Em janeiro de 2009, o Jornal Extra publicou uma série de reportagens intitulada “Inimigos de Fé” que, entre as muitas discriminações por motivos étnicos-raciais-religiosos, trouxe à tona uma forma muito particular de alienação parental: os membros evangélicos de uma mesma família proibiam que uma avó (candomblecista) pudesse ver e visitar a neta. Este também tem sido um conflito cada vez mais comum e tem envolvido outros membros da parentela, apesar da invisibilidade. A série recebeu o prêmio de Melhor Iconografia da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e as práticas discriminatórias contra líderes e adeptos das religiões de matriz africana, desde então, reverberam como um problema público que tem mobilizado interesses de pesquisa, além dos da mídia.
Em junho de 2020, o Programa de Pesquisa “Política de Terreiros: mobilizações, processos de vitimização e enfrentamento ao racismo”, realizado pelo Núcleo de Pesquisa, Ensino e Extensão de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (NEPEAC/PROPPI-INEAC) da Universidade Federal Fluminense (UFF), iniciou uma pesquisa exploratória sobre a inversão de guarda baseada no pertencimento étnico-racial-religioso, com intuito de mapear os casos. O primeiro passo foi realizar o levantamento das notícias relativas à perda de guarda que envolvessem líderes e adeptos dos terreiros, a partir dos anos 2000. Identificamos, no entanto, que a perda e/ou inversão de guarda de jovens e crianças vem fazendo parte da vida de famílias que professam o Candomblé, mas não só.
Crianças indígenas e ciganas têm sido retiradas de suas famílias. Em 2011, em Jundiaí, na grande São Paulo, uma menina cigana, de um ano e dois meses, foi tirada da mãe e levada para um abrigo sob a alegação de que a mãe estaria usando a filha para sensibilizar as pessoas enquanto “esmolava”. No entanto, após uma batalha judicial para recuperar a guarda do bebê, a justiça devolveu a criança, uma vez que a mãe realizava o trabalho de quiromancia – prática ancestral das mulheres ciganas.
De acordo com o levantamento inicial, percebemos que a Justiça retira e/ou inverte a guarda dos filhos de famílias candomblecistas, ciganas e indígenas por considerar que seus modos de vida e práticas religiosas são inadequados ou sob alegação de pobreza. Porém, entre indígenas e ciganos, conforme pudemos observar, não há a inversão da guarda para um parente, comum nas disputas em relação às famílias candomblecistas, mas o envio das crianças e jovens para abrigos. No Mato Grosso do Sul a situação é tão grave que, após a divulgação de uma Carta Denúncia pelo Conselho Aty Guassu – maior representação política dos indígenas Guarani Kaiowa – em 2017, a FUNAI realizou um mapeamento de todos os casos de crianças e jovens indígenas em acolhimento institucional nos 20 municípios abrangidos pela Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio de Dourados/MS. Conforme o mapeamento, somente na cidade de Dourados, 70% das crianças em abrigos eram indígenas. Pior: de acordo com o documento, essas crianças costumam ser adotadas por famílias não indígenas sem a devida consulta à FUNAI – uma violação flagrante à Constituição Federal e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que reconhece a universalidade dos direitos de crianças e jovens dos Povos e Comunidades Tradicionais.
A questão central nesta discussão está no fato de que a concessão da guarda pela Justiça prescinde da observância do melhor interesse da criança em detrimento do interesse dos pais ou do Estado, principalmente quando se trata de pertencimento étnico-religioso. Este cenário fica ainda mais complexo porque a Constituição Federal de 1988 consagrou que crianças e adolescentes são “sujeitos de direitos” - humanos, civis, políticos e sociais - que devem ser respeitados e assegurados pela família, a sociedade em geral e o Poder Público. Outro ponto crucial é o reconhecimento ao protagonismo juvenil como fator fundante da dignidade humana, a liberdade de expressar opinião, crença e culto religioso, participar da vida famíliar e comunitária e da vida política sem discriminação. Ou seja, a criança e o/a adolescente são protagonistas da sua própria história de vida, observando-se aí o que preconiza a norma constitucional e infraconstitucional quanto a sua autonomia e preservação de suas ideias, valores e crenças. O que consiste, por força da lei, na inviolabilidade de sua integridade psíquica, física e autonomia de sua vontade.
Apesar dos processos que envolvem a suspensão do pátrio-poder ou a retirada e/ou inversão de guarda dessas crianças e jovens tramitarem em segredo de Justiça – o que impede o acesso aos autos – sabemos que a discussão sobre o tema deve observar que nenhuma criança e adolescente podem ser privados de sua liberdade ou ser retirados de seus pais ou mães sob o comando judicial ou mesmo por outro meio que implique a privação de seus direitos. Muito menos sob o pretexto de estar em risco em razão da sua pertença étnica ou por escolha da religião.
Neste momento da pesquisa, iniciamos as entrevistas com pessoas que têm tido o seu direito ao convívio familiar impedido por conta do pertencimento ao Candomblé. O maior desafio está sendo vencer o silenciamento dos agredidos. Estes casos permanecem invisíveis, uma vez que são os parentes próximos (irmãos, filhos, noras) – em sua maioria convertidos ao cristianismo evangélico – que proíbem a convivência familiar com netos, sobrinhos e até mesmo com os próprios filhos. Os casos pululam, apesar de poucos serem judicializados. Nenhum dos entrevistados até agora acredita que a Justiça possa intervir de forma a garantir que haja respeito entre os membros de suas famílias. Estamos diante de um cenário que, no caso dos terreiros, se contrapõe não apenas ao Direito das crianças e adolescentes, mas também vitimiza, em forma de punição velada, aqueles que insistem em manter a fé em deuses africanos. Ou seja, apesar das garantias legais, o povo de terreiro segue tendo suas práticas, histórias, saberes e tradições desrespeitados, inclusive pelas suas próprias famílias.
Rosiane Rodrigues de Almeida e Vinicius Cruz Pinto são pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br) e Glícia Salmeron de Miranda é conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA)