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por outro lado, alertaram e demandaram que sejam cumpridas medidas de atendimento à população carcerária neste momento de pandemia. Dessa forma, os defensores públicos pedem que os presos classificados como grupo de risco – idosos, hipertensos, diabéticos, portadores de doenças crônicas, gestantes ou lactantes, entre outros – possam ser transferidos para um regime domiciliar ou que sejam analisadas outras medidas alternativas. É imprescindível que haja álcool em gel 70% nos presídios, além de sabonetes e material de limpeza tanto para as pessoas privadas de liberdade como para os servidores. Devemos lembrar que o Supremo Tribunal Federal, desde 2016, estabeleceu a Súmula Vinculante nº 56, que determina critérios para a antecipação da progressão penal, por exemplo, do regime fechado para o semiaberto. Apesar disso, o mesmo relator dessa súmula, diante da pandemia do coronavírus, não considerou as alternativas penais que havia defendido na ocasião.

A pandemia atual coloca em evidência a tradição escravocrata histórica brasileira e de disputa entre os poderes. Não somente torna explícita a vulnerabilidade de segmentos da população como pobres e negros, como também a disputa política entre as diferentes esferas do poder sobre quem tem o direito de dizer qual medida de proteção deverá ser adotada. Embora tenhamos um regime de Estado Democrático de Direito no qual a Constituição de 1988 é a maior expressão, que garante formalmente princípios republicanos, nossa estrutura jurídica tradicionalmente não assegura a aplicação igualitária de direitos a todos os cidadãos. As decisões a respeito da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para agilizar a soltura de doentes crônicos, idosos com mais de 60 anos, mulheres lactantes ou grávidas, que não cometeram crime com violência, colocando aspas na definição dos crimes sem violência, não são acatadas por todos os juízes em todos os tribunais no Brasil. Determinar que eles analisem caso a caso não resolve o problema.

Grávidas e mães de crianças com até 12 anos têm tido seus direitos negados

O fato é que o chamado sistema prisional ou sistema de justiça criminal não parece um sistema, pois não somente suas diferentes instâncias de poder não conseguem concordar com as medidas necessárias para salvar a vida das pessoas encarceradas, como também não há o intercâmbio entre as diferentes instâncias no percurso que vai da prisão de alguém até a sua alocação em uma unidade. Nesse percurso muitos direitos são violados. Mulheres grávidas ou mães de crianças com até 12 anos de idade têm tido negados seus pedidos da conversão da prisão preventiva para a domiciliar, violando, de certa forma, o que determina o artigo 318 do CPP. Embasadas em valores morais, as justificativas dos magistrados nas sentenças ignoram que muitos atos considerados criminosos não implicam violência − e essas mulheres são lançadas às prisões, mais por questões morais, que incidem sobre as expectativas do papel feminino na nossa sociedade, do que propriamente pelo ato praticado.

Há que se perguntar sobre as possíveis medidas, inclusive jurídicas, que poderiam ser tomadas diante do impacto do coronavírus na população carcerária. Eu diria que, neste momento de urgência, é fundamental seguir os procedimentos aconselhados pela OMS, pelo Ministério da Saúde e por autoridades sanitárias e governos dos estados: aplicar os dispositivos legais que levam ao desencarceramento de pessoas vulneráveis. É urgentíssimo que aqueles com maior vulnerabilidade no sistema prisional tenham a liberdade garantida para serem tratados em casa. No entanto, em longo prazo, toda a política prisional no Brasil e no mundo precisa ser repensada, inclusive a própria noção de crime. No país, observamos que foi ampliado o número de comportamentos  classificados como criminosos, o que contribui largamente para o maior encarceramento da população pobre, jovem e negra.

Seletividade penal

 

Foto: Acervo pessoal

 

No Brasil, em particular, que possui uma sociedade forjada na realidade da escravidão, o punitivismo e a violência têm sido os norteadores das decisões políticas dos magistrados e governantes, assim como das instituições de controle da criminalidade e segurança pública. Há cinco séculos, o punitivismo e a violência mostram-se ineficazes. O encarceramento em massa segue a lógica da seletividade penal: joga nas prisões, sobretudo, uma população jovem, negra e pobre, cujas condições de existência já a destituíram do usufruto de bens e riquezas que podem ser produzidos pela sociedade. Temos outras alternativas? Sim, temos.

Precisamos construir um projeto de sociedade que contemple políticas públicas em todos os níveis da vida humana: saúde, educação, habitação, trabalho, assistência e previdência. A pandemia da COVID-19 demonstrou a necessidade premente dessas políticas, além de ser um divisor de águas para repensarmos nosso projeto de civilização. 

E o que dizer da política antidrogas no Brasil? Enquanto houver proibição do consumo e mais punição, nunca romperemos com a cadeia perversa que joga diversos jovens em uma rede de violências entre si e com os agentes da segurança pública. A atual política antidrogas serve para deixar nas cadeias pessoas que, em maior parte, são  jovens, negros e pobres; ou seja, a lei antidrogas é também seletiva. No Rio de Janeiro, os principais motivos que levam as mulheres à prisão são o envolvimento em contextos do tráfico de drogas, seguido por roubo e furto, que representam crimes contra o patrimônio. O que isso significa? Elas não cometeram nenhum crime violento contra a pessoa, cuja máxima expressão é o homicídio. Sendo assim, algumas das medidas para evitar o encarceramento em massa e os sérios problemas advindos da pandemia são: a descriminalização de drogas ilícitas, a despenalização e, mesmo, a extinção de certas condutas das leis penais.

Outras medidas de longo prazo, mas urgentes, são aquelas destinadas ao desarmamento dos conflitos −  não quero dizer a eliminação dos conflitos, já que eles são constitutivos da vida em sociedade. Falo sobre a ampliação de experiências de formas não violentas de administração dos conflitos. Em algumas unidades prisionais no sul do Brasil, a experiência da justiça restaurativa tem promovido um reconhecimento maior da dignidade da pessoa presa. A justiça criminal deve dar lugar a formas de conciliação e reparação mobilizadas pela própria sociedade, assim como ao desenvolvimento de formas terapêuticas para o acolhimento de submetidos ao sofrimento em sua condição existencial e prisional. 

(1) Total da população prisional no país: 726.354. Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho /2017; IBGE, 2017. Dados referentes a dezembro de 2016. Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/i....

* Kátia Sento Sé Mello é professora do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Grupo de Pesquisa Sociabilidades Urbanas, Espaço Público e Mediação de Conflitos (GPSEM/CNPq). Pesquisadora associada ao Núcleo Cultura Urbana, Sociabilidade e Identidades Sociais (Nusis/ESS), do e Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu/Ifcs) da UFRJ e do INCT-Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos/UFF. Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).  

O site do INCT/INEAC reproduz aqui o artigo "O coronavírus evidencia as desigualdades estruturais de nossa sociedade", publicado no Blog Ciência e Matemática do O GLOBO = https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/o-coronavirus-evidencia-desigualdades-estruturais-de-nossa-sociedade.html ,  escrito pelos pesquisadores Roberto Kant de Lima, com Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo e Flávia Medeiros . 

 

VÍRUS E DESIGUALDADES SOCIAIS

O coronavírus evidencia as desigualdades estruturais de nossa sociedade

O paradoxo da pandemia na República: um pandemônio nos conflitos entre a saúde pública, estratégias eleitorais e a governança “do povo para o povo”?

Roberto Kant de Lima, com Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo, Flávia Medeiros, respectivamente coordenador e pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).

 

Nos últimos anos temos nos dedicado a pesquisar as representações e práticas do direito no Brasil e em outros países ocidentais. Esse contraste tem nos mostrado como o direito brasileiro hierarquiza a nossa população em termos de direitos. Ou seja, entre nós, apesar dos preceitos constitucionais republicanos, não há uma estrutura jurídica ordinária que garanta o exercício de um mínimo de direitos comuns a todos os diferentes cidadãos. O que há é a aplicação de um conjunto de privilégios atribuídos a certos segmentos da sociedade, sejam eles detentores do capital ou trabalhadores. A diferença em relação às demais sociedades ocidentais é, portanto, que nelas a desigualdade é vista como um problema. A inexorável desigualdade econômica produzida pelo o mercado é que deve gerir as desigualdades sociais, e o sistema jurídico deve atuar para mitigá-las. Já aqui a desigualdade está inscrita no próprio sistema jurídico, como parte integrante e indispensável dele, sistematizando juridicamente as desigualdades sociais, políticas e econômicas. Essa naturalização da desigualdade jurídica, anterior à desigualdade econômica, é um obstáculo ao funcionamento regular e regulado do mercado e uma expressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada, constituindo-se também em referência e suporte para sua reprodução, onde pode florescer um individualismo perverso, que nunca se identifica com o “outro”, mesmo que este seja seu semelhante.

 

Essa pandemia coloca em evidência mais uma vez essa naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus diferentes níveis. Inicialmente, as chamadas medidas sanitárias – lavagem constantes das mãos com água e sabão – e restritivas de circulação, como a necessidade de praticarmos um “isolamento social” - o qual, na verdade, é um confinamento social que de isolamento nada tem - coloca o foco na suposição de que todos temos, de maneira uniforme, o exercício de um direito mínimo à moradia e ao saneamento, o que não é verdadeiro. O problema habitacional no Brasil faz com que nos deparemos com infraestruturas urbanas altamente precarizadas no que tange à mobilidade urbana e ao saneamento, como por exemplo, as das denominadas favelas ou “comunidades”, existentes em toda a região metropolitana do Rio de Janeiro e também em outras de nossas cidades e metrópoles. A inexistência de políticas públicas devotadas ao planejamento urbano que propicie o exercício deste direito hoje evidencia uma enorme distância entre os segmentos da classe média urbana e os segmentos menos favorecidos da população no que tange ao seu bem estar no espaço doméstico.

 

Esta desigualdade se manifesta, ainda, no fato de que os segmentos superiores da sociedade, além de poder ficar no conforto de suas casas, podem deslocar-se para as casas de campo e veraneio, confinando-se com suas famílias. Claro que também contando com toda a estrutura de empregados e serviços à disposição, mostrando a total falta de solidariedade e de compaixão com a situação dos trabalhadores domésticos. Confinamento este que também impõe dificuldades suplementares principalmente às mulheres nessa nova conformação social, como a sobrecarga do trabalho doméstico, das mães que tomam conta sozinhas dos filhos, e no seu efeito perverso, que é o aumento do registro de casos de violência doméstica e de feminicídios, o que nos faz refletir sobre as condições sociais e emocionais que definem o "lar" e a casa, ambientes vinculados aos papéis sociais das mulheres e que se tornam o principal terreno para a emergência dos conflitos.

 

Em segundo lugar, a pandemia torna explícita nossa tradição escravocrata ao colocar em risco pessoas e setores mais vulneráveis da sociedade que hoje se encontram numa condição ainda mais precária e perigosa quanto ao seu direito ao trabalho, bem como a sua segurança sanitária, já que milhões de trabalhadores e trabalhadoras são obrigados de forma desumana a cumprirem suas jornadas de trabalho, deslocando-se por meio de precária e congestionada rede de transportes públicos, inclusive sem as proteções sociais e sanitárias necessárias nesse momento de crise, tudo isso estimulado por uma espantosa propaganda governamental alheia às prescrições mínimas de segurança sanitária e do trabalho, ao arrepio do resto do mundo.

 

As comparações com outros contextos têm se concentrado na (in) capacidade de acolhimento da infraestrutura de saúde. Mas os regimes de proteção social e do trabalho das democracias europeias são muito uniformes e presentes no cotidiano dos cidadãos e funcionam como articuladores de políticas em nível nacional. Em contraste, no Brasil, as medidas restritivas severas adotadas pelos governadores dos estados têm atingido apenas uma pequena parcela da sociedade que tem acesso a direitos como moradia, saneamento, saúde e trabalho. Já as políticas do governo federal têm ido na direção de que os cidadãos podem lidar com seus recursos próprios com as consequências imprevisíveis do contágio.

 

Finalmente, a crença na eficácia das políticas com ênfase repressiva na saúde e na segurança, seja de “tratamento de doenças”, seja do “tiro, porrada e bomba” – sempre para os “outros” - são condições que dificultam a adoção de medidas preventivas com adesão universal da sociedade. A falta de proteção no trabalho e a falta de confiança nas autoridades públicas limitam a difusão de políticas restritivas compreensíveis para a sociedade, provocando seu descumprimento, seja por necessidade, seja pela arrogância daqueles que se acham acima da lei e das regras, que devem se aplicar apenas aos “outros”, muito difundida entre nós, mas mais explícita nos segmentos hierarquicamente superiores de nossa sociedade.

 

Para complexificar mais ainda o problema, essas medidas se tornaram objeto de disputa política, em um governo federal que se alimenta de crises para fortalecer-se no poder e ocultar seus eventuais descaminhos. Utilizou-se desde a campanha eleitoral de estratégias negacionistas, de desqualificação sistemática e universal dos contendores e dos seus argumentos, replicando a lógica medieval da disputatio, tão cara ao nosso direito processual e à formulação do saber jurídico nacional. Encerrado o período eleitoral, no entanto, prosseguiu governando de modo virtual com essa lógica nas mídias sociais, desprezando práticas de criação de consensos e união de esforços para formular, propor, aprovar e implementar políticas públicas. Mas a negação do conhecimento científico, o ataque sistemático à necessidade e qualidade dos serviços públicos chocou-se com a realidade de uma pandemia, fenômeno que ultrapassa em muito as fronteiras mesquinhas dessa luta política eleitoral.

 

Um ponto relevante a se notar é a banalização com que essa estratégia de implementação de ações governamentais tem se sustentado. Recentemente revogou-se parcialmente uma Medida Provisória (MP) no que se referia à suspensão do contrato de trabalho sem salário, atribuindo-se essa normativa esdrúxula, no meio de uma pandemia, a um “erro de redação”. Ora, isto mostra a inabilidade desta gestão em relação às regras de funcionamento da própria burocracia institucional, coisa que já vimos discutindo há tempos no que se refere às instituições de segurança pública. Desprezam-se as regras e menosprezam-se os protocolos porque não se acredita na eficácia da racionalidade burocrática. A burocracia que é, antes de tudo, uma memória e uma proteção protocolar das prerrogativas e decoro dos governantes e do direito de governados, é vista como um empecilho para a tomada de decisões, por impedir o exercício arbitrário da autoridade. Uma leitura possível desse “erro” é a de falta de articulação com os empresários e trabalhadores para se elaborar uma MP pertinente para a situação atual. Outra leitura possível é a de uma tentativa de controlar a pauta do debate público, em uma já conhecida estratégia desse governo em produzir crises de forma sistemática para desviar-se de temas negativos a sua imagem, e/ou uma tentativa de pressionar as instituições, na base do “se colar, colou”.

 

Por outro lado, seja lá de quem for sua autoria, ela revela valores resilientes dessa matriz escravocrata da sociedade brasileira que, reiteradamente, em diferentes circunstâncias, como já dito, demonstra seu desprezo pelos direitos de cidadania de determinados setores da sociedade brasileira, ainda vistos como um seu segmento hierarquicamente inferior. Essa MP é uma forma moderna e institucional de reproduzir a lógica do trabalho escravo, ainda, infelizmente, tão presente em nossa sociedade, na contramão das necessárias políticas de apoio governamental urgente a empresas que não demitam e aos trabalhadores autônomos e desempregados, estratégia que vem se universalizando entre os países atingidos.

 

Esta experiência coletiva das medidas sanitárias restritivas e os prejuízos sociais e humanos, provavelmente, muito desiguais entre os poucos com proteções sociais e os muitos sem nenhuma, produzirá reflexões sobre o papel da política profissional; dos investimentos nas políticas sociais e proteção ao trabalho; do papel da ciência na sociedade e na produção de políticas públicas — especialmente, mas não exclusivamente, de saúde pública, representada pelo SUS — e no bem estar social. Como o vírus, apesar de atingir de modo mais óbvio os pobres, também atinge a classe média e os ricos, todos dependentes das pesquisas públicas de produção de diagnósticos e de vacinas, essa circunstância pode explicitar com mais eficiência a relevância da ciência, da educação e da saúde públicas em nosso país e na própria reprodução do sistema capitalista.

 

Por outro lado, devemos considerar que nosso mundo é feito de crises. Vivemos sistematicamente em crises, pois essa foi a opção econômica, política e social que a sociedade ocidental escolheu. Prognósticos para o futuro costumam ser projeções de eventos passados mas, aparentemente, este é um evento – e um vírus – com características ainda desconhecidas.

 

Então, quem sabe iremos acentuar ainda mais nosso fechamento para o outro, com o reforço de ideologias nacionalistas e territorialistas – pautadas pela ideia de que “farinha pouco, meu pirão primeiro” – ou, pelo contrário, iremos produzir um sentido de universalidade da humanidade que confira às práticas sociais um outro modo de fazer a sociedade, fundada na compreensão de que somos uma coletividade planetária? Mas isso, só o futuro nos dirá.

O invisível bate à porta: crise econômica deflagrada pelo novo coronavírus evidencia tradição escravocrata do Brasil, denunciam pesquisadores da UFF

 

Fecharam escolas e universidades. Teatros, cinemas, casas de show. Praias, parques públicos e alguns dos acessos à cidade. As pessoas se recolheram para dentro de casas e quase já não se pode mais ouvir barulhos nas calçadas, antes movimentadas e apinhadas de gente. Ainda assim, de tempos em tempos, se escuta o rangido de alguma moto atravessando a avenida em alta velocidade. São eles: os entregadores de serviços por delivery. Passam pelos condomínios deixando refeições sem que ninguém os veja, pois assim é mais “seguro” – invisíveis, como o vírus que todos passaram a temer.

Esse poderia ser o trecho de algum livro de ficção científica fantasiado por um escritor no passado remoto da humanidade; pelo contrário, retrata de forma crua a mudança abrupta que se instaurou, em escala planetária, nos modos de organização da vida em sociedade, desde a emergência da pandemia do COVID-19 no mundo.

No Brasil, em especial, que tem buscado se adaptar a essa nova realidade, mais recentemente em comparação com outras nações, tem chamado a atenção de pesquisadores uma questão, dentre tantas outras emergentes no momento, sobre as desigualdades estruturais que estão na base da nossa organização social e que sinalizam para como temos, até agora, vivenciado essa situação de crise.

O entregador do delivery que chega às nossas casas, se expondo à contaminação e sem receber um adicional de insalubridade por isso, por exemplo, é uma peça-chave para a compreensão desse cenário.

Convidados a abrir uma discussão com a comunidade universitária e a sociedade civil sobre o assunto, os professores Roberto Kant de Lima, Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo e Flávia Medeiros, respectivamente coordenador e pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da UFF – INCT-InEAC, assim como o professor do Departamento de Economia da Universidade, Ruy Afonso de Santacruz Lima, desenvolveram algumas reflexões em torno do tema.

Nas sociedades normalizadas, a previsibilidade é uma característica essencial do funcionamento do mercado e a imprevisibilidade atual abala profundamente seus fundamentos. Já no Brasil, onde o imprevisto é a regra, e o mercado não funciona como nas sociedades ocidentais mais avançadas, seria a solidariedade (como descrito no recente discurso da chanceler alemã Angela Merkel), que poderia alargar esse horizonte de previsão possível. - Equipe do INCT-InEAC

De acordo com o grupo de pesquisadores do INCT-InEAC, “a pandemia torna explícita nossa tradição escravocrata ao colocar em risco pessoas e setores mais vulneráveis da sociedade que hoje se encontram numa condição ainda mais precária e perigosa quanto ao seu direto ao trabalho, bem como sua segurança sanitária, já que milhões de trabalhadores e trabalhadoras são obrigados de forma desumana a cumprirem suas jornadas de trabalho, inclusive sem as proteções sociais e sanitárias necessárias nesse momento de crise”.

Essa precarização progressiva das condições de trabalho estão relacionadas, como descreve o professor Ruy Santacruz, ao fenômeno de “uberização do trabalho”, que têm atraído muitas pessoas para empregos sem carteira assinada e que constitui uma tendência em todo o mundo, em especial no Brasil. De acordo com o economista, embora condições precárias de trabalho não  sejam exatamente uma novidade no país, o aumento do desemprego muito aceleradamente desde 2013 gerou as condições para a formação de uma grande massa de trabalhadores informais, a exemplo dos entregadores de delivery.

O processo de ‘uberização’ do trabalho no Brasil, explicam os professores do INCT-InEAC, “não vem associado ao desenvolvimento dos direitos de cidadania, do exercício do trabalho livre e autônomo, mas, pelo contrário, acentua a precariedade dos direitos trabalhistas e das relações entre patrão e empregado, tornando essa forma ainda algo mais perversa que a da escravidão. Isso porque no sistema escravocrata o Senhor devia, por direito e interesse, assegurar a vida e um relativo bem-estar para a sobrevivência de sua propriedade, de seus escravos. Nessa escravidão contemporânea, esses prestadores de serviço são colocados em uma situação de total desamparo, com a inexistência de segurança trabalhista por parte de seus empregadores e da proteção do Estado quanto ao exercício de seus direitos”, enfatizam.

Não haveria, então, “uma estrutura jurídica para garantir um mínimo de direitos comuns a todos os diferentes cidadãos, mas um conjunto de privilégios atribuídos a certos segmentos da sociedade, sejam eles detentores do capital ou trabalhadores. Essa naturalização da desigualdade jurídica é expressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada e, portanto, também referência e suporte para sua reprodução. A pandemia coloca em evidência mais uma vez a naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus diferentes níveis”.

Com esse abismo de condições de vida separando a massa de trabalhadores informais das classes médias e das elites, são também muito distantes entre si as possibilidades de vivência e superação desse período de crise por parte desses grupos sociais. De acordo com a equipe de pesquisadores, “as chamadas medidas restritivas de circulação e a necessidade de praticarmos um ‘isolamento social’ coloca o foco na suposição de que todos temos o exercício de um direito mínimo à moradia, o que não é verdadeiro. O problema habitacional no Brasil faz com que nos deparemos com infraestruturas urbanas altamente precarizadas, como por exemplo, as das denominadas favelas ou ‘comunidades’”.

Em contraste, “os segmentos superiores da sociedade, além de poder ficar no conforto de suas casas, podem deslocar-se para as casas de campo e veraneio, se "isolar" com suas famílias. Claro que com toda a estrutura de empregados e serviços à disposição, mostrando a total falta de solidariedade e de compaixão com a situação com os trabalhadores domésticos”, destacam.

Além disso, os pesquisadores mencionam as dificuldades impostas às mulheres nessa nova conformação social, como a sobrecarga do trabalho doméstico por parte das mães que tomam conta sozinhas dos filhos. Como efeito perverso desse confinamento, destaca-se o aumento do registro de casos de violência doméstica e de feminicídios, “o que nos faz refletir sobre as condições sociais e emocionais que definem o ‘lar’ e a casa, ambientes vinculados aos papéis sociais das mulheres e que se tornam o principal terreno para a emergência dos conflitos”.

Existe também outro fator ressaltado pelos pesquisadores que torna essa situação de crise ainda mais dramática para os trabalhadores informais: a falta de confiança nas autoridades públicas. Somada à falta de proteção no trabalho, gera-se uma significativa limitação da difusão de políticas restritivas compreensíveis para a sociedade. Isso provocaria o descumprimento dessas políticas, “seja por necessidade, seja pela arrogância daqueles que se acham acima da lei e das regras, comum aos segmentos superiores de nossa sociedade. Para complexificar mais ainda o problema, essas medidas se tornaram objeto de disputa política, em um governo federal que se alimenta de crises para fortalecer-se no poder e ocultar seus eventuais descaminhos”.

De acordo com o professor de economia Ruy Santacruz, caberia, frente a esse cenário, a adoção em caráter de urgência por parte do governo de medidas como “aumentar o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família, dobrar o seu valor, criar um mecanismo de renda extra para trabalhadores autônomos, suspender o pagamento de água, luz, gás e aluguel para trabalhadores de baixa renda (medidas já adotadas pelo governo francês), suspender cobrança de impostos das empresas para evitar que lancem mão de demissões em massa, conceder crédito subsidiado para capital de giro das empresas, entre outras coisas”, ressalta.

Já os pesquisadores do INCT-InEAC apontam para a necessidade de estabelecer uma ponte com os políticos profissionais, que seriam capazes de articular os atores sociais indispensáveis para coordenar as ações coletivas. “Esperemos que os senadores, deputados, vereadores, prefeitos e governadores possam estar à altura deste desafio de articular as ações com o apoio de outras instâncias estatais, como o judiciário e os operadores do direito. Afinal, precisaremos dominar a lógica burocrática operada pelos juristas para acelerar processos de aquisição de bens e legitimar medidas emergenciais. Ações da sociedade civil são também importantes, mas necessitam de apoio e coordenação por parte do Estado. O aparato estatal é capilarizado e poderia distribuir melhor os recursos dessas iniciativas”. 

Em tom de grande preocupação e também de esperança, a equipe concluiu dizendo que: “o futuro depende de nossas decisões, que produziremos coletivamente agora. Os indicadores comparativos existentes não são positivos. Ainda precisamos avaliar os impactos das medidas sanitárias restritivas e não sabemos se somos suficientemente solidários para evitar uma tragédia humanitária. Devemos considerar que nosso mundo é feito de crises. Vivemos em crises sistemáticas, pois essa foi a opção econômica, política e social que a sociedade ocidental escolheu. Prognósticos para o futuro costumam ser projeções de eventos passados mas, aparentemente, este é um evento – e um vírus – com características desconhecidas. Nas sociedades normalizadas, a previsibilidade é uma característica essencial do funcionamento do mercado e a imprevisibilidade atual abala profundamente seus fundamentos. Já no Brasil, onde o imprevisto é a regra, e o mercado não funciona como nas sociedades ocidentais mais avançadas, seria a solidariedade (como descrito no recente discurso da chanceler alemã Angela Merkel), que poderia alargar esse horizonte de previsão possível. Então, quem sabe iremos acentuar ainda mais nosso fechamento para o outro, com o reforço de ideologias nacionalistas e territorialistas – pautadas pela ideia de que “farinha pouco, meu pirão primeiro” – ou, pelo contrário, iremos produzir um sentido de universalidade da humanidade que confira às práticas sociais um outro modo de fazer a sociedade, fundada na compreensão de que somos uma coletividade planetária. Mas isso, só o futuro nos dirá”, concluem.

Prezados/as candidatos/as e orientadores/as,

 

Comunicamos com satisfação o resultado da seleção da chamada interna para bolsas em nível de mestrado, no âmbito do INCT InEAC.

 

Recebemos 6 candidaturas para bolsas de 12 meses e 3 para bolsas de 4 meses.

 

Em relação às primeiras, uma candidatura foi indeferida porque infelizmente o programa não se adequava às novas exigências da CAPES para concessão de bolsas apenas a cursos 5, 6 ou 7 e uma outra candidatura, durante processo, foi retirada pelo candidato porque o mesmo foi beneficiado com bolsa através do próprio programa (PPGD/Unb).

 

Sendo assim, a banca avaliou a documentação enviada e, considerando os recursos existentes, deliberou pela aprovação de todas as candidaturas. Sendo o resultado:

 

Bolsas de 12 meses:

  1. Cibele de Souza    (PPGCC/PUC) - Orientador: Rodrigo G. Azevedo
  2. Paulo Roberto Leite Junior (PPGJS/UFF) Orientadora: Luciane Patrício
  3. Thays dos Santos Pinto (PPGJS/UFF) Orientadora: Mirian Alves
  4. Paloma Rodrigues Moreira (PPGJS/UFF) Orientadora: Luciane Patrício

 

Bolsas de 4 meses (finalização da dissertação):

  1. Andresa Pereira de Sena    PPGS/Unb Orientadora:    Haydee Caruso
  2. Gabriela Costa Carvalho    PPGS/Unb Orientadora:    Haydee Caruso
  3. Leonardo Vieira Silva    PPGA/UFF Orientadora: Ana Paula Mendes de Miranda

 

Esclarecemos que não recebemos solicitações de bolsas de doutorado.

 

IMPORTANTE: Para implementação das bolsas precisamos que até quinta-feira nos enviem seus respectivos CPF, e a IES e PPGS com o respectivo código da CAPES, para o endereço Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

 

Desde já muito obrigado e parabéns!

Ficamos a disposição para quaisquer esclarecimentos.

 

 

 

 

Roberto Kant de Lima

 

Lucía Eilbaum

 

O blog da REDESCAL (Red de Estudios spbre Drogas en America Latina) publicou o artigo ''A Lei de Drogas do Brasil: uma lei feita pela metade'' escrita pelo pesquisador  Marcelo da Silveira Campos - Doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD e professor convidado da Faculdade de Medicina da USP. Atualmente é Pós-Doutorando no INCT-InEAC/UFF. 

https://redesdal.org/blog/f/a-lei-de-drogas-do-brasil-uma-lei-feita-pela-metade

 

A Lei de Drogas do Brasil: uma lei feita pela metade

 

Nas últimas semanas lancei meu livro “Pela Metade: a lei de drogas do Brasil” (Editora Annablume) em diversas capitais do país (Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Goiânia), que marca uma interpretação absolutamente original e singular da atual lei de drogas do Brasil, a lei 11.343 de 2006, chamada popularmente como Nova Lei de Drogas. 

A hipótese do livro, que é fruto de minha tese de doutorado defendida na USP, com um ano de doutorado na University of Ottawa, é a seguinte: quando o Brasil optou, em 2006, por uma nova política de drogas - O SISNAD –basicamente duas ideias foram aprovadas no novo dispositivo legal: o fim da pena de prisão para o usuário de drogas, estabelecendo um sistema de saúde pública para deslocar o usuário da prisão para o sistema de saúde ; e, ao mesmo tempo, o aumento da pena mínima para o comércio de drogas com o objetivo, segundo os parlamentares, de reprimir o comércio de drogas e os coletivos criminosos emergentes em meados dos anos 2000. 

Logo, é no início dos anos 2000, após um longo debate no Congresso Nacional, que o Estado Brasileiro aprovou a chamada nova lei de drogas em 2006 (Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas). Na época, o objetivo “oficial” da nova política era deslocar o usuário de drogas para o sistema de saúde, ao mesmo tempo, em que aumentava a punição para os traficantes mediante o que os parlamentares denominaram como a “expansão de grupos criminosos” no início dos anos 2000, sobretudo, no contexto daquilo que a grande mídia, senadores e deputados nomearam na época como “onda de sequestros” em São Paulo. Uma abordagem “menos punitiva” e mais “preventiva”, focada agora na “saúde” do usuário de drogas, foi um dos objetivos centrais para a emergência de uma nova lei de drogas oriunda da CPI do Narcotráfico no início dos anos 2000. 

Esse dispositivo legal (Lei n° 11.343 de 2006) é que denomino como dispositivo médico-criminal. Esta “nova” política de drogas agora seria mais centrada na prevenção, atenção e reinserção social dos usuários de substâncias consideradas ilícitas e teria como objetivo “oficial” deslocar o usuário de drogas do sistema de justiça criminal para o sistema de saúde. É essa mistura entre o saber médico e o saber jurídico que dão o tom dos discursos dos deputados e senadores na tramitação no Congresso Nacional: “Parabéns ao Brasil, que terá uma lei que vai tratar diferentemente pessoas que são diferentes” declarou na época o ex-deputado Cabo Júlio (PSC/MG), ressaltando o apoio da bancada evangélica ao projeto que culminou na lei aprovada. 

Uma lei, portanto, que deveria estar em acordo com a “média de conhecimento da casa”, conforme disse outro deputado na formulação da lei. É esta média aritmética de que “pra descer tem que subir” apropriou-se do paradigma da redução de danos para, num mesmo movimento político, aumentar a pena para o tráfico de drogas mantendo, ainda, a criminalização do porte para uso de drogas (capítulo III da lei 11.343 de 2006). Nesse sentido, os avanços pretendidos com a entrada de um referencial médico na lei foram somente discursivos. A inovação foi meramente ocasional e acidental na velha lógica da política criminal brasileira de coexistência entre pouca moderação e muita severidade do poder de punir. Foi o que permitiu coadaptar o saber médico junto com o saber jurídico-criminal de modo que para diminuir um pouco a punição para o usuário de drogas aceitou-se aumentar a temporação do sofrimento por meio da centralidade da pena aflitiva de prisão para o comerciante.

Foi justamente essa combinação entre uma lógica universal e uma lógica hierarquizante (coexistência) que engendrou o encarceramento massivo de mulheres e homens jovens, pobres, negros e moradores das periferias de centros urbanos. A explosão do encarceramento por drogas gerou, após a nova lei, o aumento percentual de 13% de toda população prisional presa por drogas para 30% de toda população prisional, conforme mostram os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça. Tal mudança, portanto, pode ser pensada como os efeitos inesperados e contraditórios de uma política que teve um objetivo que era justamente o contrário: diminuir o número de presos por drogas para estabelecer um verdadeiro tratamento de saúde para os consumidores de substâncias consideradas ilícitas. O livro mostra que na cidade de São Paulo, as chances de alguém andando nas ruas ser considerado pelo sistema de justiça criminal como traficante, e não como usuário, aumentaram em 4X mais comparativamente quando a lei não havia entrado em vigor, ano de 2004. O segundo fator estatístico que mais pesa sobre a incriminação de uma pessoa como traficante e não como usuário é a escolaridade: pessoas de menor escolaridade (analfabetos e ensino fundamental incompleto) tem 3,6 mais chances de serem consideradas traficantes pelo sistema de justiça. Por fim, se a pessoa morar num bairro periférico ela terá 2X mais chances de ser considerada traficante e não como usuária. 

A minha pesquisa ainda mostra que, mesmo após o advento da nova de lei drogas,  a quantidade e o tipo de drogas não são fatores significativos para alguém ser incriminado como traficante ou usuário no Brasil. Para resumir, pode-se dizer que após a nova lei de drogas, ser considerado um traficante e não um usuário de drogas tem a ver, em primeiro lugar, com a origem social da pessoa: se alguém for escolarizado, tiver uma profissão e morar em algum bairro central das metrópoles muito excepcionalmente será considerado um traficante (apenas 34 pessoas das 1256 que analisei em minha tese de doutorado possuíam ensino superior completo ou incompleto). E, em segundo lugar, com a própria nova lei de drogas que não estabeleceu nenhum critério objetivo para diferenciar um usuário de drogas de um traficante de drogas. Por último, quando analisei a quantidade de drogas das pessoas incriminadas de um total de 799 registros que continham exatamente o tipo e quantidade de drogas, 404 ocorrências foram de 0,01 até 7 gramas de drogas. 

Resumindo:se prende muita gente, com ínfimas quantidades de drogas e quase exclusivamente das camadas pobres da população, mesmo sabendo-se há muito tempo que há todo um circuito de uso e comércio de substâncias ilícitas nas classes médias e altas dos grandes centros urbanos do Brasil, mas esse circuito de transações nem de longe passa por este mesmo sistema de justiça criminal. 

Nesse contexto, essas “prisões da miséria” no Brasil, repletas de jovens pobres, negros e periféricos, pune ou absolve somente de acordo com o status moral e social da pessoa da pessoa que será considerada “digna” para ser um usuário de drogas. E, por conseguinte, não de acordo com as infrações efetivamente cometidas. Nesse sentido, este artigo é um convite à reflexão dos leitores em perspectiva comparada com os países da América Latina: No Brasil, o que houve foi que  uma política de drogas que começava a ser efetivamente mais racional foi sobreposta não somente pela falta de avanços e investimentos massivos na rede de saúde pública como isto continua e piorou (muito) nos últimos anos. Mas, ainda, pela própria manutenção de critérios hierárquicos e não universalizantes que retomam nas prisões brasileiras a lógica de que as pessoas não devem ser tratadas igualmente pelas suas infrações cometidas, mas sim desigualmente mediante a desigualdade social e jurídica que criminaliza tão somente os moradores das periferias de nossas cidades. Portanto, mesmo que uma política pública busque, minimamente, algum pequeno avanço em termos de direitos e garantias individuais, logo virão os guardiões da ordem para retraduzir a desigualdade social em termos jurídicos legitimando uma ordem e uma política desigual. Pela metade, portanto, trata de uma política pública fundamental para nosso país – a lei de drogas – que quando feita pela metade gerou como consequência uma política que está em sua metade vazia de saúde pública e na outra metade cheia, a cada dia mais, de prisão. 

*Marcelo da Silveira Campos é Doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD e professor convidado da Faculdade de Medicina da USP. Atualmente é Pós-Doutorando no INCT-InEAC/UFF. 

QUAL A REFORMA NECESSÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA?
O Blog Ciência e Matemática publicou nessa segunda-feira, dia 2 de março de 2020, o artigo QUAL A REFORMA NECESSÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA?, escrito pelos antropólogos Roberto Kant de Lima e Lenin Pires, pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos. (www.ineac.uff.br).
Confira o artigo no link https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/qual-reforma-necessaria-da-administracao-publica.html  ou abaixo .

REFORMA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

Qual a reforma necessária da Administração Pública?

 

02/03/2020 

Ultimamente temos sido bombardeados pelo governo e pela imprensa sobre a necessidade de reformar o serviço público no Brasil. Principalmente, retirar dos servidores públicos as garantias conquistadas desde a época em que se instituiu um serviço público profissional entre nós, no governo Vargas. Garantias essas que se justificavam por serem consideradas indispensáveis ao desenvolvimento e preservação de uma memória burocrática acerca dos procedimentos técnicos e, por conseguinte, garantia da continuidade da promoção de serviços ao público, independente da vontade dos governos. Episódios recentes envolvendo o funcionamento dos Ministérios da Casa Civil, e da Educação, no governo federal, ou as demissões de engenheiros na CEDAE, promovidas pelo governo fluminense, deram seus testemunhos acerca dos riscos que representam a remoção de tais garantias, mediante a instituição da chamada “dança das cadeiras”.

Por outro lado, é interessante notar que a discussão, endossada por alguns governadores num artigo de opinião publicado recentemente no Globo, onde parecem associar a maior competência do serviço prestado à precariedade da permanência do servidor em seu cargo, parece ignorar que contemporaneamente a maioria dos servidores públicos é admitida através de concurso público, sendo muito menor o número de “cargos de confiança”, para os quais a nomeação é livre ou, pelo menos, não requer concurso público. Tais cargos são teoricamente de fácil extinção, mas continuam sendo usados em todos os níveis federativos seja como fonte de apoio político eleitoral, seja para reforçar o caixa dos seus patronos, como se sabe, através de práticas como a famosa “rachadinha”. Muitas vezes com efeitos semelhantes aos exemplificados no parágrafo anterior.

Pode-se argumentar que os concursos públicos, muitas vezes, não aferem as aptidões técnicas dos servidores para o cargo que vão ocupar, estendendo-se, pelo contrário, em socializá-los nas filigranas interpretativas das regras jurídicas abstratas e, por isso mesmo, muitas vezes de impossível cumprimento. E podemos estar de acordo com tal interpretação. Mas, como de hábito, em nenhum momento se ouve falar em aperfeiçoar mecanismos de incentivo e controle que responsabilizem os servidores por suas ações, ao invés de reprimir, apenas, suas transgressões quando detectadas, culpabilizando-os.

Em que pesem os discursos sobre transparência e adoção de critérios modernos de gerenciamento e gestão, o que observamos em ação, historicamente, no Brasil, é um sistema antigo, tradicional, herdado das matrizes judiciárias coloniais portuguesas trazidas pelos Tribunais da Relação. Este é voltado para a punição dos transgressores, sempre possível pelo eventual não cumprimento de regras abstratas, cuja execução correta depende de uma interpretação muito particular da autoridade encarregada de avaliar sua implementação. Neste sistema, todo engessado em obrigatoriedades abstratas a serem seguidas à risca, mas desligado das condições práticas de sua execução, todos sempre podem ser culpabilizados a qualquer tempo por terem transgredido a regra abstrata: por dolo, erro ou simplesmente por terem se omitido em cumpri-la.

A reação óbvia a um sistema de regras obrigatórias, abstratas, de aplicação draconiana e arbitrária como este, é a de blindar os servidores ao máximo, para que não estejam sujeitos a perseguições pontuais por seus desafetos. Por outro lado, o sistema que tem sempre a ameaça do castigo iminente pela interpretação arbitrária das regras pela autoridade de plantão, oferece espaço para negociações, nem sempre transparentes, para que suas avaliações sejam flexibilizadas. A regra abstrata e de draconiana e arbitrária aplicação abre espaço para a negociação implícita de sua flexibilização, gerando, certamente, ambiente propício a desvios e eventuais situações de corrupção. Tudo isso acontecendo dentro de um processo em que todos são potenciais alvos deste sistema de culpabilização, mobilizado através dos notórios “processos administrativo-disciplinares” (PADs) sejam efetivamente culpados ou não. Veja-se, por exemplo, o notório caso do Reitor da UFSC, que enfrentando acusações que não se confirmaram, mas que resultaram em tratamento preliminar indigno antes das apurações devidas, pôs término a vida. Se todos são sistematicamente, por princípio, suspeitos, como identificar efetivamente quem é o corrupto?

Um outro sistema de controle, no entanto, é possível. Baseado na transparência e ênfase na interpretação literal e consensual das regras, regido por protocolos construídos a partir das experiências em aplicá-las, com a colaboração não só de quem os redigiu, mas de quem os aplica. E com a permissão de que os servidores tomem suas decisões, mesmo que extraordinariamente elas impliquem não seguir as regras, desde que os mesmos se responsabilizem por suas ações. Seria um sistema que não se sustenta em uma suspeição sistemática sobre todo o corpo funcional, com exceção restrita, é claro, aos apaniguados que tem a “confiança” do chefe e com ele trocam favores recíprocos.

A insistência na punição depois do leite derramado é tão forte, que o ethos da suspeição sistemática e da tutela do Estado sobre os cidadãos não se esgota, é claro, no trato com os servidores. O pacote anti-crime levado ao congresso se estende em imaginar situações de punição dos transgressores, aperfeiçoando as delações premiadas que se estendem em anexos infindáveis, muitas vezes de improvável apuração. Mas muito pouco se fala em regulamentar a atividade dos lobistas, esses intermediários que viabilizam a exceção das regras em nome de interesses particulares. Fora da regulamentação que explicita o que pode e o que não pode ser feito, orientando essas atividades e prevenindo transgressões, como uma forma de compliance, nada se pode fazer se não punir depois de ocorridas, quando possível, as transgressões que se possa provar em juízo. O que, como tem ficado explícito ultimamente, depende muito do “livre convencimento motivado do juiz”1, pois não há regras claras e de interpretação inequívoca para a admissão ou exclusão de provas, no Brasil.

Vivemos em uma sociedade de controle administrativo, civil e criminal inquisitorial, em que temos que estar sempre provando quem somos, apresentado carteiras de identidade, certidões, certificados e diplomas xerocopiados e carimbados para confirmar nossos status e graus profissionais, que supostamente certificam nossa competência. É esse ethos cartorial, fiador da única fé pública oficialmente fidedigna, que aparentemente sacia a suspeita sistemática que rege as formas de controle administrativo, civil e penal no Brasil. È disso que teríamos que nos livrar para, pedagogicamente, poder socializar-se a população em outra chave de controle estatal, civilidade e convívio ético, que poderia produzir o ambiente de previsibilidade e confiança essencial para não só o funcionamento do mercado, mas para contribuir decisivamente para a construção de uma ordem pública democrática e republicana. Essa é a reforma político-jurídico-administrativa que se impõe.

1 Prerrogativa exclusiva dos juízes nos processos a seu cargo que significa que decidem livremente, segundo seu entendimento particular e justificam sua decisão posteriormente.

 

Roberto Kant de Lima e Lenin Pires, respectivamente coordenador e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos. (www.ineac.uff.br)

 

 

                                     

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