A ética dos operadores do Direito e o espírito da Lava Jato
PEDRO HEITOR BARROS GERALDO
ROBERTO KANT DE LIMA
05/03/2021
Neste momento, a revisão das práticas do Ministério Público Federal e da Justiça Federal em relação à Lava Jato tem apontado para um grande desconforto das autoridades em lidar com a maneira de organizar a justiça, especialmente a criminal, e recuperar uma confiança pública indispensável ao funcionamento das instituições nas sociedades democráticas. A revista Veja informou que o Min. Luiz Fux teria dito sobre a eventual anulação dos processos da Lava Jato que “Não quero nem pensar nisso. Um absurdo. Uma vergonha nacional. O respeito ao STF vai para o esgoto.” (BONIN, 2021)
O título deste artigo faz uma alusão direta ao livro do sociólogo alemão Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo. Para ele, a secularização das relações sociais na vida moderna ajuda a compreender como os valores que orientam a maneira de fazer, a ética protestante, acomodou as finalidades do espírito do capitalismo. Assim os sentidos religiosos da ética protestante estavam encarnados no cumprimento dos acordos, na dedicação ao trabalho e na crença na prosperidade como um sinal da graça divina.
Por sua vez, o espírito do capitalismo orienta as práticas sociais para a acumulação do lucro como finalidade da ação social. Os valores da ética protestante foram ressignificados progressivamente pelo espírito do capitalismo. Para Weber, isto teria favorecido o desenvolvimento do capitalismo nas sociedades protestantes. Esta hipótese nos ajuda a pensar como as práticas do mundo moderno são capazes de serem ressiginificadas a partir de novas vocações.
Numa entrevista ao Jota, o Min. Gilmar Mendes explicitou um constrangimento sobre a “força tarefa”: “o que foi que nós fizemos de errado para permitir esse tipo de coisa?” (“Casa JOTA”, 2021). Esta pergunta tem sentidos sócio-antropológicos sobre os quais se pode fazer muitos juízos de valor. Entretanto, podemos fazer duas reflexões a partir deste questionamento: a primeira se relaciona com o modelo de organização da justiça e como ele se produz e reproduz através das práticas dos operadores do direito; a segunda se refere à identificação do erro profissional pelos agentes judiciários. Estas duas questões estão imbricadas na medida em que o modelo de organização da justiça garante a revisão das suas decisões como uma forma de proteger os cidadãos de eventuais erros, mas também para preservar “o respeito” da sociedade aos tribunais, como teria sugerido o Min. Fux.
A ética dos operadores do direito
No Brasil, a ética dos operadores do direito naturaliza a proximidade organizacional e social entre promotores e juízes sem se questionar sobre suas razões inquisitoriais de sua organização (KANT DE LIMA, 2013). A presença do Tribunal do Santo Ofício, da religião Católica Apostólica Romana como religião oficial do estado e da forma como se constituíram as Faculdades de Direito preservaram a reprodução deste conhecimento. Outro exemplo da permanência destas práticas foi a decisão do Conselho Nacional de Justiça em 2007 preservando os crucifixos nos tribunais.
A mudança de regimes políticos produziu uma transformação das finalidades das instituições judiciais, mas não necessariamente das práticas de decisão aprendidas pelos membros da justiça no seu cotidiano de trabalho. O próprio inquérito policial é um instrumento jurídico criado no Império. Mais recentemente, o pacote medidas anticorrupção amplamente apoiado pelos lavajatistas continha a figura do juiz de garantias. Entretanto, o Min. Fux decidiu monocraticamente suspender a eficácia de uma norma aprovada pelo Congresso Nacional para realizar audiências públicas para debater o tema entre os amici curiae — os amigos da corte — que são autorizados a opinar pelo próprio Ministro (FREITAS, 2020).
A confusão entre acusação e juiz é própria dos modelos inquisitoriais de organização da justiça, como é o modelo francês e o brasileiro, embora tenham diferenças nas formas de se tratar o erro judicial.
No entanto, a forma de se ensinar processo civil e penal no Brasil dificulta esta compreensão pelos operadores que dividem a fase inquisitória no inquérito policial e identificam nossas práticas judiciais como acusatórias quando e onde se iniciaria o processo. Para os processualistas, a distinção está fundada na possibilidade de apresentar uma defesa pelo exercício do contraditório.
Todavia esta distinção é insuficiente para se compreender o modelo de organização da justiça já que o que as distingue é a divisão do trabalho (e dos poderes) entre os diferentes atores da justiça e as formas de constrangimento nas formas de administração de conflitos. A divisão do trabalho entre os atores é diferente, mas os processualistas explicam que é meramente um problema processual de instrução probatória (GRINOVER, 1999).
O modelo inquisitorial de fato é conhecido por deixar menos espaço para a defesa, pois há uma concorrência nos poderes instrutórios de acusação e juiz contra o acusado. Mas também pela dificuldade organizacional de se limitar os poderes do juiz e do promotor. A distinção dos modelos inquisitoriais francês e brasileiro reside justamente na identificação dos limites profissionais que permitem identificar o erro judicial.
Na França a relação de proximidade entre a polícia e o ministério público se realiza de forma mais cooperativa (MOUHANNA, 2011). Afinal, os promotores (considerados substitutos do procurador) devem se orientar por políticas criminais comuns estabelecidas pela instituição. Além disto, a denúncia produz uma responsabilização pelo engajamento da ação, pois o “substituto do procurador” atua em nome de toda a instituição (e não particularmente segundo suas próprias convicções) e não pode desistir da denúncia (PAES, 2013).
Assim, há funções complementares — e não suplementares, e eventualmente concorrentes — distintas dos agentes, o que permitiria identificar suas respectivas responsabilidades. O código de processo penal francês indica como devem ser as relações entre os diferentes atores no processo como o juiz, o promotor, o “officier du ministère public” (um policial indicado pelo promotor para substituí-lo na audiência judicial na primeira instância); o juiz de instrução; o juiz da detenção e das liberdades; e a polícia judiciária. E em quais circunstâncias as decisões podem ser proferidas e supervisionadas.
Para os juristas franceses, o processo deve ter um limite para a constituição dos fatos. O “Tribunal de Police” é a primeira instância da justiça francesa com apenas um juiz, uma exceção nas formas de organização da justiça francesa. Nesta jurisdição, o “officier du ministère public” (um policial indicado pelo promotor) realiza os atos jurisdicionais de requerer a pena (GERALDO; BARÇANTE, 2017). Os requerimentos devem seguir uma política persecutória institucional definida pelo “Procureur da République” que se faz substituir e em nome de quem agem os demais promotores franceses, que não têm muita autonomia.
Esta complexidade do trabalho judiciário permite compreender como os constrangimentos institucionais são construídos na interação entre estes atores. Dois exemplos também demonstram uma limitação ao poder de julgar prisões, sejam as temporárias para investigação, que nos casos graves podem chegar a quatro dias, e as provisórias, que devem ser revisadas ao fim das decisões e que não podem ultrapassar quatro meses.
O julgamento dos delitos e dos crimes é uma outra diferença organizacional significativa, pois em regra é realizado por um colegiado de três juízes. Ao passo que no Brasil, a regra é o julgamento monocrático, mesmo nos colegiados (SETA, 2015). De forma consciente, a proximidade entre os membros da organização judiciária francesa produz uma necessidade de dar mais transparência e racionalidade à divisão do trabalho judicial. O procedimento é uma limitação à forma de fazer visando prevenir decisões arbitrárias.
O espírito da Lava Jato
O espírito da Lava Jato é hoje melhor informado pela série de reportagens da Vazajato do Intercept e do reconhecimento da autenticidade das conversas pela operação “spoofing”, além das reiteradas afirmações do juiz Moro de que não haveria nada demais nessas interações, que seriam comuns entre os agentes públicos no processo penal (KANT DE LIMA; MOUZINHO, 2016). A proximidade entre os procuradores e o juiz do caso era naturalizada no conteúdo das conversas discutindo estratégias de acusação com o juiz.
O que caracteriza o espírito da Lava Jato é a obsessão persecutória contra uma suposta e atávica corrupção “sistêmica” entre os políticos e empresários que os procuradores buscavam demonstrar a todo custo. Este cacoete foi chancelado e justificado publicamente em decisões por juízes, desembargadores e ministros. As ações foram defendidas por diferentes meios de comunicação que construíram a figura do juiz-herói ao qual era autorizado o justiçamento contra um inimigo comum, os réus nos processos criminais. Mas os profissionais da mídia buscavam informações em práticas conhecidas como “vazamentos seletivos” de informações de responsabilidade dos operadores do direito. A teoria implícita do poder dos lavajatistas é a de que é se pode descumprir a regra para fazê-la cumprir.
Neste momento, testemunhamos o fim da força tarefa, que já estava bastante afetada pela transição do juiz-herói ao Ministério da Justiça. Na falta de outro herói ou heroína, a força tarefa foi sendo exposta mais pela reação às consequências dramáticas em termos das garantias de direitos aos acusados (e condenados) e dos usos políticos de informações sigilosas — como o grampo da Presidenta da República — do que por dever de transparência dos rituais de justiça. O espírito da Lava Jato encarnou em práticas conhecidas e naturalizadas pelos atores da justiça. A recorrente corroboração destas práticas, inclusive pelos órgãos correcionais, produziu um ambiente propício para o uso ilimitado dos poderes judiciários.
A organização da justiça e o erro judicial
O problema do erro profissional, assim, se apresenta como um desafio institucional. Afinal, estas práticas ordinárias dos operadores do direito são naturalizadas nos fóruns e tribunais brasileiros. No entanto, são tratadas sempre como um problema de culpabilização, em que basta eliminar da instituição aquele que praticou o erro e o caso está resolvido. Entretanto, as condições de produção do que pode ser entendido como erro continuam.
Uma outra comparação com o contexto francês pode ajudar a compreender a distinção. Em 2004, o jovem juiz de instrução Fabrice Burgaud prendeu provisoriamente dezoito pessoas, inclusive pais das vítimas sob a suspeita de formar uma rede internacional de pedofilia. Os relatórios dos experts confirmavam as declarações das crianças em relação à pedofilia. Um dos presos morre na prisão — uma das versões é de suicídio — suscitando muita desconfiança sobre a instrução do processo. Durante as audiências, a credibilidade dos pareceres psicológicos foi colocada em questão com a retratação das declarações pelas crianças. No final de 2005, os réus foram absolvidos.
O procurador geral e o presidente da república apresentaram suas escusas aos acusados em nome da República. Mais tarde dois acusados foram condenados. O próprio juiz de instrução recebeu a sanção mais leve aos magistrados pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM). Afinal, a revisão das decisões no processo permitiu concluir que ele não cometeu nenhum erro grave. O trabalho foi realizado da forma como ele o aprendeu na Escola Nacional da Magistratura. Este erro judiciário foi revisado por uma comissão parlamentar de inquérito para tratar dos disfuncionamentos da justiça neste caso e de formular propostas para evitar sua repetição. Isto resultou em mudanças na seleção e ensino profissional desta função pública de julgar dentre outras consequências politicamente negativas para a magistratura.
A revisão do erro neste contexto ensejou uma reflexão sobre os limites da atividade de julgar. Esta forma de organização inquisitória explícita é limitada pela divisão do trabalho de julgar entre os magistrados “du siège”, o juiz, e “du parquet”, o promotor, que pertencem à mesma instituição e podem mudar de posição ao longo da carreira. Se por um lado fazem parte da mesma instituição, eles se distinguem pela performance durante o ritual, pois os promotores se levantam para fazer suas requisições e permitir ao público presente identificar quem é quem na audiência.
Além disto, as formas das atividades realizadas entre os profissionais são especificadas e explícitas, seja a decisão colegiada, seja a revisão por diferentes juízes, mas também aquelas que são da competência dos secretários — os greffiers — encarregados de zelar pela lisura do cumprimento das regras de processo, e da organização do próprio Ministério Público que produz políticas comuns para o trabalho institucional de acusar.
Em nossas práticas, a inquisitorialidade é implícita e, consequentemente, carece de limites explícitos. Juízes e promotores concorrem na instrução e estes últimos buscam preservar a proximidade — inclusive espacial — com a magistratura durante o ritual das audiências. Ao permanecer ao lado dos juízes nas pequenas e cada vez mais restritas salas de audiência, os representantes do Ministério Público buscam legitimar uma confusão — ou até mesmo uma competição — no exercício das funções institucionais de controle social repressivo — ao invés de construir uma distância necessária para seu trabalho como parte no processo.
O erro judiciário é um inconveniente tratado sempre através de práticas de culpabilização; e, em consequência, uma ausência de responsabilização dos agentes pelo mau desempenho sistemático de tarefas claramente diferenciadas para que os erros não se repitam. A naturalização dos poderes de juízes e magistrados brasileiros na utilização de critérios particulares, de seu livre convencimento, para identificar quais são os fatos, qual é o procedimento e quais são os significados das regras de direito não produz limites que definam responsabilidades no trabalho (MENDES, 2012).
Por isso, neste sistema, quando por algum motivo ocorre a “descoberta” da possibilidade de um erro, só é possível a culpabilização individual do agente que o cometeu. Ao contrário, a discussão sobre o erro profissional na França passa necessariamente por uma discussão sobre o modelo de organização da justiça e forma de distribuição explícita das diferentes funções dos agentes, que permitem a sua proteção, bem como a dos jurisdicionados, em casos dos eventuais – e inevitáveis – erros profissionais.
Os modelos acusatoriais ou inquisitoriais desenvolveram mecanismos para limitar o arbítrio dos operadores da justiça, a partir da divisão do trabalho. No contexto brasileiro, este questionamento é sempre pertinente, mas exige dos profissionais da justiça mais do que se preocupar com a reputação das Cortes, pois o espírito da Lava Jato explicitou e imantou as práticas inquisitoriais seculares dos operadores com um sentido ainda mais repressivo, tornando-as publicamente legítimas e juridicamente inquestionáveis. Não por outra razão, ao favorecer o desenvolvimento do aparato repressivo, a especialização da atividade de “combater a corrupção” no judiciário foi qualificada pelo Min. Gilson Dipp como “o maior capital político do judiciário brasileiro de todos os tempos” (MIGALHAS, 2019). Em consequência, o reconhecimento da efetividade prática e simbólica do poder legitimou a ausência de limites para o seu exercício.
Estes limites passam a ser vistos como obstáculos para a realização da justa repressão. Ora, a explicitação da especialização funcional surgiria aqui como um recurso para preservar a tradição inquisitorial brasileira de garantir muita autonomia de organização do trabalho cotidiano dos agentes judiciários, limitando, no entanto, a absoluta independência para julgar aos juízes, já que não há, em nosso processo, critérios explícitos e transparentes para limitá-la, além de sua própria moralidade e reputação corporativa (LUPETTI BAPTISTA, 2013).
O aumento do “capital político” dos juízes e promotores associado às práticas inquisitoriais tornam o problema do erro ainda mais complexo, uma vez que a própria organização da justiça impede que as questões sejam formuladas desta maneira. O que parece e faz a sociedade crer que estes profissionais não erram. Se de um lado a força tarefa se desmonta, por outro o espírito da Lava Jato continua presente nas práticas comuns no cotidiano dos fóruns.
Assim, quando observamos a cruz encravada ao lado do brasão da república no plenário do STF podemos refletir em nome de quem os ministros realizam seu trabalho e quais os sentidos os ministros esperam que a sociedade compreenda de seu trabalho. O questionamento do Min. Gilmar Mendes coloca no centro das preocupações uma reflexão mais ampla sobre o alcance da compreensão dos próprios operadores para se tratar do problema do erro na justiça e a forma de organizar os poderes na administração dos conflitos numa sociedade cada vez mais atenta aos segredos guardados entre a cruz e a espada e trazidos ao conhecimento público por artimanhas digitais.
Referências bibliográficas
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FREITAS, H. Fux revoga decisão de Toffoli e suspende juiz de garantias por tempo indeterminado. JOTA Info, 22 jan. 2020.
GERALDO, P. H. B.; BARÇANTE, L. F. DE S. A (des)confiança na polícia: uma comparação entre a relação do Ministério Público e a polícia no Brasil e na França. Civitas – Revista de Ciências Sociais, v. 17, n. 1, p. 159–176, 9 maio 2017.
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PEDRO HEITOR BARROS GERALDO – Professor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC-UFF), do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito.
ROBERTO KANT DE LIMA – Professor Titular de Antropologia - UFF e UVA, Coordenador do NEPEAC/INCT-InEAC - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos/PROPPi/UFF, Cientista do Nosso Estado da FAPERJ, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 1A do CNPq e Membro da Academia Brasileira de Ciências.