Frederico Policarpo
No início do mês de março, um imbróglio jurídico ameaçou suspender o direito da associação canábica ABRACE de produzir e distribuir o óleo de maconha para seus associados e pacientes. Isso desencadeou uma forte reação em sua defesa pelas redes virtuais. A mobilização surtiu efeito e a ameaça não se concretizou. Porém, como esse episódio demonstra, o acesso à maconha para fins terapêuticos segue sendo muito precário no país. Nesta breve reflexão, gostaria de fazer alguns apontamentos, baseados em pesquisas que venho realizando sobre o tema, que podem contribuir para o debate público e, assim espero, ampliar a garantia do acesso à maconha medicinal para a população brasileira.
Começo destacando a mudança do estatuto legal da maconha que está ocorrendo no mundo inteiro. Vários países estão regulamentando o uso medicinal e, inclusive, legalizando seu uso para fins recreativos. A maconha está deixando de ser vista como uma droga ilegal, passando a ser considerada como um remédio e também uma mercadoria altamente rentável no mercado global. O que aconteceu? A maconha mudou? Obviamente, não foi o caso. Embora exista uma discussão científica acerca de sua classificação, e a tecnologia permita novas combinações genéticas, a maconha continua sendo a mesma espécie de planta, descrita como Cannabis Sativa L.
O que está ocorrendo é uma mudança de perspectiva sobre a maconha, provocada por vários fatores. O mais decisivo, sem dúvida, foi a eficácia clínica do uso da maconha para o controle da epilepsia refratária, em especial, nos casos envolvendo crianças portadoras de doenças raras. Crianças que sofrem 100 convulsões diárias, passam a ter duas com o uso da maconha, por exemplo. A partir dos anos 2000, os relatos desses casos bem-sucedidos logo se espalharam, graças à internet, e vários pacientes e seus familiares, bem com médicos e pesquisadores, passaram a se interessar pelo tratamento. Desde então, todo dia parece ter uma nova descoberta para a aplicação da maconha e ela é tão promissora que um dos mais renomados pesquisadores brasileiros na atualidade, o neurocientista Sidarta Ribeiro, afirma que a maconha está para a medicina do século XXI como os antibióticos estiveram para a medicina do século XX [1]. De modo resumido, esses dois aspectos – a confirmação da eficácia clínica e o potencial médico-científico – começaram a balançar as premissas das políticas proibicionistas sobre a maconha.
Indústria farmacêutica x cultivo nacional
No entanto, as implicações da proibição ainda continuam em vigor. Para além das conseqüências perversas já bem da “guerra às drogas”, o proibicionismo continua interferindo no nascente mercado legal da maconha e no seu acesso para fins medicinais. É o que o médico Ricardo Ferreira, pioneiro na discussão sobre os usos terapêuticos no Brasil, chama a atenção ao mostrar como a proibição afeta toda a cadeia de produção, fazendo com que o preço da maconha continue a ser excessivamente alto, em qualquer lugar do mundo [2]. Os preços só se tornarão acessíveis quando toda a cadeia for regulamentada, principalmente, o cultivo. Esse é um gargalo que é preciso ser enfrentado.
Há um projeto de lei em discussão no Congresso, o PL 399/2015, que trata do assunto, mas de forma muito tímida. São tantas restrições que só grandes empresas poderão investir no cultivo, excluindo as iniciativas das associações canábicas. Para se ter uma ideia, podemos comparar com o que se passa na oferta atual. Hoje em dia, há duas opções nas prateleiras das farmácias brasileiras: o Mevatyl, que é importado, e o extrato produzido pela empresa Pratti-Donaduzi, que é nacional. Há ainda a opção de importar diretamente, mas em todos esses casos o valor aproximado é o mesmo, custando em torno de 2.500 reais por 30ml. O modelo de associativismo da ABRACE, cultivando a maconha em solo nacional, diminui de forma significativa esse valor, para algo em torno de 300 reais. Como explicou o advogado Emílio Figueiredo, uma das vozes mais atuantes nessa discussão no país, isso é possível porque as associações não têm por finalidade a distribuição de lucros, como ocorre nas empresas, o que justificaria uma regulamentação específica para o associativismo canábico [3]. No entanto, dependendo do que for decidido no PL sobre o cultivo, a ABRACE corre o risco de fechar mais uma vez. A ameaça continua no horizonte das associações.
Habeas Corpus para o cultivo doméstico
O associativismo canábico está se consolidando no Brasil, com propostas inovadoras de acolhimento de pacientes, divulgação de material científico e soluções para garantir o acesso à maconha [4]. O modelo adotado pela ABRACE é apenas uma das propostas, seguido agora pela APEPI, CANAPSE e a CULTIVE. Mas há outras iniciativas interessantes, como é o caso da estratégia legal do habeas corpus preventivo para o cultivo doméstico e a produção artesanal do óleo de maconha, idealizada pela Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas, em diálogo com várias associações.
Esse habeas corpus funciona como um salvo-conduto para o cultivo e sua principal vantagem é sua rápida aplicação, que se justifica pela urgência do tratamento com a maconha. Além disso, uma vez adquiridos os conhecimentos básicos de cultivo e a autonomia na produção, o custo pode ser ainda menor do que em uma associação e infinitamente mais barato que nas farmácias. Essa estratégia está sendo bem-sucedida, com mais de 200 habeas corpus concedidos para esse fim, avalizados por tribunais de justiça em praticamente todo país. Quase toda semana um habeas corpus é concedido, garantindo o acesso legal ao tratamento para um paciente e um pouco de tranquilidade para seus familiares e cuidadores.
O rei está nu: a sujeição civil e a tutela jurídica
Além da importância do resultado alcançado, que é o cultivo doméstico e a autossuficiência na produção do remédio, essa estratégia jurídica também tem o mérito de explicitar uma característica do funcionamento do Estado brasileiro que gostaria de chamar a atenção porque tem implicações muito maiores.
Trata-se de uma forma peculiar do Estado distribuir e garantir o acesso aos direitos constitucionais, um dos temas centrais da rede de pesquisa que faço parte, o INCT-InEAC/UFF [5]. Como esse habeas corpus mostra, para que o direito constitucional à saúde e à dignidade seja confirmado, é exigida uma situação excepcional de falta. É preciso faltar saúde, faltar tratamento digno e faltar dinheiro. Só depois de caracterizada a situação de hipossuficiência, de completa sujeição civil, como diz Luís Roberto Cardoso de Oliveira [6], com a demonstração judicial de falta de recursos financeiros e de acesso médico, o Estado passa a dar ouvidos às demandas das pessoas. No caso, quanto mais documentos comprovando a gravidade da doença, mais digno é o paciente do ponto de vista estatal.
Somente após a sujeição civil, o Estado se mexe para garantir direitos básicos de cidadania dos pacientes demandantes. Aqui se escancara outro aspecto da distribuição desigual dos direitos no Brasil, que Roberto Kant de Lima vem descrevendo há anos [7], a tutela jurídica. É preciso se desigualar para acessar o direito. Ou seja, o paciente deve se diferenciar do cidadão comum, se colocando como hipossuficiente, para o Estado tutelar juridicamente seu direito à saúde e à dignidade, que, em tese, seria garantido a todo cidadão brasileiro. Esses são os eixos do habeas corpus.
Mas ainda há outro ponto chave da fundamentação jurídica desse habeas corpus, que me parece bem interessante e inovador. Uma vez alcançada a sujeição civil e reconhecida a tutela jurídica pelo Estado, o pedido de habeas corpus solicita o cultivo doméstico. Como justifica um dos idealizadores dessa estratégia, o advogado Ricardo Nemer, o cultivo doméstico representa a autotutela do direito à saúde e à dignidade [8].
Conclusão
O associativismo canábico no Brasil, aqui apresentado como o modelo de cultivo coletivo proposto pela ABRACE e do habeas corpus para o cultivo doméstico, colocam em debate a importância do cultivo de maconha em solo nacional. É esse o x da questão.
O episódio com a ABRACE, que começou como uma ameaça e terminou com a confirmação de sua importância, pode ser uma boa oportunidade para a sociedade brasileira encarar de frente essa discussão. Espero que os apontamentos feitos aqui contribuam para o debate público sobre o tema, chamando a atenção para a necessidade de uma regulamentação do cultivo de forma ampla e democrática, em diálogo com as associações canábicas e os pacientes. É preciso que o cultivo de maconha seja regulamentado no país, diminuindo os custos e ampliando o acesso ao direito dos brasileiros ao uso da maconha para fins terapêuticos.
Frederico Policarpo, Professor do Departamento de Segurança Pública/UFF e Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).
[1] Disponível em: https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/reportagem/hora-de-navegar-pelo-cerebro.
[2] Disponível em: https://sechat.com.br/por-que-os-produtos-a-base-de-cannabis-sao-tao-caros/
[3] Disponível em: https://www.cannabismonitor.com.br/emilio-figueiredo-mobilizacao-versus-oportunismo-no-caso-da-abrace/
[4] Ver: ZANATTO, RAFAEL MORATO. (Org.). Introdução ao Associativismo Canábico. 1ed.São Paulo: Disparo Comunicação e Educação - IBCCRIM - PBPD, 2020
[5] Ver: http://www.ineac.uff.br/
[6] Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/exclusao-discursiva-e-sujeicao-civil-em-tempos-de-pandemia-no-brasil.html
[7] Ver, por exemplo, a coletânea: Ensaios de Antropologia e de Direito: Acesso à Justiça e Processos Institucionais de Administração de Conflitos e Produção da Verdade Jurídica em uma Perspectiva Comparada. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris Ed., 2011.
[8] Disponível em: https://apublica.org/2020/09/cientistas-desafiam-proibicao-e-fundam-associacao-para-produzir-cannabis/