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Reproduzimos aqui o artigo "Sobre Tempo e Espaço em tempos de pandemia," escrito pelo antropólogo Ronaldo Lobão (UFF - INCT/INEAC) e publicado no Blog Ciência e Matemática do O GLOBO, no endereço https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/sobre-tempo-e-espaco-em-tempos-de-pandemia.html.
Confira abaixo o artigo.
Ronaldo Lobão
Para começar, quero dizer que penso ser impossível generalizar as experiências das pessoas durante a quarentena. Como antropólogo, preciso da experiência empírica para olhar, preciso da interação com as pessoas para ouvir, de um certo distanciamento temporal para refletir sobre elas de forma adequada. Tais atos cognitivos não devem ser confundidos com a ação dos órgãos dos sentidos correlatos, a visão e a audição, conforme nos ensinou Roberto Cardoso de Oliveira. Tenho certeza de que, em isolamento social, olhar e ouvir são impossíveis!
Mas posso, a partir de alguma teoria e de minha experiência pessoal, especular sobre algumas mudanças nas relações das pessoas com o tempo e com o espaço durante a quarentena, e também na perspectiva de um rearranjo das condições de trabalho que estão sendo chamadas de o “novo normal”.
Santo Agostinho registrou sobre o Tempo a seguinte confissão: “Se ninguém me pergunta, eu o sei; mas se me perguntam, e quero explicar, não sei mais nada”. Immanuel Kant resolveu este dilema de forma simples, Tempo e Espaço seriam categorias inatas do pensamento. Não necessitariam de definição.
Um geógrafo sino-americano, Y-Fu-Tuan, formulou ideias interessantes para os conhecer. A percepção do Tempo seria informada pelas mudanças em nosso estado interior. De alegre a triste; de atento a desatento; tenso ou calmo. Na sociedade moderna, temos o relógio para assinalar os intervalos entre estes estados. Mas Marshall Sahlins mostrou que a experiência do Tempo muda conforme nossas emoções. Se estamos alegres o Tempo passa vertiginosamente. Se estamos tristes o Tempo parece não “passar”. Há um desacordo com o relógio!
Também segundo Tuan, o Espaço nos é informado por nossos órgãos dos sentidos, sejam a visão, a audição, o tato e, eventualmente, o olfato. Aprendemos a medir a distância desde bebês através destes sentidos.
Já a sensação do movimento seria o resultado de uma relação entre o Tempo e o Espaço, tal como a Física mede a velocidade. O Espaço pode ser o resultado da experiência de nosso movimento em um dado período de Tempo, não?
Não é difícil pensar que, na situação de isolamento social em que vivemos, confinados em um mesmo espaço e restringidos em nossas possibilidades de movimento, temos uma percepção de Tempo e Espaço distorcida em relação à experiência que tivemos até aqui.
Roberto DaMatta sugeriu duas distinções que penso serem interessantes para ajudar a compreender o papel da dimensão emocional durante a pandemia atual. De um lado temos a diferença entre a Casa e a Rua. De outro temos as categorias sociológicas da Pessoa e do Indivíduo.
Fazendo algumas adaptações entre o pensamento desse autor, posso sugerir que a Casa seria o lugar da segurança, das relações pessoais, dos afetos. A Rua representaria o Espaço do risco, das regras impessoais, dos interesses individuais. Encontros duradouros fora de casa, sejam na rua, sejam no trabalho, têm o potencial de ampliar os lugares nos quais nos sentimos seguros, pois temos autonomia em decidir como nos comportar, podemos nos abrir afetivamente.
No ambiente da Casa estamos limitados às nossas experiências pretéritas para reconstruir emoções e sensações do que assistimos na tela de um computador, smartphone, tablet. Quem não assistiu a um show musical ao vivo não conseguirá rememorar as mesmas emoções ao assistir a um show no YouTube. Assim, vivemos em um ciclo repetitivo de nossas experiências pretéritas, limitado por excelência, e que penso que em breve poderá trazer graves consequências, principalmente se for considerado um “novo normal”...
Porém não penso que a forma como estamos vivendo seja nem “nova”, nem “normal”. Avalio que há implicações nas restrições impostas pelo isolamento social que não afloraram mais claramente, pois temos um inimigo maior, que é o vírus, contra o qual acionamos todas nossas defesas. Mas ainda assim é possível fazer algumas ilações.
Por exemplo, na esfera da Casa sou uma pessoa que se relaciona com as pessoas da família e os lugares de uma determinada forma. Posso ser afetivo, controlador, bagunceiro, egoísta, etc. Minha identidade na Casa foi construída em relações com meus pais e irmãos e atualizada quando adulto em relação a meu companheiro ou companheira e filhos, animais de estimação, plantas, oficinas, etc.
Na sociedade contemporânea, na esfera do trabalho, sou um indivíduo que age em conformidade com o que é esperado e que foi aprendido fora do ambiente familiar. Por exemplo, eu não aprendi antropologia em Casa. Não aprendi a ser professor em Casa. Não aprendi a ser pesquisador em Casa.
Há uma trajetória riquíssima na construção deste personagem, o “trabalhador moderno”, aquele que vende sua força de trabalho no mercado. Mas na vertente que interessa a meu argumento, posso dizer que foi construída uma distância entre a identidade pessoal na Casa e a identidade coletiva no Trabalho. E a rua tem um papel fundamental como o espaço de um ritual de passagem entre uma identidade e a outra.
Posso propor uma imagem. A pessoa sai de Casa, onde é um pai ou mãe dedicada, é um exemplo de vida para seus filhos e companheira ou companheiro. É uma liderança, é uma referência.
Mas quem chega no Trabalho? Imagine que nosso personagem trabalhe como faxineiro, igual a inúmeros que trabalham em empresas, que tenha um “trabalho subalterno”, para usar uma imagem de uma recente pesquisa no TRT/RJ. Há uma rotina a ser desempenhada em relação à qual ele não tem nenhuma autonomia. Sua voz sequer é ouvida e quando o é, é sempre de forma subalterna, quando não subserviente.
No final do dia ele chega em Casa. E quem chegou? O “subalterno”? Esperamos que não, certo? Quem chega em Casa é o pai, a mãe, o exemplo, o porto seguro.
Como acontece esta “mágica”? Gosto de pensar que é obra do “trajeto”, do deslocamento, do movimento pelo Espaço, pela Rua. O ritual de construção das identidades se processa no deslocamento em sentidos opostos. Da Casa, para a Rua e para o Trabalho. Do Trabalho, para a Rua e para a Casa.
A ausência destes rituais é certamente é o que é de mais “anormal” neste “novo” que, como disse, espero que seja fugaz e deixe poucas marcas. Mas avancemos um pouco mais. O exemplo que dei está situado em relações de trabalho que não se adequam a uma estratégia que tem se efetivado durante a quarentena, o tele trabalho, ou o trabalho em casa. Mas que têm sido saudados como elementos de um possível “novo normal”.
Vejamos um outro exemplo. Posso dar um exemplo pessoal. Trabalhei em uma usina siderúrgica, situada a duas horas de ônibus da zona sul do Rio de Janeiro. Havia diversas áreas chefiadas por engenheiros e eu tinha que lidar com todos eles. O chefe da área estratégica da empresa, a aciaria, responsável pelos fornos que produziam o aço, era de longe a pessoa mais intratável. No trajeto não falava com ninguém e, ao longo da jornada de trabalho, não socializava com os colegas em nenhum momento. A relações estratificadas eram a tônica do seu comportamento na empresa. Anos depois o encontrei em um pub em Ipanema. Veio me cumprimentar alegre, afetivo como nunca havia feito. Conversamos bastante e ele me disse que seu comportamento na empresa era daquela forma, porque era o que se esperava dele e ele tinha planos de crescer na empresa. Até que cansou do personagem e mudou de emprego. Era outra pessoa, e estava muito mais feliz!
Com o tempo entendi que o trajeto de ida era fundamental para ele e para todos nós construirmos nossas identidades funcionais no padrão que a empresa esperava. O trajeto de volta era fundamental para a desconstrução respectiva.
O que a pandemia fez? Eliminou esse ritual. Eu, o professor, estou em Casa, dando aula, pesquisando, trabalhando!
E “quem” trabalha? “Quem” está em Casa? Como consigo exercer estes dois papéis concomitantemente?
A resposta pode estar, como disse, em uma ameaça maior, lá fora. O vírus Covid-19 está na rua, no trajeto! Assim, enquanto esse inimigo estiver lá, aceito esta supressão. Ponho o ritual, não a mim, em uma condição liminar, mesmo sendo ele um ritual de passagem.
Mas isso é bom? Certamente não. E espero que passe logo.
Mas, para concluir, não quero me colocar na posição de quem defende o “velho normal”, não, longe disso.
Mas...
Quero defender que a reflexão sobre as relações de trabalho inclua a reflexão sobre os processos de construção / desconstrução das identidades domésticas e profissionais.
Se o mundo do trabalho pode invadir o mundo da casa, por conta da pandemia, será que o mundo da casa, com outros tipos de relações interpessoais, não pode ser levado para o mundo do trabalho?
Se o ritual do deslocamento participa do processo de construção e desconstrução, ou reconstrução, de identidades pessoais, ele não pode ser um vetor de uma nova sociabilidade que torne mais equânime as relações tanto na casa quanto no mundo do trabalho?
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EQUIPE DE COMUNICAÇÃO DO INEAC
Jornalista Claudio Salles
Bolsista Bruna Alvarenga
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