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O nosso site disponibiliza aqui o artigo "De República das Bananas à República de Togas" da pesquisadora Maria Carolina R. Freitas (INCT/INEAC), publicado originalmente dia 07/12/2021, no Blog Ciência e Matemática do Jornal O Globo - https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/de-republica-das-bananas-republica-de-togas.html
POLÍTICA E DEMOCRACIA
Maria Carolina R. Freitas
Já se vai um século desde que o termo República das Bananas passou a ser utilizado para designar os países latino-americanos pseudodemocráticos que ainda viviam uma política econômica de troca colonialista e infestados pela corrupção.
Na República das Bananas de William Sydney Porter, a pequena República de Anchuria era governada por políticos corruptos que exploravam a população para atender os interesses pessoais. Os políticos de Anchuria pouco se preocupavam com a administração da coisa pública e, de modo informal, sem preocupações com a moralidade ou com a finalidade de suas políticas.
Os mais nacionalistas se sentirão profundamente ofendidos com essa designação para o Estado Brasileiro, não podendo uma república de um futuro promissor ser comparada a outras pequenas democracias latinas que claramente foram a referência do Autor ao escrever o conto.
Ora, sendo uma república democrática chanfrada por diversos governos autoritários e eminentemente patrimonialista, não há como o Brasil fugir do desonroso título de Porter. Mantivemos no sistema político uma indistinção entre público e o privado pelos governantes. Como bem interpretou Florestan Fernandes, a República Brasileira nasceu com bases liberais, mas pretensões estamentais, pois o Estado foi estruturado para atender aos interesses daqueles que estavam no poder.
Os governantes daquela República Velha brasileira, da Nova República e da Novíssima Democracia brasileira, manifestam uma forte inclinação em tratar a coisa pública e administrar os interesses da sociedade como se fossem seus interesses privados, amparando sua legitimação numa tradição e estendendo seu poder por meio de um corpo administrativo recrutado, muitas vezes, com base em critérios pessoais.
Cargos importantíssimos para o desempenho das funções do Estado são delegados discricionariamente, ainda que sob a roupagem de uma formalidade, a sujeitos de confiança de quem nomeia. E isso não é uma realidade de décadas passadas, é um fenômeno muito presente na nossa atualidade. Criam-se funções, muda-se a administração, tão somente para nomear subordinados que precisam ser prestigiados e assim vai se fazendo o jogo político na nossa nouveau democracia.
Na tentativa de disciplinar a vida pública e criar a separação necessária entre a vontade privada e o agir público do governante, há uma profusão de leis que tentam moralizar e profissionalizar a administração pública. É lei para licitações, para concurso público, de improbidade administrativa, de responsabilidade fiscal, enfim, um sem-fim de dispositivos que tentam mudar um comportamento que é culturalmente estabelecido há séculos.
No início deste século, a emergente crise no sistema de representação provocou o início de uma guinada do judiciário rumo ao combate da corrupção e aos desvios das funções públicas. Mais do que isso, aumentou-se a frequência da busca ao judiciário para controlar o jogo político numa tentativa de moralizar o agir público.
Pari passu, a má administração da coisa pública inexoravelmente precariza as políticas públicas que deveriam emprestar efetividade ao extenso rol de direitos sociais que ganharam assento constitucional em 1988. As novas obrigações assumidas pelo Estado não foram acompanhadas pela reforma em sua estrutura administrativa e, tampouco, em seus mecanismos do controle político. A ineficiência, ou omissão, da administração pública suscita uma corrida ao judiciário para garantir o cumprimento das obrigações positivas do Estado. Como consequência, o Judiciário se apresenta com um poder eficaz disponível ao cidadão para fazer frente ao descaso do Estado.
Em suma, o Poder Judiciário assumiu um papel de grande protagonismo na dinâmica política de nossa sociedade. Mais do que promover e fiscalizar as garantias dos direitos fundamentais do cidadão, o Judiciário se vê incumbido do papel de agente moralizador. Num atuar censor, ele vem ingressando em questões políticas num esforço de transformar a República das Bananas e o patrimonialismo de seus regentes em um Estado Democrático de Direito que preza a coisa pública e o interesse social.
Muito além do debate sobre a legitimidade e a representatividade do judiciário, há um grande problema em designar o judiciário como bastião do sistema político: a incapacidade de promover mudanças estruturais nas instituições sociais que operam com base na hierarquização.
No Brasil os sujeitos sociais se relacionam com o Estado para atender interesses particulares, havendo pouco empenho para a formação de consensos amplos e abrangentes. Deste modo, as leis e políticas públicas são estabelecidas para atender interesses de grupos que conseguem se articular na arena política para alcançar sucesso em suas pretensões. A comunicação entre eles não se estabelece pelo convencimento, mas pelo arbítrio, havendo o reforço de posições e não uma consciência coletiva solidária e igualitária. E o Estado, através de qualquer um dos seus três poderes, tem o papel central na intermediação desta disputa por igualdade/desigualdade.
Para aqueles que não ingressaram no debate político que manobra as leis e a administração pública, resta a tutela judicial para acessar de modo desigual direitos ou se inserir em privilégios. Não sem razão o judiciário é visto pela sociedade como principal espaço para a administração de conflitos entre particulares e o Estado. Como num espelho, reflete as demais dinâmicas sociais na medida em que suas decisões se estabelecem também pelo arbítrio e a hierarquização entre categorias de sujeitos. Entre o deferimento total e o indeferimento total das milhares de pretensões que são ajuizadas contra o Estado há um vastíssimo prisma de decisões que desigualam os iguais, tudo ilustradamente justificado no “livre convencimento motivado” e na “reserva do possível”.
Ademais, como o sistema privilegia a tutela jurisdicional do indivíduo, a prestação jurisdicional coroa a omissão sistêmica da administração pública na medida em que garante o atendimento da pretensão de poucos. Na realidade, não é difícil concluirmos que é desejado pelo Estado que a situação assim se mantenha, pois sua atuação eficaz fica limitada àqueles que buscam a prestação jurisdicional.
É neste ponto em que reside o perigo de emprestar tamanha importância ao poder judiciário porque, na prática, suas decisões não provocam mudanças reais em todo o sistema de modo a atender e aprimorar a prestação do serviço e a garantia de um direito para toda a coletividade. Afinal, que tipo de democracia é essa que garante o acesso à direitos somente à parcelas da população que se articulam politicamente ou conseguem obter uma tutela judicial que referende suas necessidades?
Maria Carolina R. Freitas é pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos(INCT-InEAC – www.ineac.uff.br
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