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Reproduzimos em nosso site o artigo publicado no site SUL21 de autoria do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do INCT-InEAC.
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Fernanda Bestetti de Vasconcellos (**)
A pandemia de Covid-19, iniciada na província de Wuhan, na China, no final do ano de 2019, e rapidamente disseminada pelo mundo, já havia causado, no início do mês de julho de 2020, mais de 10 milhões de infectados confirmados, e 500 mil mortes em todo o planeta. Os EUA, com 130 mil mortos, e o Brasil, com 60 mil, não por acaso dois países governados pelos mais estridentes representantes de uma nova direita populista, eram as nações com maior número de mortes àquela altura.
Desde que o vírus demonstrou sua letalidade, a grande maioria dos países, seguindo a orientação da Organização Mundial da Saúde, adotou estratégias de isolamento social, orientando os cidadãos a permanecerem o maior tempo possível em seus domicílios e determinando o fechamento de escolas de universidades, do comércio e de todas as demais atividades não essenciais, como forma de tentar conter o avanço da pandemia. Graças a isso, países como China, Alemanha, Nova Zelândia e Argentina destacaram-se pela capacidade de minimizar o contágio e com isso evitar a sobrecarga do sistema de saúde e garantir o atendimento adequado aos contaminados que necessitaram de tratamento intensivo.
Países que demoraram mais para agir, como Itália, Espanha, França e Inglaterra, passaram por situações de colapso em determinadas regiões, tiveram grande número de mortes e aos poucos puderam dar início a superação do trauma causado pela pandemia e retomar uma situação de “nova” normalidade. Os que optaram, como Suécia, por um distanciamento social menos severo, acreditando que a manutenção do funcionamento pleno da economia e a livre circulação de pessoas configurar-se-ia em uma melhor estratégia, acabaram pagando um preço alto, tanto em termos de saúde pública, quanto pelo impacto na economia (que acabou afetada de forma tão ou mais severa do que os que optaram pelo fechamento).
A pandemia causada pelo Covid-19 inaugura uma nova fase histórica mundial. O discurso anticientífico, adotado por lideranças populistas emergentes, dá sinais de perda de legitimidade social, tanto entre simpatizantes do discurso neoliberal, que busca reduzir a ação do Estado em políticas de assistência, saúde e educação, quanto entre outros grupos sociais, diante da busca por respostas efetivas contra a doença.
O jornalismo feito com checagem e verificação factual ganhou maior relevância, desmascarando as redes de fake news, responsáveis pela produção massiva de “mortes por desinformação”, e colocando em cheque redes sociais incapazes de barrar a sua disseminação. Sociedades com maior capacidade de mobilização e coesão social, bem como governos com maior legitimidade, tiveram condições de enfrentar o problema com resultados melhores e mais expressivos do que países atravessados por disputas políticas anacrônicas ou governos pouco comprometidos com a verdade factual e o bem estar social. A ideia de enxugamento do Estado em nome do desenvolvimento econômico perdeu força, diante da necessidade socialmente reconhecida de sistemas de saúde pública e de proteção social frente ao colapso econômico.
No que se refere ao campo acadêmico, o impacto do vírus foi percebido de forma inconteste. De um lado, o fechamento de todo o sistema de ensino levou, especialmente o ensino universitário, a acelerar o processo de criação e implementação de mecanismos de ensino à distância. Utilizando plataformas de videoconferência e ferramentas de interação online, a atividade acadêmica tentou manter-se em movimento, tanto no nível da formação, quanto no da pesquisa. Por outro lado, a viabilização de eventos online acabou dando maior visibilidade a atividades que antes poderiam ocorrer somente dentro dos muros das universidades, ampliando o público interessado e com acesso a debates da maior qualidade por meio de “lives” e “webinários”, quase sempre gratuitos para quem dispõe de acesso à rede.
Além do enorme esforço despendido por docentes (que foram obrigados a rapidamente dominar estratégias de ensino não-presencial) e discentes (que foram obrigados a estabelecer novas rotinas e relações com as novas práticas de ensino), a pandemia tornou evidente o sucateamento no Brasil do ensino público. Enquanto instituições de ensino privadas conseguiam ter acesso a mecanismos informacionais e formação e suporte para sua comunidade acadêmica, as instituições públicas sofreram pela indisponibilidade dos mesmos recursos, questão que, num futuro muito próximo, aumentará mais ainda as desigualdades estruturais na sociedade brasileira.
Os negacionistas do vírus sofreram ao longo destes poucos meses reveses importantes. No campo político, governantes como Trump e Bolsonaro, que desde o início minimizaram o problema, preocupados com o impacto da crise econômica sobre seus mandatos, perderam rapidamente credibilidade e apoio. No campo acadêmico, o filósofo italiano Giorgio Agamben sofreu um duro revés sobre a credibilidade de seu modelo teórico, tratando a pandemia como uma invenção necessária para colocar em movimento um Estado de exceção [1]. A tentativa de Agamben em manter coerência com sua teoria do biopoder e do Estado de exceção permanente, se pode ter alguma utilidade para pensar contextos específicos de ação do aparato estatal totalmente à descoberto da normatividade democrática, como em favelas no Rio de Janeiro e regiões periféricas em outros lugares do país, mostrou-se inadequada, com graves consequências, em um contexto no qual a ação do Estado tem sido determinante para reduzir ou ampliar o número de mortes, a sobrecarga no sistema de saúde e as consequências econômicas da pandemia, e se relaciona com questões como a relativização da importância da democracia e os caminhos para o aperfeiçoamento institucional em áreas como a segurança pública e a justiça penal.[2]
A partir de Agamben, tem avançado o niilismo intelectual, que faz tábula rasa dos esforços para a reforma das instituições policiais e o aperfeiçoamento do processo penal, abrindo o caminho para críticas anti-modernas como as que tem assumido posições de comando no Brasil. É no mínimo surpreendente identificar as críticas de Agamben às políticas públicas de contenção da pandemia como sendo muito similares às da extrema direita alemã ou brasileira, que criticam medidas de isolamento social e de investimento público para evitar a falência econômica e a miséria, em nome das liberdades individuais, do livre mercado e da minimização da relevância das vidas perdidas pelo vírus.
Por outro lado, governos e instituições que assumiram, desde um primeiro momento, a gravidade do problema e a necessidade de lançar mão de ferramentas políticas e sociais à altura, obtiveram o reconhecimento público. Em um contexto geral de descrédito da atividade política e de crise das democracias representativas, não pode ser considerado de pouca relevância o que foi produzido nestes poucos meses em termos de reforço da legitimidade estatal para conduzir a crise.
Lideranças políticas de diferentes matizes no espectro político que agiram com responsabilidade, orientando suas tomadas de decisão pelo debate científico sobre o problema e reconhecendo a importância da liderança mundial da OMS para a condução da crise, contribuíram para recolocar o debate político em seu devido lugar, ou seja: fora da política, não há salvação. Organizações da sociedade civil destacaram-se também por sua capacidade de atuação em rede, tendo como base a solidariedade social para com populações vulneráveis e o enfrentamento das desigualdades aprofundadas pela pandemia.
Para além das diferenças na condução da crise entre governos responsáveis e governos populistas, há que destacar o peso de estruturas sociais marcadas pela desigualdade e a pobreza, que tornaram a América Latina o epicentro da pandemia, pela dificuldade de implementar políticas de isolamento social e de contenção da disseminação do vírus em comunidades carentes e cujos habitantes necessitam buscar diariamente seu sustento em mercados informais. Da mesma forma, a pandemia tornou evidente a desigualdade racial, afetando com muito maior amplitude pretos e pardos no Brasil e nos EUA.
Com relação às desigualdades de gênero, o isolamento social acabou produzindo uma sobrecarga de trabalho para as mulheres, já anteriormente afetadas pelo peso do trabalho doméstico não remunerado e o cuidado com os filhos e idosos de forma desigual. Sem a possibilidade de contar com o auxílio de diaristas ou de escolas infantis, as famílias de classe média foram obrigadas a equacionar as demandas do trabalho doméstico com a necessidade de dar conta das novas exigências do trabalho em home office. Possivelmente, o convívio intenso entre casais e o aumento expressivo da carga de trabalho doméstico e das demandas com o cuidado expliquem o aumento das ações de divórcio nesse contexto, assim como a baixa de produtividade no campo acadêmico das mulheres afetadas pelas atividades de cuidado com filhos pequenos e trabalho doméstico (se comparada a produção no período realizada por profissionais do sexo masculino), conforme tem apontado pesquisas sobre este tema em vários países.
Com tudo isso, é inegável que o contexto social impactado pela Covid-19 abre um novo período, com consequências importantes nos âmbitos político, econômico e social, em todo o mundo. Mais do que nunca, é fundamental que sejam produzidos diagnósticos sobre esse novo contexto, capazes de mapear a dimensão da crise nas diversas áreas da vida social, assim como prospectar saídas e identificar experiências bem sucedidas de superação e valorização da vida e da democracia.
(*) O presente artigo é a primeira parte de um trabalho mais amplo, intitulado Pandemia, Encarceramento e Democracia, que será publicado em coletânea com artigos de professores e colaboradores do PPG em Ciências Criminais da PUCRS, editada pela Ed. Tirant lo Blanch, que deverá estar pronta e disponível em agosto de 2020.
(**) Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é Professor da Escola de Direito da PUCRS, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do INCT-InEAC, pesquisador de produtividade em pesquisa nível 1D do CNPq.
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Jornalista Claudio Salles
Bolsista Bruna Alvarenga
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