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Claúdio Salles

Claúdio Salles

A Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação (PROPPI) e a Agência de Inovação (AGIR) da Universidade Federal Fluminense (UFF) lançam o Edital de Chamamento e Registro de Experiências de Tecnologia Social de 2021.

O Edital está aberto para docentes, técnicos-administrativos e/ou alunos  apresentarem suas experiências de tecnologia social desenvolvidas no âmbito da UFF, visando o mapeamento, documentação e divulgação das informações, dando visibilidade às experiências desenvolvidas, produzindo registro e memória a partir das iniciativas registradas.

Em decorrência do cenário provocado pela pandemia do COVID-19, o edital também visa contemplar experiências de tecnologia social elaboradas para o enfrentamento do COVID-19.
As inscrições estão abertas até o dia 18 de junho de 2021. Para ter acesso a todas as informações e saber se possui os pré-requisitos, acesse o edital clicando aqui.

As experiências selecionadas se somarão àquelas já catalogadas e integrarão o Catálogo de Tecnologias Sociais 2021.

Para conhecer mais sobre o catálogo, acesse o link: http://tecnologiasocial.uff.br/?p=5699

 

Disponibilizamos em nosso site o artigo "Sujeição sanitária e cidadania vertical: Analogias entre as políticas públicas de extermínio na segurança pública e na saúde pública no Brasil de hoje", escrito pelo antropólogo e coordenador do INCT/INEAC Roberto Kant de Lima (UFF/UVA) e o Sociólogo Marcelo da Silveira Campos (UFGD e INCT/INEAC). Essa versão traduzida para o inglês e com a inclusão de alguns dados, foi publicada no site do Center of Brazil Studies na série One-Pager,  vinculado ao College of International Studies, The University of Oklahoma.

Confira o artigo no PDF abaixo em anexo.

 

 

Reproduzimos aqui o artigo "Sobre Tempo e Espaço em tempos de pandemia," escrito pelo antropólogo Ronaldo Lobão (UFF - INCT/INEAC) e publicado no Blog Ciência e Matemática do O GLOBO, no endereço https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/sobre-tempo-e-espaco-em-tempos-de-pandemia.html

Confira abaixo o artigo.

 

Sobre Tempo e Espaço em tempos de pandemia

10/05/2021 • 11:15

Ronaldo Lobão

 

Para começar, quero dizer que penso ser impossível generalizar as experiências das pessoas durante a quarentena. Como antropólogo, preciso da experiência empírica para olhar, preciso da interação com as pessoas para ouvir, de um certo distanciamento temporal para refletir sobre elas  de forma adequada. Tais atos cognitivos não devem ser confundidos com a ação dos órgãos dos sentidos correlatos, a visão e a audição, conforme nos ensinou Roberto Cardoso de Oliveira. Tenho certeza de que, em isolamento social, olhar e ouvir são impossíveis!

Mas posso, a partir de alguma teoria e de minha experiência pessoal, especular sobre algumas mudanças nas relações das pessoas com o tempo e com o espaço durante a quarentena, e também na perspectiva de um rearranjo das condições de trabalho que estão sendo chamadas de o “novo normal”.

Santo Agostinho registrou sobre o Tempo a seguinte confissão: “Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada”. Immanuel Kant resolveu este dilema de forma simples, Tempo e Espaço seriam categorias inatas do pensamento. Não necessitariam de definição.

Um geógrafo sino-americano, Y-Fu-Tuan, formulou ideias interessantes para os conhecer. A percepção do Tempo seria informada pelas mudanças em nosso estado interior. De alegre a triste; de atento a desatento; tenso ou calmo. Na sociedade moderna, temos o relógio para assinalar os intervalos entre estes estados. Mas Marshall Sahlins mostrou que a experiência do Tempo muda conforme nossas emoções. Se estamos alegres o Tempo passa vertiginosamente. Se estamos tristes o Tempo parece não “passar”. Há um desacordo com o relógio!

Também segundo Tuan, o Espaço nos é informado por nossos órgãos dos sentidos, sejam a visão, a audição, o tato e, eventualmente, o olfato. Aprendemos a medir a distância desde bebês através destes sentidos.

Já a sensação do movimento seria o resultado de uma relação entre o Tempo e o Espaço, tal como a Física mede a velocidade. O Espaço pode ser o resultado da experiência de nosso movimento em um dado período de Tempo, não?

Não é difícil pensar que, na situação de isolamento social em que vivemos, confinados em um mesmo espaço e restringidos em nossas possibilidades de movimento, temos uma percepção de Tempo e Espaço distorcida em relação à experiência que tivemos até aqui.

Roberto DaMatta sugeriu duas distinções que penso serem interessantes para ajudar a compreender o papel da dimensão emocional durante a pandemia atual. De um lado temos a diferença entre a Casa e a Rua. De outro temos as categorias sociológicas da Pessoa e do Indivíduo.

Fazendo algumas adaptações entre o pensamento desse autor, posso sugerir que a Casa seria o lugar da segurança, das relações pessoais, dos afetos. A Rua representaria o Espaço do risco, das regras impessoais, dos interesses individuais. Encontros duradouros fora de casa, sejam na rua, sejam no trabalho, têm o potencial de ampliar os lugares nos quais nos sentimos seguros, pois temos autonomia em decidir como nos comportar, podemos nos abrir afetivamente.

No ambiente da Casa estamos limitados às nossas experiências pretéritas para reconstruir emoções e sensações do que assistimos na tela de um computador, smartphone, tablet. Quem não assistiu a um show musical ao vivo não conseguirá rememorar as mesmas emoções ao assistir a um show no YouTube. Assim, vivemos em um ciclo repetitivo de nossas experiências pretéritas, limitado por excelência, e que  penso que em breve poderá trazer graves consequências, principalmente se for considerado um “novo normal”...

Porém não penso que a forma como estamos vivendo seja nem “nova”, nem “normal”. Avalio que há implicações nas restrições impostas pelo isolamento social que não afloraram mais claramente, pois temos um inimigo maior, que é o vírus, contra o qual acionamos todas nossas defesas. Mas ainda assim é possível fazer algumas ilações.

Por exemplo, na esfera da Casa sou uma pessoa que se relaciona com as pessoas da família e os lugares de uma determinada forma. Posso ser afetivo, controlador, bagunceiro, egoísta, etc. Minha identidade na Casa foi construída em relações com meus pais e irmãos e atualizada quando adulto em relação a meu companheiro ou companheira e filhos, animais de estimação, plantas, oficinas, etc.

Na sociedade contemporânea, na esfera do trabalho, sou um indivíduo que age em conformidade com o que é esperado e que foi aprendido fora do ambiente familiar. Por exemplo, eu não aprendi antropologia em Casa. Não aprendi a ser professor em Casa. Não aprendi a ser pesquisador em Casa.

Há uma trajetória riquíssima na construção deste personagem, o “trabalhador moderno”, aquele que vende sua força de trabalho no mercado. Mas na vertente que interessa a meu argumento, posso dizer que foi construída uma distância entre a identidade pessoal na Casa e a identidade coletiva no Trabalho. E a rua tem um papel fundamental como o espaço de um  ritual de passagem entre uma identidade e a outra.

Posso propor uma imagem. A pessoa sai de Casa, onde é um pai ou mãe dedicada, é um exemplo de vida para seus filhos e companheira ou companheiro. É uma liderança, é uma referência.

Mas quem chega no Trabalho? Imagine que nosso personagem trabalhe como faxineiro, igual a inúmeros que trabalham em empresas, que tenha um “trabalho subalterno”, para usar uma imagem de uma recente pesquisa no TRT/RJ. Há uma rotina a ser desempenhada em relação à qual ele não tem nenhuma autonomia. Sua voz sequer é ouvida e quando o é, é sempre de forma subalterna, quando não subserviente.

No final do dia ele chega em Casa. E quem chegou? O “subalterno”? Esperamos que não, certo? Quem chega em Casa é o pai, a mãe, o exemplo, o porto seguro.
Como acontece esta “mágica”? Gosto de pensar que é obra do “trajeto”, do deslocamento, do movimento pelo Espaço, pela Rua. O ritual de construção das identidades se processa no deslocamento em sentidos opostos. Da Casa, para a Rua e para o Trabalho. Do Trabalho, para a Rua e para a Casa.

A ausência destes rituais é certamente é o que é de mais “anormal” neste “novo” que, como disse, espero que seja fugaz e deixe poucas marcas. Mas avancemos um pouco mais. O exemplo que dei está situado em relações de trabalho que não se adequam a uma estratégia que tem se efetivado durante a quarentena, o tele trabalho, ou o trabalho em casa. Mas que têm sido saudados como elementos de um possível “novo normal”.

Vejamos um outro exemplo. Posso dar um exemplo pessoal. Trabalhei em uma usina siderúrgica, situada a duas horas de ônibus da zona sul do Rio de Janeiro. Havia diversas áreas chefiadas por engenheiros e eu tinha que lidar com todos eles. O chefe da área estratégica da empresa, a aciaria, responsável pelos fornos que produziam o aço, era de longe a pessoa mais intratável. No trajeto não falava com ninguém e, ao longo da jornada de trabalho, não socializava com os colegas em nenhum momento. A relações estratificadas eram a tônica do seu comportamento na empresa. Anos depois o encontrei em um pub em Ipanema. Veio me cumprimentar alegre, afetivo como nunca havia feito. Conversamos bastante e ele me disse que seu comportamento na empresa era daquela forma, porque era o que se esperava dele e ele tinha planos de crescer na empresa. Até que cansou do personagem e mudou de emprego. Era outra pessoa, e estava muito mais feliz!

Com o tempo entendi que o trajeto de ida era fundamental para ele e para todos nós construirmos nossas identidades funcionais no padrão que a empresa esperava. O trajeto de volta era fundamental para a desconstrução respectiva.

O que a pandemia fez? Eliminou esse ritual. Eu, o professor, estou em Casa, dando aula, pesquisando, trabalhando!

E “quem” trabalha? “Quem” está em Casa? Como consigo exercer estes dois papéis concomitantemente?

A resposta pode estar, como disse, em uma ameaça maior, lá fora. O vírus Covid-19 está na rua,  no trajeto! Assim, enquanto esse inimigo estiver lá, aceito esta supressão. Ponho o ritual, não a mim, em uma condição liminar, mesmo sendo ele um ritual de passagem.
Mas isso é bom? Certamente não. E espero que passe logo.
Mas, para concluir, não quero me colocar na posição de quem defende o “velho normal”, não, longe disso.

Mas...

Quero defender que a reflexão sobre as relações de trabalho inclua a reflexão sobre os processos de construção / desconstrução das identidades domésticas e profissionais.
Se o mundo do trabalho pode invadir o mundo da casa, por conta da pandemia, será que o mundo da casa, com outros tipos de relações interpessoais, não pode ser levado para o mundo do trabalho?

Se o ritual do deslocamento participa do processo de construção e desconstrução, ou reconstrução, de identidades pessoais, ele não pode ser um vetor de uma nova sociabilidade que torne mais equânime as relações tanto na casa quanto no mundo do trabalho?

 
 
 

Reproduzimos aqui o artigo do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo,  professor da PUC-RS e pesquisador vinculado ao INCT / INEAC, publicado no site A TERRA REDONDA - https://aterraeredonda.com.br/raymundo-faoro-um-pensador-da -democracia / , em  resposta ao artigo de Leonardo Avritzer . Confira abaixo o artigo:

 

Por  RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO *

Resposta ao artigo de Leonardo Avritzer.

Publiquei no blog  Faces da Violência , do jornal  Folha de São Paulo , artigo onde apresento três vertentes que considero relevantes nenhum debate a respeito da Operação Lava Jato no campo das Ciências Sociais, centrando minha análise na posição expressa por Leonardo Avritzer, que sustenta que por trás dos atropelos processuais e da atuação midiática de seus usuários seria uma visão pró-mercado e punitivista, inspirada pela obra de Raymundo Faoro.

Avritzer respondeu ao meu artigo no site  A Terra é Redonda  ( O legado de Raymundo Faoro ). Considero relevante discutir a obra de Faoro e sua atualidade, por isso apresento aqui a tréplica, dando seguimento ao debate. Mas, infelizmente, antes de entrar no que realmente interessa, é preciso limpar o terreno sobre questões preliminares por Avritzer. Talvez fruto de uma leitura apressada do artigo, o professor mineiro inicia dois argumentos que não tem base no que escrevi.

Avritzer afirma que o critico “em primeiro lugar, por desrespeitar os clássicos”. E como decorrência me vincula à “muito bem conceituada tradição de ensaísmo laudatório no Brasil, que tenta passar por ciências sociais”. Qualquer leitor mais cuidadoso vai perceber que em momento algum minha crítica esteve dirigida ao “desrespeito aos clássicos”, o que seria no mínimo ridículo. E dessa leitura do que não está escrito querer me vincular a uma tradição laudatória é forma retórica de desqualificar o interlocutor, sem discutir seus argumentos. Um estilo argumentativo que não contribui para qualificar o debate sobre o conteúdo do que se discute, mas muito em voga na era da pós-verdade. Proponho retomarmos o debate de ideias,

Ainda mais grave, ao ler o nome de Joaquim Falcão no meu artigo, Avritzer passa a considerar que, uma vez que ele está citado, automaticamente eu avalizaria suas opiniões sobre uma Operação. Chega a afirmar que seria “esse corporativismo de um judiciário que despreza a democracia e o Estado de direito, que Ghiringhelli e Falcão defendem”. Para em seguida afirmar que eu estaria entre os que sustentam “práticas liberais em conversas de bar e artigos na imprensa, mas se eximem de sustentar o direito de defesa e o devido processo legal ou uma ascensão social pela via educacional”. Quanto à primeira afirmação, qualquer leitor mais atento perceberia que minha referência a Falcão, assim como a Cláudio Beato, foi em sentido crítico à sua abordagem, em seguida, o que chamei de “uma outra chave de leitura”, habilitação, entre outros, por Roberto Kant de Lima e Pedro Heitor Barros Geraldo (Jota, 01.03.21), e por mim mesmo e Arthur Costa (Faces da Violência, 01.04.2021). Quanto à segunda, me permito não responder, já que considero um ataque sem qualquer fundamento, como qualquer um que já tenho lido o que escrevi sobre uma Operação Lava Jato pode testemunhar.

Fosse eu um representante do ensaísmo laudatório, e um defensor dos padrões procedimentais da Lava Jato, tudo estaria resolvido, Faoro estava condenado e a querela estava encerrada. É preciso reconhecer que não é assim. O subtítulo do artigo de Avritzer faz referência à “academia cordial” (trazendo à baila outro de nossos intérpretes do Brasil). Avritzer não esclarece o que quer dizer com isso, mas tenho para mim que o que caracteriza uma “academia cordial” é difícil em realizar um debate público, franco e honesto, entre pares, quando a divergência é tomada como ataque pessoal, e o resultado é sempre a tentativa de desqualificar o adversário, com argumentos  ad ominem . Deixemos de lado essa “cordialidade”, e façamos o debate de conteúdo, que é o que interessa.

No conteúdo, Avritzer procura fundamentalar (agora sim) sua “tese” sobre a obra de Faoro. Em sintéticos, o Avritzer questiona a permanência do patrimonialismo e do estamento burocrático parajados na origem do Estado português, e sua transposição para o Brasil Imperial. Aponta um equívoco fundante na análise de Faoro sobre independência e Império, porque segundo ele Faoro trata fazendeiros escravistas como liberais. Mas ao citar Faoro, fica claro que o que este afirma é que há uma contradição entre o monarca absolutista e os privados dos fazendeiros, o que implica em um “impulso liberal, associado à fazenda e às unidades locais de poder”. O próprio Faoro esclarece que é muito menos um ideal liberal do que o interesse particularista de ricos e poderosos fazendeiros em reduzir o poder do rei,

Dessa e de outras interpretações no mínimo apressadas, de recortes da obra de Faoro, Avritzer tira como consequência que ele teria inaugurado um liberalismo simplificado e defendido por não liberais, envolvendo apenas a rejeição do Estado. E acrescenta que o autor de Os Donos do Poder identifica liberalismo com privatismo, sem igualdade civil em relação às mulheres, ao voto e às relações de trabalho. Tanto a obra de Faoro quanto sua trajetória política contrariam a tese, mas para sustentá-la em suas ações, Avritzer acusa Faoro de ter colocado “a OAB em 10 diferentes lugares da Constituição, abrindo espaço para um corporativismo jurídico e para estruturas de proteção interpares que vemos todos os dias e que geram distorções no processo penal ”. Como Faoro fez isso, tendo sido presidente da OAB apenas no período de 1977 a 1979, Avritzer não esclarece. Como às referências à OAB na Constituição distorce o processo penal, também não fica claro (embora seja um debate necessário). Mas são argumentação para desqualificar o autor atacado, e não a sua obra.

A argumentação de Avritzer é de fato muito tênue para dar conta de uma obra tão complexa e tão influente no debate sobre o Estado brasileiro, suas origens e processo histórico. Outros já o fizeram com mais competência, entre eles Juarez Guimarães, citado por mim no artigo anterior. Mas faço referência aqui a um outro artigo, de Fábio Konder Comparato (Raymundo Faoro Historiador, 2003). Lembrando que desde o início “a interpretação que Faoro deu da História do Brasil irritou profundamente a crítica marxista, pois tornava dispensável o recurso metodológico ao esquema da luta de classes”, Comparato mostra que, para Faoro, “a sociedade brasileira – tal como a portuguesa, de resto – foi tradicionalmente moldada por um estamento patrimonialista, formado, primeiro, pelos altos funcionários da Coroa, e depois pelo grupo funcional que sempre cercou o Chefe de Estado, no período republicano. Ao contrário do que se disse erroneamente em crítica a essa interpretação, o estamento funcional governante, posto em evidência por Faoro, nunca correspondeu àquela burocracia moderna, organizada em carreira administrativa, e cujos integrantes agem segundo padrões bem assentados de legalidade e racionalidade. Não se trata, pois, daquele estamento de funcionários públicos encontrável nas situações de “poderio legal com quadro administrativo burocrático” da classificação weberiana, mas de um grupo estamental correspondente ao tipo tradicional de dominação política, em que o poder não é uma função pública, mas sim objeto de apropriação privada”.

Ou seja, em Raymundo Faoro, a história brasileira não é examinada como simples sucessão de lutas de classes, ou de ajustes e desajustes entre grupos sociais. Ele introduz as noções de estamento, casta e classe social de modo inovador, jogando luz sobre os diversos aspectos de nossa formação, em que nossa ‘modernidade’ aparece amarrada em formas tradicionais de organização social e mental: uma cultura estamental-oligárquica e de substrato escravista que ainda comanda o presente.

Fazendo uma utilização original de conceitos weberianos, Faoro compartilha com ele a preocupação com a configuração e o caminho seguido por suas respectivas sociedades nacionais, a constituição de atores políticos relevantes e capazes de dirigirem a sociedade e o contraste entre rigidez e plasticidade das relações sociais. Mas como afirma o próprio Faoro, no prefácio à 2ª edição de Os Donos do Poder (1973), “advirta-se que este livro não segue, apesar de seu próximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber. Não raro, as sugestões weberianas seguem outro rumo, com novo conteúdo e diverso colorido. De outro lado, o ensaio se afasta do marxismo ortodoxo, sobretudo ao sustentar a autonomia de uma camada de poder, não diluída numa infraestrutura esquemática, que daria conteúdo econômico a fatores de outra índole”. Voltando a Guimarães (Raymundo Faoro, pensador da liberdade – 2009), é possível afirmar que “em Faoro, a crítica ao Estado patrimonialista não se faz a partir de um paradigma elitista de democracia, que se encontra em Weber, mas a partir de uma lógica de universalização de direitos e deveres. Isto é, há uma tensão permanente entre seu viés analítico e seu horizonte normativo.”

Para Faoro, a Dinastia de Avis, constituída em 1385 para dar início ao Estado português, representa uma simbiose entre os interesses da realeza e do comércio e constitui um poder estatal centralizado, com base econômica na propriedade fundiária, representando uma “modernidade precoce”, cuja persistência acaba sendo fatal, pois se desenvolve economicamente como capitalismo politicamente orientado, forma patrimonialista de organização do poder. Na linha de Weber, o que Faoro quer frisar com a noção de capitalismo politicamente orientado é um tipo de empreendimento mercantil e de lucro que cresce não na formalização e impessoalização das regras de concorrência, produção, comércio e distribuição, mas através do privilégio, do acesso favorecido, da renda privadamente incorporada e do ônus absorvido pelo Estado. Qualquer semelhança com o Brasil contemporâneo não é mera coincidência.

Sobre o estamento burocrático, é Gabriel Cohn quem nos alerta que, “embora comerciantes e financistas tivessem se beneficiado, um novo ator emergiu para ocupar posição vantajosa na estrutura social e de poder que se constituía: o dos peritos nas leis e nas técnicas de mando. Associados num grupo que se revelava indispensável ao governo do rei-proprietário, seus integrantes assentaram as bases para a moldagem de um ente social capaz de se reproduzir indefinidamente, mediante a aplicação de um princípio de aglutinação interna e diferenciação externa consoante uma concepção da honra associada ao pertencimento ao grupo. Temos nisso um caso daquilo que Faoro, seguindo Weber, denomina estamento”. (Gabriel Cohn, 2008, p. 4)

Assumindo caráter burocrático, com a incorporação de traços de um órgão voltado para a gestão, é isso que lhe garante a relativa independência da sociedade, pela qual adquire poder sobre ela, atuando, fundamentalmente, no interesse de sua própria perpetuação. Como configuração social específica que recobre a sociedade como uma carapaça e não permite o surgimento de antagonismos, a plena definição e expressão dos atores sociais fundamentais é abafada pelo estamento burocrático, que não se converte em classe, mas bloqueia a emergência da classe burguesa liberal empreendedora. Nesse sentido, Faoro interpreta a ditadura militar como uma nova etapa de fortalecimento e perpetuação do estamento burocrático, percebendo o militarismo como expressão do estamento burocrático e garantindo o monopólio do poder político para a distribuição de cargos.

Já no final dos anos 70 Faoro vê em Lula e no surgimento do novo sindicalismo uma perspectiva de modernização e ruptura com o estamento burocrático. Frente à histórica primazia ou o monopólio das iniciativas da sociedade política sobre a sociedade civil, Faoro logo percebe a novidade, ao colocar em cena novos atores políticos no campo institucional nos anos 80 e 90. Faoro morreu em 2003, o que nos impede de saber como interpretaria os governos do PT, na sua maior ou menor proximidade e compromisso com o estamento burocrático e com as práticas patrimonialistas de relação entre Estado e interesses privados.

Por fim: da obra de Faoro podemos buscar elementos analíticos importantes, assim como uma perspectiva política comprometida com a afirmação da democracia no Brasil. A necessidade de romper a carapaça do estamento burocrático via burguesia liberal (desde que se constitua como tal), assim como por meio da radicalização democrática, com a mobilização dos que historicamente estiveram de fora das estruturas de poder, como a nova classe trabalhadora em ascensão a partir dos anos 70. E dar destaque à dimensão cultural, das relações sociais vinculadas a uma moralidade estamental (essa sim muito esclarecedora para pensar as relações entre delegados, procuradores e juízes na Lava Jato). De todo modo, as questões apontadas em Os Donos do Poder e nos escritos de Faoro não permite uma leitura apressada, pois, como se percebe, ainda serve como referência importante a todo campo democrático, na perspectiva de romper com estruturas tradicionais de poder patrimonial e estamental que teimam em se reproduzir e perpetuar.

* Rodrigo Ghiringhelli de Azevedosociólogo, é professor da PUC-RS.

 

Reproduzimos aqui o artigo "A Operação Lava Jato e as Ciências Sociais", publicado na Folha de São Paulo (https://facesdaviolencia.blogfolha.uol.com.br/2021/05/04/a-operacao-lava-jato-e-as-ciencias-sociais/) pelo  Sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS e pesquisador vinculado ao INCT/INEAC. 

 

A Operação Lava Jato e as Ciências Sociais

A essa altura, já não se sabe mais o que é crítica à obra de Faoro, o que é crítica às palavras de Barroso, ou à ação dos integrantes da Lava Jato. Ou o que é pura e simplesmente uma tese sem pé nem cabeça, lançada de forma leviana, para aproveitar a debacle da Lava Jato para acertar contas com um dos grandes intérpretes do Brasil

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*

A importância da Operação Lava Jato para os destinos políticos do país, assim como para o funcionamento da justiça penal e o combate à corrupção, tem dado margem a muitas publicações, não apenas no campo do processo penal, mas também no das ciências sociais. A partir do reconhecimento, pelo Supremo Tribunal Federal, da incompetência do juízo de Curitiba para julgar os processos envolvendo o ex-presidente Lula, e do reconhecimento da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para o julgamento do ex-presidente, uma nova leva de artigos tem sido publicados, representando estas diferentes e muitas vezes conflitantes interpretações sobre a operação, seu final melancólico e seu significado.

Entre seus defensores, críticos das recentes decisões do Supremo, se encontra, em lugar de destaque, o jurista e sociólogo do direito Joaquim Falcão. Em recente artigo publicado no Estadão (23.04.2021 – O que o STF não respondeu ao declarar Moro suspeito), fazendo coro ao voto do ministro Barroso, Falcão sustenta que as recentes decisões do STF são fruto de “vingança judicializada” contra os avanços do que considera um “direito processual sistêmico”. Segundo ele, não há estado democrático de direito sem um direito processual eficiente (para condenar, e não para garantir o exercício pleno do direito de defesa). Trata-se, portanto, de uma leitura que considera os métodos da Lava Jato adequados e necessários para alcançar os fins desejados.

Semelhante visão tem sido apresentada por Cláudio Beato, sociólogo e professor da UFMG, que em artigo publicado no O Globo (20.03.2021 – Os (des)caminhos da justiça criminal brasileira) contrapõe a perspectiva garantista, que “busca esgotar todos os ritos legais, dando amplo direito de defesa, a fim de minimizar erros ao longo do sistema”, a um outro modelo emergente, que buscaria, “ao contrário, a celeridade processual e o julgamento por evidências”. Sustentando que o caminho para a modernização da justiça para o combate à corrupção passa por essa segunda alternativa, promovida por “aguerridos membros do Ministério Público ou novas versões de algumas polícias estaduais e federais”, Beato critica o aparato legal defasado (sem dizer quais mudanças deveriam ocorrer, e sem considerar o grande número de reformas legais ocorridas a partir de 88). Beato reconhece que abusos foram cometidos (“ações arbitrárias”, “excessos”) e critica o ex-juiz e seus aliados no MP e na PF por “cometeram o erro primário de confundir-se com esse movimento político em ascensão” (o bolsonarismo). A derrota da Lava Jato seria fruto da mistura de ação judicial e interesses políticos, que levou seus protagonistas ao confronto com “uma curiosa congruência de interesses aparentemente opostos de direita e esquerda, para que, como sempre ocorreu, o braço da lei não alcance os poderosos”. Ou seja, não foram os abusos praticados, mas a inabilidade política dos seus operadores, que teria viabilizado a nova maioria no STF e o fim da operação.

Uma outra chave de leitura é aquela apresentada por pesquisadores vinculados ao Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, entre os quais o professor Roberto Kant de Lima, para quem, historicamente, “a ética dos operadores do direito naturaliza a proximidade organizacional e social entre promotores e juízes sem se questionar sobre as razões inquisitoriais de sua organização”(JOTA, 05.03.21). Para Kant de Lima e Pedro Heitor Barros Geraldo, a mudança de regimes políticos ao longo da história do Brasil produziu uma transformação das finalidades das instituições judiciais, mas não necessariamente das práticas de tomada de decisão. O que caracteriza para estes autores o “espírito da Lava Jato” é a obsessão persecutória contra uma suposta e atávica corrupção “sistêmica” entre os políticos e empresários, que os procuradores buscavam demonstrar a todo custo. O “espírito da Lava Jato” encarnou em práticas conhecidas e naturalizadas pelos atores da justiça. A recorrente corroboração destas práticas, inclusive pelos órgãos correcionais, produziu um ambiente propício para o uso ilimitado dos poderes judiciários. Neste sentido, a Lava Jato seria a reiteração do modus operandi da justiça brasileira, inquisitorial e seletiva.

Na mesma linha, mas destacando a dimensão da inovação frente às permanências, destacamos, em artigo publicado no blog Faces da Violência, da Folha (Azevedo e Costa, 01.04.2021 – Lava Jato: Crônica de uma morte anunciada) que a Lava Jato, assim como outras operações e processos não tão midiáticos de combate à corrupção, foram a resultante de mudanças institucionais introduzidas a partir da CF de 88, que transformou a Polícia Federal em Polícia Judiciária, criou o Ministério Público Federal e a Justiça Federal. Ou seja, a CF 88 criou o Sistema de Justiça Criminal no âmbito federal. Juntamente com uma série de inovações legislativas em matéria penal e processual penal, concluímos que a Operação Lava Jato foi o resultado ambíguo de um processo de aperfeiçoamento institucional, distorcido pela ambição de seus operadores, de refundar o sistema político a partir de um processo judicial.

Uma nova interpretação veio à tona recentemente, em artigo publicado pelo cientista político Leonardo Avritzer no blog “A Cara da Democracia”, publicado pelo UOL (24.04.2021 – O fim da Lava Jato e o patético Barroso). Comemorando a decisão do STF, por 7 votos a 2, que reconheceu a suspeição de Sérgio Moro, Avritzer sustenta que a derrota da Lava Jato constituiria também a derrota de uma interpretação equivocada do Brasil, apresentada por Raymundo Faoro em sua obra “Os Donos do Poder”, lançada originalmente em 1959, que teria sido, segundo ele, “resgatada” pelos justiceiros de Curitiba. Para sustentar a responsabilidade de Faoro pela Lava Jato, Avritzer desqualifica a obra, acusando-a de reduzir os problemas do Brasil à corrupção, de realizar operações de “qualidade acadêmica duvidosa”, e de representar “o pior texto já escrito sobre a história do Império” (segundo “alguns”). Com base nesta argumentação (de qualidade acadêmica bastante duvidosa), Avritzer extrai a conclusão de que a Lava Jato poderia ser entendida como um “faorismo judicial”, caracterizado pelo ativismo judicial e o punitivismo seletivo. Sustenta, assim, que o verdadeiro projeto (de Faoro ou de seus “seguidores”?) seria “a destruição sistemática do Estado brasileiro”, e na falta de outro caminho teria pavimentado a militarização do governo conduzida por Bolsonaro. Avritzer vai além, sustentando que o “faorismo judicial” estaria disposto a deixar de lado quaisquer “arroubos ligados ao liberalismo”, como o direito de defesa, para destruir o “estamento burocrático”. Através, diga-se, de um braço do próprio estamento burocrático.

A essa altura, já não se sabe mais o que é crítica à obra de Faoro, o que é crítica às palavras de Barroso, ou à ação dos integrantes da Lava Jato. Ou o que é pura e simplesmente uma tese sem pé nem cabeça, lançada de forma leviana, para aproveitar a debacle da Lava Jato para acertar contas com um dos grandes intérpretes do Brasil. Não cabe aqui fazer a defesa da obra de Faoro, ou precisar os conceitos que ela apresenta, embora os ataques que vem sofrendo denotem a importância dessa discussão, já feita, e de forma brilhante, por um outro professor da UFMG, Juarez Guimarães, por ocasião da passagem dos 50 anos de “Os Donos do Poder” (Guimarães, 2009 – Raymundo Faoro, pensador da liberdade).

Basta aqui, seguindo os argumentos de Guimarães, lembrar que “o centro da narrativa de Faoro, sinal expressivo de sua importância na formação de nossa cultura política, é entender por que prevaleceu em nossa história, no chamado período monárquico ou no republicano, um Estado assentado em uma soberania não resultante de um contrato livre entre cidadãos”. Faoro encontra a explicação na formação patrimonialista estamental do Estado português, que no contexto particular da Independência do Brasil, promovida por membros da própria família real portuguesa, transmitiu-se como instância estruturadora da cultura política brasileira em formação, “cindindo e deformando a formação de uma cultura liberal de direitos e passando por vários processos históricos transformativos e adaptativos até a contemporaneidade”. Compreendendo a dimensão do autor e da obra, Guimarães reconhece que Faoro “foi o primeiro entre nós a construir uma narrativa de longa duração a partir do critério da liberdade política, entendida em sua chave republicana, como autogoverno de cidadãos autônomos”. Ou seja, o que pretende Faoro “é a crítica histórica do Estado fundado sem contrato social democrático, encerrado em uma lógica patrimonial, sem uma ordem simétrica de direitos e deveres, que se atualiza de forma permanente pela particularização arbitrária da sua ação política e pela privatização de suas funções econômicas. O que resulta dessa crítica não é propriamente a negação do Estado ou a sua ausência, mas a necessidade da democratização de seus fundamentos, uma ordem simétrica de direitos e deveres de cidadania e a afirmação de critérios universalistas de sua ação política econômica”.

A forma como os procuradores da Lava Jato, que já confundiram Hegel com Engels, interpretam e utilizam a obra de Faoro para legitimar suas ações, diz muito pouco sobre a obra de Faoro. Que um ministro do Supremo se utilize dos “Donos do Poder” para fundamentar seu consequencialismo, subvertendo os meios pelos fins do processo penal, diz muito sobre certa matriz autoritária de decisionismo jurídico, mas responsabilizar por isso um tribuno da liberdade e dos direitos e garantias fundamentais, inclusive em tempos obscuros, seria o mesmo que responsabilizar Cristo pela Santa Inquisição.

Mas, ainda com Guimarães, é importante lembrar que aquele que, na condição de presidente nacional da OAB, em discurso memorável, afirmou o princípio de que “o Estado não pode ser o inimigo da liberdade”, continua sendo uma referência central para que possamos compreender a longa duração dos processos históricos e os desafios colocados para a afirmação da democracia no Brasil. Não faremos isso acreditando que o clientelismo, o apadrinhamento, o direcionamento de recursos públicos de forma seletiva e pouco republicana, as rachadinhas e os caixas 2 para financiamento de campanhas eleitorais são um problema menor ou já superado. Muito menos desacreditando ou minimizando a importância dos mecanismos institucionais para o esclarecimento e a responsabilização criminal dos que pretendem perpetuar sinecuras e dinastias de poder político patrimonial.

Sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS

 

Com uma programação voltada para a comunidade acadêmica, alunos e professores, começa no próximo dia 3 de maio de 2021, a Semana Acadêmica nos Polos Cederj 2021.  Em Rio Bonito, o Polo Regional UAB/Cederj local realiza a sua XIX Semana Acadêmica que terá a participação do antropólogo Lenin Pires (INCT/INEAC - UFF) com o tema MERCADOS POPULARES, ILEGALISMOS E A REGULAÇÃO PELA VIOLÊNCIA . O evento será transmitido, gratuitamente, por meio do Canal do polo no YouTube. O certificado de participação será conferido somente ao participante que assistir à palestra ao vivo e preencher a lista de presença, que será postada no Chat do encontro. O link de acesso ao evento e à programação é https://youtube.com/channel/UCuIkIdKnYONaQoCwjbZZSmA

Confira no cartaz outras informações.

 

A antropóloga Flávia Medeiros Santos - Professora Adjunta do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora do INCT/INEAC também participou da audiência pública sobre a ADPF 635, conhecida como a ADPF das Favelas, que reuniu 66 participações como de amici curiae em dois dias (16 e 19 de abril de 2021 ), no STF.

Confira abaixo a íntegra do discurso da pesquisadora:

Fala ADPF 635 - 16 de abril.

 

Boa tarde, meus cumprimentos ao excelentíssimo ministro Edson Fachin, aos familiares e mães  de vítimas e movimentos de favela e a todas pessoas demais presentes. Agradeço a oportunidade de poder contribuir no avanço de medidas democráticas para nosso país, em tema tão relevante e urgente quanto a preservação de vidas humanas, sobretudo da vida de crianças, adolescentes e jovens negros e pobres que tem sido os maiores vitimados em ações violentas de agentes estatais que muitas das vezes resultam em mortes cujas circunstâncias raramente são plenamente esclarecidas.

 

No tempo que me é concernente na presente audiência, vou tratar diretamente da (1) Preservação de elementos da cena do crime e da (2) Melhoria da atuação dos órgãos de perícia técnico-científica, desde a minha contribuição na área de Antropologia como professora da UFSC, pesquisadora do GEPADIM vinculado ao INCT- InEAC, e consultoria prestada ao Instituto Vladimir Herzog consolidada no relatório intitulado Políticas de Perícia Criminal na Garantia de Direitos Humanos.

 

A investigação e elucidação de mortes violentas por meio de arma de fogo  é um tema de importância fundamental no contexto nacional brasileiro, onde historicamente, grupos de sujeitos racializados e socialmente vulnerabilizados têm sido as vítimas preferenciais de ações letais, sobretudo, da ação de agentes estatais. O atual quadro relativo a essas mortes tem exposto o quanto urge o fortalecimento de instituições responsáveis pela elucidação de crimes contra a vida e que atuem na construção da verdade em casos de mortes, especialmente quando essas envolvem recursos do Estado, pois resoluções de homicídios dolosos e decorrentes de intervenção policial demonstra que a impunidade tem sido a regra. Mais do que responsabilizar e punir seus autores individualmente, as investigações devem garantir às vítimas e seus familiares o direito ao luto de forma digna, respeitando sua memória, afetos e valores, o direito à ampla defesa daqueles acusados desses crimes e uma resposta cidadã a toda sociedade diante de práticas que reproduzem as violências estruturais e históricas no Brasil. A manutenção da hierarquização, entre aqueles que têm suas vidas reconhecidas diante da justiça e aqueles mortos que são esquecidos nos meandros do estado, segue em marcha sendo a falta de provas técnico-científicas com credibilidade um dos fatores primordiais para esta impunidade.

 

Neste sentido, irei expor argumentos que visem fortalecer a necessidade de autonomia  independência e imparcialidade das instituições estatais responsáveis pela construção de provas periciais de cunho criminal e legista, promovendo a verdade sobre fatos que podem tanto responsabilizar a morte de uma pessoa quanto impedir que inocentes sejam acusados e condenados sem provas consistentes. O laudo pericial quando elaborado dentro de protocolos se configura como uma prova material fundamental na construção da verdade jurídica, atuando como instrumento pela defesa dos direitos e na garantia da justiça. Para tanto, peritos devem contar com condições adequadas para a manutenção da cadeia de custódia, do controle e gestão de evidências e elucidação de crimes contra a vida. A eficácia desses só será possível por meio de políticas públicas para a perícia técnico-científica autônoma, vinculadas a defesa dos direitos humanos com ampla participação da sociedade civil, incluindo familiares, sobreviventes, pesquisadores e movimentos sociais. 

 

Atualmente, a perícia técnico-científica no Brasil funciona sob os moldes de polícia, seja uma polícia autônoma ou um órgão no âmbito das polícias investigativas ou de segurança pública. Sua atuação em casos de homicídios deve se iniciar nos locais de crime e prosseguir por meio de exames do corpo, das evidências coletadas e de uma série de outros elementos que podem ser objeto de análise técnico - científica. Em situação de operações policiais, a preservação de locais de crime é uma ficção, e  muitas das vezes, os policiais envolvidos na operação são os mesmos que incidem e alteram diretamente a cena, podendo deste modo comprometer por completo a possibilidade de elucidação de um crime.

 

O caso da morte do menino João Pedro, de 14 anos, alvejado dentro de casa em operação conjunta da Polícia Federal e Civil em São Gonçalo explicita uma série de práticas convencionais nas operações policiais e nas investigações de mortes de jovens negros moradores de favela. A relação entre os investigados com os investigadores é uma das problemáticas fundamentais na elucidação e produção de verdade em casos de homicídios, pois permitem interferências na condução do inquérito policial e demonstram como se faz necessária a autonomia e independência da perícia técnico-científica na produção de provas periciais. No Rio de Janeiro esta funciona sob forma de departamento policial vinculado a Secretaria da Polícia Civil, possibilitando que agentes da mesma polícia que esteve na operação que matou João Pedro sejam os que investigam e produzem as provas que irão indicar a linha de investigação deste inquérito policial, apontando os responsáveis pela morte do adolescente.

 

Neste sentido, é fundamental discutir a função do inquérito policial como ferramenta extrajudicial de construção da verdade policial no Brasil que impede o acesso à justiça em casos de crime contra a vida. Pesquisas realizadas no âmbito do INCT-InEAC tem demonstrando a necessidade de elaboração de mecanismos mais eficazes de registro, investigação e indiciamento de suspeitos. Como no caso de homicídios decorrentes de intervenção policial, a judicialização imediata de execuções por policiais, estando investigadores e peritos vinculados de modo autônomo ao judiciário, com investigação conduzida pelo Ministério Público com apoio da Defensoria Pública, configurando os órgãos de perícia um serviço elementar ao judiciário. Nessa reconfiguração, a cadeia de custódia não enfrentaria riscos pela ingerência direta daqueles que poderiam ser responsabilizadas pela produção de mortes, pondo em risco provas fundamentais de serem invalidadas e impossibilitando a resolução de crimes devido a manipulação indevida de evidências ainda em fase policial.

 

Seguido a este ponto, as alterações realizadas pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 trouxeram mudanças estruturais ao regramento penal e de processo penal em diferentes aspectos. Conhecida como Lei do Pacote Anticrime, foi a partir desta lei que a cadeia de custódia passou a ser normatizada, no escopo dos artigos 158-A a 158-F do Código Penal. Sob o Capítulo II, que passou de 'Do Exame De Corpo De Delito e Das Perícias Em Geral’ para 'Do Exame De Corpo De Delito, Da Cadeia De Custódia e Das Perícias Em Geral’, a cadeia de custódia adquiriu centralidade em relação às práticas de perícia e investigação. Tais mudanças enfrentam desafios e dificuldades que passam desde falta de recurso materiais, déficit de profissionais, a ausência de protocolos consolidados e a falta de tecnologia e infraestrutura adequadas à gestão de evidências e controle de vestígios criminais, além de sobretudo, a falta de preservação de locais de crime e intervenções na garantia de condições de trabalhos dos peritos.

 

No âmbito legislativo, o debate tem sido em torno da criação de um modelo nacional de Polícia Científica, como tem sido discutido no congresso via a PEC 76/2019 para alteração do art. 144 da CF. Tal proposição apresenta pelo menos 2 problemas de ordem distintas, mas que se relacionam. A primeira é prescindir do termo “técnico-científico” utilizando-se apenas a expressão ”policia científica”, noção que remete à criminologia positivista do século XIX e seu discurso legitimador da união do direito com a medicina, promovendo um reducionismo biológico e racista, tal construção também foi acionada no contexto de exceção do regime nazista que se utilizou de um “complexo policial científico” para investigar e criminalizar determinados marcadores raciais e biológicos contra judeus, ciganos, homossexuais e pessoas com deficiência. Valendo, inclusive do uso de seres humanos como parte de experimentos pseudo - científicos em nome do direito, da lei e da ordem. A criação na constituição federal de uma “polícia científica” põe em risco uma série de garantias éticas e legais vigentes no país.

 

A segunda problemática é a criação de uma polícia específica, nos moldes acima descritos, para tratar de matéria que não tem demonstrando sucesso ao se manter sob domínio das forças policiais. Criar uma polícia científica, ou ainda técnico-científica, seria uma forma de fortalecer a desvinculação da perícia como parte das polícias civis mas manteria o status de agente policiais aos peritos, o que limitaria sua atuação e manteria o orçamento destinado a essa agenda subsidiário a pasta de Segurança Pública, notadamente voltadas a repressão e o uso da força, que têm atuado de forma cada vez mais militarizada e letal nas diferentes partes do país.. Tal vinculação gera uma série de restrições à sua atuação de forma idônea, em virtude do seu posicionamento como órgão de investigação e acusação. Assim, para que a perícia funcione dentro dos moldes de uma política pública que fortaleça suas atribuições técnico-científicas é fundamental que esta deixe de ser um órgão policial e passe a ser um serviço público complementar às instituições judiciais como órgão técnico que aja em casos de morte, permitindo a elaboração de laudos independentes e consistentes, comprometidos com a construção da verdade e em nome da justiça, tal como indicam recomendações internacionais e nacionais, como da Comissão Interamericano de Direitos Humanos (CIDH, em condenação do estado brasileiro no Caso de Nova Brasília) e da Comissão Nacional da Verdade (cujo relatório foi finalizado em 2014).

 

Neste sentido, ao tratar de perícia oficial, devemos nos ater aos aspectos técnicos-científicos, isto é de aplicação e inovação de conhecimentos científicos produzido em ambiente acadêmico, mas com autonomia, e possibilidade de desenvolvimento de tecnologias que possam, por conseguinte, serem implementadas em prática para que esses profissionais possam atuar de forma independente na elucidação de fatos,

 

Com peritos atuando de forma independente, sociedade, organismos e instituições terão mais possibilidades de diálogo e de cobrança em sua atuação de forma engajada e comprometida com a verdade. Logo, para a implementação de políticas públicas nesta área, há de se considerar o contexto de atuação, levando em conta questões sobre o perfil de vítimas, as dinâmicas de morte e desaparecimento, as características geográficas, sociais e históricas dos territórios de atuação, as dinâmicas policiais e criminais que se desenvolvem e os dados estatísticos de crimes e de saúde. Ainda de modo a consolidar a perícia oficial de forma autônoma e independente, seus critérios de confiabilidade devem se pautar em protocolos unificados para/nas perícias, considerando o trabalho baseado em critérios técnico-científicos para identificação de um indício, na coleta de evidências e na produção de provas. Isso se revela no desenvolvimento de pesquisas capazes de analisar desde os âmbitos da atuação profissional dos peritos nas instituições, até as estatísticas sobre elucidação e condenação de crimes contra a vida. É, sobretudo, na análise qualitativa das práticas cotidianas, muitas vezes invisibilizada pelos fluxos rotineiros e resultados quantitativos, que se encontram os elementos significativos para se propor a implementação de políticas públicas na área de perícia.

 

A atuação das universidades públicas e a valorização da ciência produzida por acadêmicos, profissionais da produção do conhecimento que atuam no ensino, pesquisa e extensão a partir do interesse público é fundamental para o desenvolvi- mento de políticas públicas de perícia. Neste sentido, consideramos como a ação de pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento, formalizada via projetos de inovação científica e tecnológica de caráter interdisciplinar, na cooperação com órgãos estatais pode possibilitar uma atuação da perícia de forma autônoma e independente. Reforçando a necessidade de criação e fomento de centros de perícia autônomos em universidade e centros públicos de pesquisa, atuando como uma perícia humanizada, que trabalha na defesa dos direitos humanos, no combate ao racismo e em parceria com sobreviventes e familiares de vítimas como detentores de conhecimento necessário para a construção da verdade pericial.

 

Finalmente, é fundamental que políticas públicas de perícia estejam pautadas na defesa dos direitos humanos e em prol da memória, verdade, justiça e reparação. Desde modo, a perícia como processo de construção de verdade sobre fatos pretéritos também integra o escopo das políticas de memória e da luta em defesa pela vida, permitindo que se aprenda com o passado para evitar a repetição no presente. Seja pelo trabalho de arqueólogos e antropólogos forenses nas escavações, nos exames necroscópicos conduzidos por médicos legistas ou nos exames de local de crime realizados por peritos criminais, em diferentes contextos, a atual limitação da perícia demonstra a relevância de um trabalho comprometido com a atuação do estado na defesa e garantia dos direitos humanos e na luta pela vida.

 

Muito obrigada

 

A audiência pública sobre a ADPF 635, conhecida como a ADPF das Favelas, reuniu 66 participações como de amici curiae em dois dias (16 e 19 de abril de 2021 ), no STF. O objetivo foi coletar informações que subsidiem um 

plano de redução da letalidade policial no estado do Rio de Janeiro, incluindo a proibição das operações policiais durante a pandemia. 

Confira no link abaixo, do Observatóriosegurança.com.br,  os discursos completos de Jacqueline Muniz, Daniel Hirata, Michel Misse e Pablo Nunes.

http://observatorioseguranca.com.br/adpf-das-favelas-falas-de-jacqueline-muniz-daniel-hirata-michel-misse-e-mais/?fbclid=IwAR034ChBWlvw-16lQZRO8j5Y8ffXOUDjfE4mi13cpv9yUz1lAHWme2ktxhE

Sexta, 16 Abril 2021 16:10

REVISTA ELETRÔNICA CLAPSIDRA

Saiu a edição de número 15 da Revista CLEPSIDRA.  Destaques para o dossiê "Traços de mobilização popular: memória, protesto e política na Argentina e no Chile", coordenado por Ana Natalucci e Andrea Andújar, e a entrevista realizada por Santiago Garaño com a pesquisadora Sofía Tiscornia que fala sobre a sua trajetória, incluindo os primeiros anos do CELS e a criação da “Equipe de Antropologia Política e Jurídica”.

A Clepsidra é uma Revista Interdisciplinaria de Estudios sobre Memoria e que se propõe a ser um espaço de reflexão, intercâmbio e diálogo entre pesquisadores/as, a fim de contribuir com o crescimento e com a consolidação do campo de estudos sobre memória social, história recente e direitos humanos na Argentina e na América Latina, com projeção internacional de suas discussões e produções acadêmicas. Trata-se de uma iniciativa dos pesquisadores/as que integram o Nucleo de Estudios sobre Memoria do IDES e que, desde 2013, formam a Red Interdisciplinar de Estudios sobre Memoria Social (RIEMS).


Confira a Revista Clepsidra acessando o link https://ppct.caicyt.gov.ar/index.php/clepsidra/index 

Ou faça download do editorial no PDF abaixo em anexo 

 

 

 

 

 

OLEIROS DE ITABORAÍ: Identidade, Arte, Pão e Barro.

Nessa, Sexta-Feira 16 de abril, ás 19h,  lançamos pelo youtube da Casa de Cultura Heloisa Alberto Torres em Itaboraí o Curta Metragem OLEIROS DE ITABORAÍ: Identidade, Arte, pão e barro.

 

O documentário dirigido pelo jornalista Claudio Salles (INCT/INEAC) e com produção executiva de Alan Mota (CCHAT) traz depoimentos de ceramistas e artesãos que falam da sua arte, centenária tradição oleira na cidade, seus sonhos, dificuldades e expectativas de futuro. O vídeo é uma parceria do INCT/INEAC Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia- Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, com sede na UFF e a Casa de Cultura Heloisa Alberto Torres, em Itaboraí que aproveita esse momento de pandemia, para realizar atividades que não demandem aglomeração e sejam uma boa opção cultural para entreter as pessoas em suas casas, nesses tempos de necessário distanciamento social.

 

Para assistir acesse

https://www.youtube.com/watch?v=DmJpVn5NQD8

 

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