Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, Departamento de Antropologia, UFF
Tendo me dedicado ao estudo etnográfico do Mundo Árabe nos últimos 20 anos, não pude deixar de ter a sensação de déjà vu diante do espetáculo de atos e palavras bizarros, grotescos, irracionais e ultrajantes incessantemente apresentados pelo presidente Jair Bolsonaro. Os ditadores árabes sempre foram exímios produtores de absurdos políticos. Estes íam das excentricidades autocráticas de Muamar Qadafi, que chegou a ameaçar com pena de morte aqueles que desrespeitassem a constituição da Líbia, abolida por ele próprio décadas antes; à megalomania totalitária de Sadam Hussein, que exigia que seus “eleitores” marcassem os votos com seu próprio sangue em eleições cujo resultado todos sabiam de antemão.
A lógica desses atos e discursos estava justamente em seu caráter arbitrário, livre dos constrangimentos da lógica formal e dos protocolos da política tradicional. Ao mostrar descompromisso com o raciocínio lógico e evidências empíricas, os líderes políticos árabes, assim como inúmeros outros na história, simbolicamente deram um caráter tirânico à sua autoridade, reivindicando para si um poder absoluto que incluiria até mesmo a capacidade de definir os limites do real. No caso do Brasil, o governo de Jair Bolsonaro foi marcado desde o início por incessantes declarações e atos polêmicos por parte do presidente e de seus ministros, capturando a atenção da mídia e da sociedade e, paulatinamente, colonizando o debate público com temas desconexos e, muitas vezes, bizarros ou anacrônicos.
Esse processo atingiu seu paroxismo quando a pandemia de Covid-19 atingiu o Brasil, com o presidente liderando o negacionismo da gravidade do desafio epidemiológico que se desenhava. Declarações presidenciais minimizando a letalidade do vírus, sabotando as medidas de quarentena e isolamento social adotadas por alguns governadores, atacando a OMS, promovendo medicamentos “milagrosos” sem comprovação científica, e demonstrando indiferença e falta de empatia diante dos números cada vez maiores de óbitos causados pelo vírus, passaram a dominar o debate público.
No entanto, enquanto ditadores árabes projetavam suas fantasias de poder absoluto em espaços políticos firmemente controlados, onde os cidadãos não tinham outra escolha fora a adesão formal em público e a indiferença ou crítica privada, Bolsonaro e seus ministros lançam suas diatribes em um espaço político moldado por regras democráticas. Assim, estamos diante de uma dinâmica bastante diferente daquela encontrada em regimes autoritários clássicos, na qual a crítica ao governo não é, pelo menos em um momento inicial, silenciada ou evitada, mas sim incitada. Ao inundar o debate público com uma sucessão de temas polêmicos, o governo Bolsonaro garante a mobilização constante da sociedade em campos opostos e bem delimitados, estabilizando o universo fragmentado e heterogêneo de seus apoiadores e simpatizantes, e trazendo o discurso da oposição para campos semânticos definidos pelo próprio governo.
Embora o bolsonarismo tenha todas as características de um movimento político de extrema-direita, ele carece de ideologia ou quadro institucional definido e, por conseguinte, de base estável. A ascensão de Bolsonaro à presidência deveu-se à sua capacidade de capitalizar ressentimentos coletivos e individuais, tanto reais quanto imaginários, dando-lhes um sentido no combate contra os “culpados” (PT, comunistas, ideologia de gênero, etc) dos múltiplos descontentamentos e medos difusos na sociedade de modo a criar um horizonte político comum. Em linhas gerais, o bolsonarismo apresenta as características da cultura política brasileira, marcada por um nacionalismo messiânico centrado na busca de um líder carismático que traga a “solução” para as mazelas nacionais, posição já ocupada, de diferentes formas, por Collor e Lula.
Por isso, a constante mobilização da sociedade em campos opostos é central para a governabilidade bolsonarista, criando performaticamente uma imagem de legitimidade “popular” do governo. No entanto, a falta de um projeto ideológico que dê coesão aos diferentes setores sociais mobilizados em torno de um vago agregado de conservadorismo político, moralismo comportamental e liberalismo econômico, faz com que a estabilidade do governo venha da sua capacidade de albergar outros projetos de poder no seu interior. Isso permite uma hierarquia de alianças que lhe permite enfrentar as crises sucessivas geradas pelo confronto com o legislativo e o judiciário, assim como a crescente insatisfação e rejeição por parte de alguns setores da sociedade.
Algumas alianças são centrais à coesão do governo, porém marginais à sua força política, como com Olavo de Carvalho e seus seguidores, constituindo a chamada “ala ideológica” que norteia a visão de mundo do governo, mas não chega a produzir um quadro ideológico com alcance mais amplo. Aliados com algum capital político foram gradativamente eliminados por apresentarem risco ao projeto autocrático do presidente. Outras alianças são fundamentais à estabilidade política do governo, porém com pouca repercussão no seu direcionamento, como aquela feita com o “Centrão”, com base em troca de favores e interesses conjunturais. O apoio que o governo recebe de setores do mercado financeiro, da burguesia industrial e do agronegócio é ligado à sedução da retórica neoliberal, embora no lugar do prometido crescimento econômico, esta tenha trazido apenas a precarização dos direitos trabalhistas e a corrosão cambial do real.
Os evangélicos garantiram uma importante parcela dos votos na eleição presidencial e indentificam-se com o conservadorismo moral e a política externa pró-Israel do governo. No entanto, apesar dos interesses e valores compartilhados, os evangélicos se enquadram mal no tradicionalismo católico dos olavistas e teriam muito a perder com a guinada autoritária constantemente ensaiada pelo governo, uma vez que seu capital político é diretamente ligado ao jogo democrático. Os evangélicos costumam ter um alto grau de pragmatismo político, tendo sido uma força presente nos governos anteriores.
O grande símbolo da presença evangélica nas manifestações bolsonaristas, a bandeira de Israel, funciona como um complexo de significados que vai muito além da cosmologia evangélica. Para os evangélicos, Israel é visto como uma continuação moderna do Velho Testamento, ressaltando a idéia de “povo escolhido” e sua aliança com Deus. Porém, Israel também é uma referência simbólica para as forças armadas e policiais brasileiras, sendo visto como um Estado onde o setor militar tem um enorme peso na vida política, além de ser produtor de tecnologias avançadas de controle de populações, as quais são regularmente testadas na submissão brutal dos palestinos pelas forças israelenses. Além disso, depois dos Estados Unidos, Israel é o principal aliado do governo Bolsonaro na arena internacional, o que se reflete na guinada pró-israelense da política externa brasileira no Oriente Médio.
Esse universo simbólico aponta para o papel dos militares no governo, grupo que ironicamente expulsou o presidente de seu meio nos anos 80 e agora é incessantemente cortejado pelo mesmo, beneficiando-se da nostalgia da ditadura militar e das ameaças de golpe promovidas pelo governo. Bolsonaro aparentemente acredita que os militares aceitarão voltar ao poder como coadjuvantes de seu projeto autocrático. No entanto, os militares têm claramente uma agenda própria, procurando apresentar-se como contraponto de estabilidade e eficiência em relação aos desvarios do governo, ao mesmo tempo que o sustentam e buscam ocupar o maior número de posições no mesmo. Os militares afirmam-se no campo político como a ressureição do “poder moderador”, ao mesmo tempo que avidamente garantem privilégios, cargos e recursos para si. Assim, proliferam instâncias de ameaça à democracia dentro do governo, as quais beneficiam-se da capacidade de crítica e mobilização da sociedade estar enquadrada pelo “escândalo permanente” que move o projeto bolsonarista.