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Segunda, 19 Abril 2021 16:27

Participação de Flávia Medeiros na audiência pública da ADPF 635

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A antropóloga Flávia Medeiros Santos - Professora Adjunta do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora do INCT/INEAC também participou da audiência pública sobre a ADPF 635, conhecida como a ADPF das Favelas, que reuniu 66 participações como de amici curiae em dois dias (16 e 19 de abril de 2021 ), no STF.

Confira abaixo a íntegra do discurso da pesquisadora:

Fala ADPF 635 - 16 de abril.

 

Boa tarde, meus cumprimentos ao excelentíssimo ministro Edson Fachin, aos familiares e mães  de vítimas e movimentos de favela e a todas pessoas demais presentes. Agradeço a oportunidade de poder contribuir no avanço de medidas democráticas para nosso país, em tema tão relevante e urgente quanto a preservação de vidas humanas, sobretudo da vida de crianças, adolescentes e jovens negros e pobres que tem sido os maiores vitimados em ações violentas de agentes estatais que muitas das vezes resultam em mortes cujas circunstâncias raramente são plenamente esclarecidas.

 

No tempo que me é concernente na presente audiência, vou tratar diretamente da (1) Preservação de elementos da cena do crime e da (2) Melhoria da atuação dos órgãos de perícia técnico-científica, desde a minha contribuição na área de Antropologia como professora da UFSC, pesquisadora do GEPADIM vinculado ao INCT- InEAC, e consultoria prestada ao Instituto Vladimir Herzog consolidada no relatório intitulado Políticas de Perícia Criminal na Garantia de Direitos Humanos.

 

A investigação e elucidação de mortes violentas por meio de arma de fogo  é um tema de importância fundamental no contexto nacional brasileiro, onde historicamente, grupos de sujeitos racializados e socialmente vulnerabilizados têm sido as vítimas preferenciais de ações letais, sobretudo, da ação de agentes estatais. O atual quadro relativo a essas mortes tem exposto o quanto urge o fortalecimento de instituições responsáveis pela elucidação de crimes contra a vida e que atuem na construção da verdade em casos de mortes, especialmente quando essas envolvem recursos do Estado, pois resoluções de homicídios dolosos e decorrentes de intervenção policial demonstra que a impunidade tem sido a regra. Mais do que responsabilizar e punir seus autores individualmente, as investigações devem garantir às vítimas e seus familiares o direito ao luto de forma digna, respeitando sua memória, afetos e valores, o direito à ampla defesa daqueles acusados desses crimes e uma resposta cidadã a toda sociedade diante de práticas que reproduzem as violências estruturais e históricas no Brasil. A manutenção da hierarquização, entre aqueles que têm suas vidas reconhecidas diante da justiça e aqueles mortos que são esquecidos nos meandros do estado, segue em marcha sendo a falta de provas técnico-científicas com credibilidade um dos fatores primordiais para esta impunidade.

 

Neste sentido, irei expor argumentos que visem fortalecer a necessidade de autonomia  independência e imparcialidade das instituições estatais responsáveis pela construção de provas periciais de cunho criminal e legista, promovendo a verdade sobre fatos que podem tanto responsabilizar a morte de uma pessoa quanto impedir que inocentes sejam acusados e condenados sem provas consistentes. O laudo pericial quando elaborado dentro de protocolos se configura como uma prova material fundamental na construção da verdade jurídica, atuando como instrumento pela defesa dos direitos e na garantia da justiça. Para tanto, peritos devem contar com condições adequadas para a manutenção da cadeia de custódia, do controle e gestão de evidências e elucidação de crimes contra a vida. A eficácia desses só será possível por meio de políticas públicas para a perícia técnico-científica autônoma, vinculadas a defesa dos direitos humanos com ampla participação da sociedade civil, incluindo familiares, sobreviventes, pesquisadores e movimentos sociais. 

 

Atualmente, a perícia técnico-científica no Brasil funciona sob os moldes de polícia, seja uma polícia autônoma ou um órgão no âmbito das polícias investigativas ou de segurança pública. Sua atuação em casos de homicídios deve se iniciar nos locais de crime e prosseguir por meio de exames do corpo, das evidências coletadas e de uma série de outros elementos que podem ser objeto de análise técnico - científica. Em situação de operações policiais, a preservação de locais de crime é uma ficção, e  muitas das vezes, os policiais envolvidos na operação são os mesmos que incidem e alteram diretamente a cena, podendo deste modo comprometer por completo a possibilidade de elucidação de um crime.

 

O caso da morte do menino João Pedro, de 14 anos, alvejado dentro de casa em operação conjunta da Polícia Federal e Civil em São Gonçalo explicita uma série de práticas convencionais nas operações policiais e nas investigações de mortes de jovens negros moradores de favela. A relação entre os investigados com os investigadores é uma das problemáticas fundamentais na elucidação e produção de verdade em casos de homicídios, pois permitem interferências na condução do inquérito policial e demonstram como se faz necessária a autonomia e independência da perícia técnico-científica na produção de provas periciais. No Rio de Janeiro esta funciona sob forma de departamento policial vinculado a Secretaria da Polícia Civil, possibilitando que agentes da mesma polícia que esteve na operação que matou João Pedro sejam os que investigam e produzem as provas que irão indicar a linha de investigação deste inquérito policial, apontando os responsáveis pela morte do adolescente.

 

Neste sentido, é fundamental discutir a função do inquérito policial como ferramenta extrajudicial de construção da verdade policial no Brasil que impede o acesso à justiça em casos de crime contra a vida. Pesquisas realizadas no âmbito do INCT-InEAC tem demonstrando a necessidade de elaboração de mecanismos mais eficazes de registro, investigação e indiciamento de suspeitos. Como no caso de homicídios decorrentes de intervenção policial, a judicialização imediata de execuções por policiais, estando investigadores e peritos vinculados de modo autônomo ao judiciário, com investigação conduzida pelo Ministério Público com apoio da Defensoria Pública, configurando os órgãos de perícia um serviço elementar ao judiciário. Nessa reconfiguração, a cadeia de custódia não enfrentaria riscos pela ingerência direta daqueles que poderiam ser responsabilizadas pela produção de mortes, pondo em risco provas fundamentais de serem invalidadas e impossibilitando a resolução de crimes devido a manipulação indevida de evidências ainda em fase policial.

 

Seguido a este ponto, as alterações realizadas pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 trouxeram mudanças estruturais ao regramento penal e de processo penal em diferentes aspectos. Conhecida como Lei do Pacote Anticrime, foi a partir desta lei que a cadeia de custódia passou a ser normatizada, no escopo dos artigos 158-A a 158-F do Código Penal. Sob o Capítulo II, que passou de 'Do Exame De Corpo De Delito e Das Perícias Em Geral’ para 'Do Exame De Corpo De Delito, Da Cadeia De Custódia e Das Perícias Em Geral’, a cadeia de custódia adquiriu centralidade em relação às práticas de perícia e investigação. Tais mudanças enfrentam desafios e dificuldades que passam desde falta de recurso materiais, déficit de profissionais, a ausência de protocolos consolidados e a falta de tecnologia e infraestrutura adequadas à gestão de evidências e controle de vestígios criminais, além de sobretudo, a falta de preservação de locais de crime e intervenções na garantia de condições de trabalhos dos peritos.

 

No âmbito legislativo, o debate tem sido em torno da criação de um modelo nacional de Polícia Científica, como tem sido discutido no congresso via a PEC 76/2019 para alteração do art. 144 da CF. Tal proposição apresenta pelo menos 2 problemas de ordem distintas, mas que se relacionam. A primeira é prescindir do termo “técnico-científico” utilizando-se apenas a expressão ”policia científica”, noção que remete à criminologia positivista do século XIX e seu discurso legitimador da união do direito com a medicina, promovendo um reducionismo biológico e racista, tal construção também foi acionada no contexto de exceção do regime nazista que se utilizou de um “complexo policial científico” para investigar e criminalizar determinados marcadores raciais e biológicos contra judeus, ciganos, homossexuais e pessoas com deficiência. Valendo, inclusive do uso de seres humanos como parte de experimentos pseudo - científicos em nome do direito, da lei e da ordem. A criação na constituição federal de uma “polícia científica” põe em risco uma série de garantias éticas e legais vigentes no país.

 

A segunda problemática é a criação de uma polícia específica, nos moldes acima descritos, para tratar de matéria que não tem demonstrando sucesso ao se manter sob domínio das forças policiais. Criar uma polícia científica, ou ainda técnico-científica, seria uma forma de fortalecer a desvinculação da perícia como parte das polícias civis mas manteria o status de agente policiais aos peritos, o que limitaria sua atuação e manteria o orçamento destinado a essa agenda subsidiário a pasta de Segurança Pública, notadamente voltadas a repressão e o uso da força, que têm atuado de forma cada vez mais militarizada e letal nas diferentes partes do país.. Tal vinculação gera uma série de restrições à sua atuação de forma idônea, em virtude do seu posicionamento como órgão de investigação e acusação. Assim, para que a perícia funcione dentro dos moldes de uma política pública que fortaleça suas atribuições técnico-científicas é fundamental que esta deixe de ser um órgão policial e passe a ser um serviço público complementar às instituições judiciais como órgão técnico que aja em casos de morte, permitindo a elaboração de laudos independentes e consistentes, comprometidos com a construção da verdade e em nome da justiça, tal como indicam recomendações internacionais e nacionais, como da Comissão Interamericano de Direitos Humanos (CIDH, em condenação do estado brasileiro no Caso de Nova Brasília) e da Comissão Nacional da Verdade (cujo relatório foi finalizado em 2014).

 

Neste sentido, ao tratar de perícia oficial, devemos nos ater aos aspectos técnicos-científicos, isto é de aplicação e inovação de conhecimentos científicos produzido em ambiente acadêmico, mas com autonomia, e possibilidade de desenvolvimento de tecnologias que possam, por conseguinte, serem implementadas em prática para que esses profissionais possam atuar de forma independente na elucidação de fatos,

 

Com peritos atuando de forma independente, sociedade, organismos e instituições terão mais possibilidades de diálogo e de cobrança em sua atuação de forma engajada e comprometida com a verdade. Logo, para a implementação de políticas públicas nesta área, há de se considerar o contexto de atuação, levando em conta questões sobre o perfil de vítimas, as dinâmicas de morte e desaparecimento, as características geográficas, sociais e históricas dos territórios de atuação, as dinâmicas policiais e criminais que se desenvolvem e os dados estatísticos de crimes e de saúde. Ainda de modo a consolidar a perícia oficial de forma autônoma e independente, seus critérios de confiabilidade devem se pautar em protocolos unificados para/nas perícias, considerando o trabalho baseado em critérios técnico-científicos para identificação de um indício, na coleta de evidências e na produção de provas. Isso se revela no desenvolvimento de pesquisas capazes de analisar desde os âmbitos da atuação profissional dos peritos nas instituições, até as estatísticas sobre elucidação e condenação de crimes contra a vida. É, sobretudo, na análise qualitativa das práticas cotidianas, muitas vezes invisibilizada pelos fluxos rotineiros e resultados quantitativos, que se encontram os elementos significativos para se propor a implementação de políticas públicas na área de perícia.

 

A atuação das universidades públicas e a valorização da ciência produzida por acadêmicos, profissionais da produção do conhecimento que atuam no ensino, pesquisa e extensão a partir do interesse público é fundamental para o desenvolvi- mento de políticas públicas de perícia. Neste sentido, consideramos como a ação de pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento, formalizada via projetos de inovação científica e tecnológica de caráter interdisciplinar, na cooperação com órgãos estatais pode possibilitar uma atuação da perícia de forma autônoma e independente. Reforçando a necessidade de criação e fomento de centros de perícia autônomos em universidade e centros públicos de pesquisa, atuando como uma perícia humanizada, que trabalha na defesa dos direitos humanos, no combate ao racismo e em parceria com sobreviventes e familiares de vítimas como detentores de conhecimento necessário para a construção da verdade pericial.

 

Finalmente, é fundamental que políticas públicas de perícia estejam pautadas na defesa dos direitos humanos e em prol da memória, verdade, justiça e reparação. Desde modo, a perícia como processo de construção de verdade sobre fatos pretéritos também integra o escopo das políticas de memória e da luta em defesa pela vida, permitindo que se aprenda com o passado para evitar a repetição no presente. Seja pelo trabalho de arqueólogos e antropólogos forenses nas escavações, nos exames necroscópicos conduzidos por médicos legistas ou nos exames de local de crime realizados por peritos criminais, em diferentes contextos, a atual limitação da perícia demonstra a relevância de um trabalho comprometido com a atuação do estado na defesa e garantia dos direitos humanos e na luta pela vida.

 

Muito obrigada

 

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