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Reproduzimos em nosso site o artigo Os Usos da “Ciência” no Campo do Direito Brasileiro, escrito pelo sociólogo Michel Lobo Toledo Lima, pesquisador vinculado ao INCT/INEAC . O artigo foi publicado nessa quinta-feira, 3/3/2022, NO BLOG CIÊNCIA E MATEMÁTICA do O GLOBO : https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/os-usos-da-ciencia-no-campo-do-direito-brasileiro.html
Os Usos da “Ciência” no Campo do Direito Brasileiro
Michel Lobo Toledo Lima
Em 2020, em todo o Poder Judiciário, ingressaram 25,8 milhões de processos e foram baixados 27,9 milhões, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em seu Relatório Justiça em Números de 2021. Além disso, o relatório do projeto "Judicialização e Sociedade: ações para acesso à saúde pública de qualidade” do CNJ aponta para o aumento de novos processos judiciais com demandas nessa área que totalizaram 196.929 casos em 2020 contra 176.640 em 2019, um aumento de 11,5%.
Além disso, a conjuntura pandêmica (re)alocou vários campos do conhecimento, como a medicina, sobretudo a epidemiologia e a virologia, na agenda dos tribunais. As recentes orientações da OMS, a propagação de artigos científicos sobre a COVID-19 e as declarações cotidianas de acadêmicos sobre os efeitos e eficácia de distintas medidas para enfrentar o coronavírus se propagaram e foram invocadas em políticas públicas e decisões de representantes do executivo nas esferas municipais, estaduais e federal. Medidas que também foram e estão sendo levadas à apreciação do Judiciário, a exemplo das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6.421, 6.422, 6.424, 6.425, 6.427, 6.428 e 6.431 que analisaram se atos de agentes públicos durante a pandemia observaram, ou não, critérios técnicos e “científicos”.
Um dos pontos que chamo a atenção nesse movimento da judicialização de fatos sociais durante a pandemia, refere-se às invocações e instrumentalizações da categoria “ciência” nas decisões judicias. Questão que não se restringe ao momento atual, mas que foi ainda mais explicitada pelo contexto pandêmico.
Tais fatos me remetem a algumas reflexões antes feitas aqui nesse Blog, em diversos escritos, por Bárbara Lupetti, Fernanda Duarte, Pedro Heitor, Rafael Iorio e Roberto Kant, isoladamente ou em conjunto, acerca da dogmática jurídica, produzida no contexto do direito brasileiro, que se refere ao dever ser, não sendo fruto de uma reflexão que atende aos padrões científicos, porque não se afiguram em teorias explicativas, ou interpretativas, da empiria, da experiência jurídica prática do direito. Essa sua não correspondência à prática, portanto, faz parte da maneira como o campo se organiza e se reproduz, formando um sistema de pensamento não científico, embora se auto refira como sendo uma ciência.
Há um abismo intransponível entre, por um lado, a dogmática (dever ser) e, por outro, a prática judiciária e jurídica (ser). Para preencher discursivamente essa lacuna, o campo do direito usa fragmentos de teorias de várias ciências, vagamente aproximadas e anacronicamente (des)contextualizadas. Isso gera idiossincrasias entre “teoria” e prática nesse campo que resultam em expressões nativas, naturalizadas pelos operadores e acadêmicos do direito, como “cada caso é um caso”; “cada cabeça, uma sentença”; “na prática a teoria é outra”; “depende”; “na perspectiva da melhor doutrina”, dentre outras que normalizam práticas e discursos portadores de paradoxos que advêm e resultam da e na incompreensão e imprevisibilidade das decisões judicias, resultando em insegurança jurídica e interpretações arbitrárias e particularizadas de como aplicar leis e de como consensualizar fatos.
Correlacionado a essas idiossincrasias acima, forma-se o saber e a produção acadêmica do direito no Brasil com ênfase nas doutrinas, com ausência de teoria do, ou para, o direito brasileiro, advinda da sua forte ligação com nosso dogmatismo e o interpretativismo legal, ainda fortemente internalizados nos cursos das faculdades, gerando pseudocontrovérsias epistemológicas sobre uma “ciência do direito”, informada pelos agentes do campo jurídico brasileiro como ciência do dever ser.
Muitas doutrinas jurídicas debatem o que “deveria ser” a ciência do direito, como uma espécie de realidade idealizada. Isso vai enfaticamente de encontro do que autores clássicos como Thomas Kuhn, Gaston Bachelard, Pierre Bourdieu e Pedro Demo, por exemplo, apontam acerca da formação do conhecimento científico, da função do dogma ou do habitus no campo científico, assim como da necessidade de abandonar a “ilusão naturalista” para a ruptura epistemológica de consensos provisórios no campo do conhecimento científico, algo necessário para perceber e superar obstáculos conceituais e metodológicos.
A ciência está sempre “pensando” em como reconduzir o seu fazer a partir de um paradigma a ser rompido. Ao contrário disso, o conhecimento jurídico brasileiro produz um saber abstrato, idealizado e imprevisível acerca de uma tida “realidade” que precisa ser recorrentemente decifrada por aqueles que têm autorização do campo para interpretá-la, a exemplo das correntes doutrinárias e dos juízes ao prolatarem decisões judiciais, atrelando saber, sem consensos, ao poder. Assim, não há dogmas a serem rompidos, mas dogmáticas a serem reproduzidas ampliadamente e reiteradamente (re)interpretadas.
Além disso, o direito brasileiro constrói suas decisões judiciais e seu saber jurídico especializado fundados na lógica do dissenso infinito, que permite – e muitas vezes obriga - que se instaurem intermináveis divergências entre as partes envolvidas, só interrompido esse processo de construção da verdade baseado no argumento de uma autoridade investida para tal.
Ilustrações dessas idiossincrasias, dissensos e aparentes paradoxos apontados aqui podem ser vistas em notícias jornalísticas cotidianas, mencionando decisões judiciais que invocaram a ciência como justificativa para seus posicionamentos, a exemplo da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no RE 958.252/MG, de 2018, que menciona, entre outras coisas, que “a racionalidade que informa a figura da terceirização foi primeiramente teorizada por um dos maiores nomes da história das ciências econômicas, o ganhador do prêmio Nobel Ronald Coase” e que a “terceirização, segundo estudos empíricos criteriosos, longe de precarizar, reificar ou prejudicar os empregados, resulta em inegáveis benefícios aos trabalhadores em geral, como a redução do desemprego”, para construir e ratificar a tese jurídica que “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”. Mas, apesar disso, a pauta do STF prevê que em abril de 2022 haja o julgamento de embargos de declaração perante essa decisão, sobre a qual há 8.541 processos sobrestados, ou seja, apesar da decisão possuir efeito vinculante a princípio, a tese “cientificamente” construída enfrenta divergências variadas, inclusive, sem argumentações científicas, mas baseadas em correntes doutrinárias sobre o assunto no contexto pandêmico.
De forma semelhante, o acórdão da ADI 6.586 também invocou a ciência e usou a expressão “necessidade de observância de evidências científicas”, para arquitetar a tese de que “vacinação compulsória não significa vacinação forçada, porquanto facultada sempre a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei (...)”. A resposta do STF à ADI 6341 seguiu no mesmo sentido no que tange às medidas “adotadas pelas autoridades governamentais no combate à pandemia de Covid-19 devem ser devidamente justificadas, obedecer aos critérios da Organização Mundial da Saúde e gozar de respaldo científico”.
Apesar das decisões acima, recentemente, o TRF da 2ª Região, por meio de um habeas corpus, permitiu que uma estudante do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, pudesse frequentar a escola sem ter sido vacinada contra a Covid-19. Na decisão consta que “com relação a obrigatoriedade da vacinação, entendo que esta não pode ser exigida, vista que tratam-se de vacinas ainda em fases de estudos e que necessitam de aprimoramento e de estudos de segurança amplamente comprovados e divulgados à população antes de se tornar de uso obrigatório”, invocando trechos de pesquisas para ratificar um entendimento a priori, mencionando que “é normal ter uma hipótese cientifica incorreta. Mas quando novos dados provam que está errado, você tem que se adaptar. Infelizmente, muitos líderes eleitos e funcionários de saúde pública têm sustentado por muito tempo a hipótese de que a imunidade natural oferece proteção não confiável contra covid-19 - uma alegação que está sendo rapidamente desmentida pela ciência”.
Uma última ilustração se dá com a concessão de liminar judicial por um juiz de São Paulo, pleiteada por donos de lotéricas da cidade de Franca para que os estabelecimentos funcionassem - apesar do decreto municipal 11.217, de março de 2021, de São Paulo, proibir a abertura desses comércios – e que teve trechos como “a ciência, idolatrada como uma deusa infalível, já foi e voltou várias vezes” e “sim, cientistas erram!”. Além disso, o juiz embasou o seu convencimento, com a afirmação que “no entendimento deste magistrado plantonista, o lockdown é inútil, como demonstra a experiência prática de países mais desenvolvidos que o Brasil, com índices de mortalidade maiores”.
Tais casos ilustram alguns dilemas e desafios do direito brasileiro em tentar incorporar evidências e dialogar com argumentos científicos, indicando o paradoxo de que muitos escritos jurídicos – como monografias, dissertações, teses, livros de doutrinas e peças processuais – buscam se travestir de uma aparência científica sem, entretanto, assumir o método científico para sua produção como tal. Evidencia-se a resistência e a dificuldade de implementação uniforme e eficaz de formas consensuais de administração de conflitos em nosso sistema de justiça, mesmo após sucessivas reformas legislativas. Estas, embora as autorizem, encontram obstáculos empíricos, indicativos de que a busca pelo consenso é indesejável e desafiadora do monopólio do poder de decidir instituído no campo jurídico que é orientado por opiniões autorizadas. A ciência, assim como outras categorias e conceitos invocados pelo direito, é instrumentalizada para justificar e dar selos de autenticidade aos entendimentos, muitas vezes divergentes, e até opostos entre si, sobre fatos semelhantes, nas decisões judiciais.
A reivindicação pelo reconhecimento de sua cientificidade, não é simples capricho do saber jurídico, mas uma proposição deste campo que quer (re)produzir, com exclusividade, os ideais interpretativos acerca das regras de conduta que devem reger um Estado Democrático de Direito, segundo distintos entendimentos. Essa seria uma forma embrionária do princípio do “livre convencimento motivado do juiz” que permite que os magistrados primeiro se convençam de algum entendimento decisório para depois justificar esse convencimento com doutrinas e/ou jurisprudência – e, eventualmente, com a “ciência” - a favor de seu entendimento e interpretação, fórmula que é ensinada na academia do direito - inicialmente nas graduações e ratificado nas pós-graduações - e replicado nas práticas judiciárias.
A questão é que o direito brasileiro intitula deliberadamente sua produção acadêmica e jurisprudencial, anticientífica, como “Ciência do Direito”, e faz usos disso. O status científico emprestaria às conclusões do saber jurídico, formuladas pela academia e pelos Tribunais, uma espécie de condição de verdade racional e comprovada, para se auto justificar. O custo disso é a permanência infinita da promoção sistemática e de distribuição desigual e imprevisível da Justiça, e em nome da “ciência”, colocando em debate, e evidenciando, os fundamentos argumentativamente frágeis que sustentam a legitimidade do poder coercitivo do nosso direito, sua arbitrariedade e a dificuldade para sua compreensão racional por parte dos jurisdicionados, que o mantém à distância das práticas da sociedade brasileira.
Michel Lobo Toledo Lima é pesquisador do INCT-InEAC/UFF
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