O site do INCT INEAC reproduz aqui o artigo DECIFRANDO A ESFINGE: FORMAÇÃO, CONTROLE E LETALIDADE POLICIAL - O USO DAS CÂMERAS NO FARDAMENTO PODE SER CONSIDERADO UM PASSO IMPORTANTE PARA ROMPER COM A OPACIDADE DOS CASOS DE ABUSO NO EMPREGO DA FORÇA PELA POLÍCIA, MAS NÃO SUFICIENTE; dos pesquisadores Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (Sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS e membro do INCT-InEAC) e Fernanda Bestetti de Vasconcellos (Socióloga, coordenadora do PPG em Segurança Cidadã da UFRGS e membro do INCT-InEAC) . O artigo foi publicado originalmente no site FONTE SEGURA - https://fontesegura.forumseguranca.org.br/decifrando-a-esfinge-formacao-controle-e-letalidade-policial/
Confira abaixo a íntegra do artigo:
DECIFRANDO A ESFINGE: FORMAÇÃO, CONTROLE E LETALIDADE POLICIAL
O USO DAS CÂMERAS NO FARDAMENTO PODE SER CONSIDERADO UM PASSO IMPORTANTE PARA ROMPER COM A OPACIDADE DOS CASOS DE ABUSO NO EMPREGO DA FORÇA PELA POLÍCIA, MAS NÃO SUFICIENTE
No mês de julho, publicamos artigo no Fonte Segura no qual afirmamos que entender os dilemas do funcionamento das polícias e da mentalidade policial no Brasil é questão-chave para dar conta dos dilemas de nossa democracia. Desde então, novas evidências surgiram que reforçam a importância desse debate.
De um ponto de vista macro, acompanhamos a publicação da nova edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) que, entre inúmeros dados e análises, apresenta os números da letalidade policial. Os dados apresentados nos mostram uma situação muito grave: depois de um crescimento de 2.212 mortes anuais em 2013 até o número de 6.175 mortes ao ano decorrentes de intervenções policiais em 2018, o patamar que ultrapassa 6.000 mortes ao ano permanece. Enquanto a taxa de mortalidade por intervenções policiais alcança 2,9 mortes por 100 mil habitantes ao ano, os estados apresentam variações importantes, com o Amapá com impressionantes 17,1 mortes por 100 mil habitantes em 2021, seguido de Sergipe, Goiás, Rio de Janeiro, Bahia e Pará, todos com mais de 6 mortes por 100 mil habitantes ao ano.
Em uma dimensão microssocial, o estado do Rio Grande do Sul, cujas taxas de letalidade policial ficaram em 1,4 mortes por 100 mil habitantes ao ano, bem abaixo da média nacional, foi surpreendido no último final de semana com o aparecimento do corpo do jovem Gabriel Marques Cavalheiro, de 18 anos, retirado de dentro de um açude em São Gabriel, depois de ter sido abordado por três soldados da Brigada Militar e desaparecido. O perfil do jovem, morador da região metropolitana de Porto Alegre, que estava em São Gabriel para cumprir o serviço militar obrigatório, reproduz o da maioria das vítimas da violência policial.
Indaga-se, a partir desses dados e deste fato, quais os vetores de uma letalidade que coloca o país nos primeiros lugares em nível mundial, e que vitimiza jovens negros e pobres cotidianamente, sem que se possa justificar o uso da força letal em circunstâncias em que não haveria qualquer tipo de ameaça, como no caso do jovem em São Gabriel.
Se de um lado é preciso reconhecer que houve avanços na qualificação da formação policial ao longo das últimas décadas, com a implantação da Matriz Curricular Nacional, a implantação da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (RENAESP) e a padronização de currículos das academias de polícia, incorporando temas de proteção e promoção dos direitos humanos e sensibilização a respeito de questões ligadas à discriminação racial, por orientação sexual, etc., fato é que a distância entre o currículo trabalhado nas academias e o chamado “currículo oculto”, que caracteriza o aprendizado das práticas policiais na rua, com colegas mais antigos, ainda persiste.
A abertura das universidades para o ensino de temas ligados a policiamento e segurança pública trouxe avanços tanto para a própria universidade, com a criação e a qualificação de grupos de pesquisa, quanto para as polícias. Ainda assim, é preciso pontuar efeitos imprevistos, como a tentativa de legitimação acadêmica de posturas e práticas insustentáveis ética e cientificamente, e a mais recente tentativa de criação de uma “ciência policial”, somente acessível às próprias polícias.
De outro lado, os mecanismos de controle do uso da força pela polícia nem sempre são efetivos, e policiais violentos contam com a impunidade e a baixa mobilização da opinião pública nos casos de abusos praticados, em um contexto no qual até mesmo autoridades públicas justificam as mortes como “baixas” na guerra contra o crime. Em sentido contrário, a implantação das câmeras nos uniformes da polícia paulista produziu queda significativa da letalidade policial no estado de São Paulo. Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, estudo recente de autoria de pesquisadores ligados ao FBSP indica que os batalhões nos quais o uso das câmeras foi implantado tiveram queda de 47% da letalidade em 2021, frente a queda de 16% nos demais batalhões da PMESP.
Se considerarmos que a letalidade policial está relacionada com uma dimensão individual (características subjetivas que influenciam a tomada de decisão), uma dimensão ecológica (variáveis contextuais como localização, horário, etc.) e uma dimensão organizacional (mecanismos de controle, formação e incentivo/desincentivo a certas condutas), é preciso reconhecer que o uso das câmeras no fardamento pode ser considerado um passo importante para romper com a opacidade dos casos de abuso no uso da força pela polícia, mas não suficiente. O investimento em políticas de acompanhamento psicológico aos policiais, assim como em programas de formação mais conectados com as práticas policiais, e em mecanismos de controle e responsabilização dos policiais que utilizam a força de forma ilegal/abusiva, são dimensões absolutamente conectadas e necessárias para a redução dos casos de violência policial.
No caso de São Gabriel, a Auditoria Militar de Santa Maria, responsável pela região central do estado na estrutura da Justiça Militar, determinou a prisão preventiva do sargento e dos dois soldados da Brigada Militar envolvidos, pelo entendimento de que haveria indícios suficientes da materialidade dos delitos de abandono de pessoa sob seu cuidado, guarda ou vigilância, e falsidade ideológica, e a realização de audiência de custódia.
Em síntese, o enfrentamento dessa grave questão, que diz respeito às relações entre a polícia e a cidadania no Brasil, exige o reconhecimento do problema, a conscientização sobre suas características específicas, como o viés racial das vítimas, 84,1% delas negras, e uma mudança de mentalidade social, para que não se admita a leniência e até o incentivo por parte de governantes populistas, que se valem do medo e da insegurança pública como plataforma eleitoral, aplaudem o uso abusivo da força pelas polícias e sabotam as experiências positivas em políticas de formação e controle da atividade das polícias.