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O site do Inct/Ineac reproduz aqui o artigo O Sistema Judicial brasileiro em ação e a impossibilidade da igualdade jurídica no Brasil, publicado nessa segunda , dia 1/3/2021, no Blog Ciência e Matemática do O GLOBO, escrito pelos pesquisadores Fernanda Duarte (UNESA, UFF), Rafael Mario Iorio Filho (UNESA, UFF) e Bárbara Gomes Lupetti Baptista (UVA, UFF), todos vinculados ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).
IGUALDADE JURÍDICA NO BRASIL
O Sistema Judicial brasileiro em ação e a impossibilidade da igualdade jurídica no Brasil
01/03/2021 • 10:00
Fernanda Duarte, Rafael Mario Iorio Filho, Bárbara Gomes Lupetti Baptista
A afirmação de que a sociedade brasileira se estrutura de forma hierarquizada, reproduzindo uma ética aristocrática, em vez de republicana, permite questionar se a tarefa de administrar conflitos através da aplicação das leis pelo Juiz contribui para o reforço dessa hierarquização, quando vemos que casos semelhantes são tratados de forma desigual pelos tribunais, a partir dos sensos de justiça dos magistrados, que usam suas formas particularizadas de interpretar os fatos, as provas e as leis. Ora, se essas formas particularizadas não refletem o princípio da igualdade jurídica, que está escrito na Constituição e determina que todos são iguais na lei e na aplicação da lei, e afinal, se os juízes têm o dever de tratar os cidadãos com igualdade, como é possível que o resultado prático da atividade jurisdicional seja a desigualdade na aplicação das leis?
Ensaiamos nossa resposta partindo da hipótese de que o nosso sistema de justiça, para além de refletir aspectos de nossa cultura social (que opera a partir da desigualdade, conforme já ressaltaram, desde o final dos anos 70, os antropólogos Roberto DaMatta, Roberto Kant de Lima e Luís Roberto Cardoso de Oliveira), também se estrutura a partir de uma maneira específica de decidir (que chamamos de gramática decisória) que está fundada na regra da desigualdade.
Os dados que temos coletado em nossas pesquisas sugerem existir categorias implícitas ao sistema jurídico brasileiro, que estruturam processos mentais decisórios dos juízes e que resultam na atuação desigual do próprio Poder Judiciário, com a manutenção da desigualdade jurídica – que asssim segue naturalizada e invisível. Essas categorias são: a autorreferencialidade; o juiz bricoleur e a lógica do contraditório.
A autorreferencialidade está representada na frase: “cada cabeça é uma sentença” e indica a posição de centralidade que o Juiz ocupa no processo judicial. Tanto assim, que outra frase comum entre advogados é “o bom advogado conhece a Lei; o melhor conhece o Juiz”.
Essa centralidade permite aos magistrados conduzirem os processos como melhor entenderem a despeito do que está escrito na lei, seja autorizando ou negando a produção de certas provas; ouvindo, ou não, testemunhas; marcando, ou não, audiências; permitindo, ou não, que sejam realizadas perícias técnicas....
Na prática, o juiz é o “dono do processo” e sendo o “dono”, ele pode conduzir o caso como quiser, cumprindo apenas exigências retórico-formais de fundamentação, pois esse exercício de tomada de decisão passa por suas interpretações pessoais sobre os fatos, as provas e os significados atribuídos às Leis, conforme suas convicções.
Associado a isso, temos o juiz bricoleur ilustrado na expressão “cada caso é um caso”. A ideia do bricoleur é explorada por Levi Strauss, em O Pensamento Selvagem, e aqui a utilizamos porque o Judiciário atua como uma artesão, em suas decisões, descontextualizando os sentidos das palavras para ressignificá-los de modo completamente novo e até inédito, distantes do que originalmente queriam dizer.
E, se estamos comparando o modus operandi do bricoleur com o Judiciário brasileiro, fundamental se torna conhecer de que ‘estante’ e ‘materiais’ os juízes se servem para a construção de suas decisões. Este repertório funciona regularmente a partir de estratégias argumentativas que desconsideram os contextos históricos; referenciam obras estrangeiras concebidas para outros sistemas jurídicos que não o brasileiro, pressupondo um Direito universal; ou mesmo adotam o uso de fragmentos da doutrina jurídica e do processo, muitas vezes, a partir de argumentos de autoridade, instrumentalizando-os como bem lhes aprouver, e, portanto, fora de seus sentidos originários.
Sendo assim, se para este juiz bricoleur as interpretações sobre fatos, provas e leis são singulares, não existe o dever ou o compromisso de estabelecer parâmetros e procedimentos universalizantes que constranjam sua pessoalidade para possibilitar o reconhecimento da semelhança entre casos e cidadãos. Se não há esse reconhecimento de semelhanças, fica inviabilizada uma aplicação universalizante e igualitária da lei, pois afinal, “cada caso é um caso”.
Por fim, temos a lógica do contraditório, que não é o princípio processual do contraditório. Essa lógica é uma forma de pensar, de raciocínio, que aponta sempre para a disputa, o divergir. Essencialmente, ela se estrutura na supressão da possibilidade de os participantes do debate alcançarem consensos, sejam eles partes do conflito, operadores jurídicos ou doutrinadores. A lógica do contraditório sugere ausência de consenso interno ao saber produzido no próprio campo e, no limite, falta de consenso externo, manifesto na distribuição desigual da justiça entre os jurisdicionados pelas mesmas leis que lhes são aplicadas e pelos mesmos tribunais que lhes ministram a prestação jurisdicional.
Esta lógica não opera consensos ou verdades consensualizadas, nem interpretações compartilhadas sobre os significados das leis, ao contrário, ela alimenta a infinita discordância e, com isso, instrumentaliza a desigualdade. O contraditório até permite se convergir no resultado final da decisão (por exemplo, nos casos dos julgamentos dos tribunais que são unânimes ou mesmo por maioria), mas não acorda em relação aos fundamentos.
Essa lógica do contraditório constitui e estrutura o próprio campo jurídico brasileiro, sendo significativo que os alunos de direito, desde cedo, sejam apresentados a diferentes “correntes” doutrinárias sobre os mais variados temas. E também nas provas da faculdade e nos concursos públicos, como para a magistratura, é frequente que seja exigido o domínio de “questões controvertidas”, cuja resposta esperada implica na exposição das distintas correntes ou posicionamentos sobre o problema. De forma jocosa, se ensina aos candidatos que a resposta a ser dada na prova deve começar com a expressão “depende”.
Desta forma, esta lógica é responsável por naturalizar a desigualdade, já que todos os posicionamentos jurídicos são possíveis, admissíveis e disputam ““vencer” em um jogo que é do juiz (autorreferencialidade).
Neste horizonte, o contraditório acaba sendo uma ferramenta que, de um lado, autoriza a possibilidade de bricolagem das decisões judiciais e, de outro, justifica o arbítrio das escolhas dos magistrados, estando, tudo isso, à disposição de uma estrutura de poder a serviço da desigualdade jurídica e, consequentemente, do tratamento não uniforme aplicado aos casos concretos e às vidas dos cidadãos dessa república que se fragiliza, quando um dos seus Poderes se estrutura nessa dimensão.
Ora, se “cada cabeça é uma sentença”, se “cada caso é um caso” e se o significado dos fatos, das provas e da lei sempre “depende”, a IGUALDADE JURÍDICA NO BRASIL É IMPOSSÍVEL.
Fernanda Duarte (UNESA, UFF), Rafael Mario Iorio Filho (UNESA, UFF) e Bárbara Gomes Lupetti Baptista (UVA, UFF) são pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).
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