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Republicamos aqui o artigo do professor e cientista Político Pedro Heitor Geraldo, pesquisador vinculado ai INCT/INEAC, "JUDICIÁRIO E SOCIEDADE - Uma justiça autoritária?" , publicado no link https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/uma-justica-autoritaria-16092022 .
JUDICIÁRIO E SOCIEDADE
Uma justiça autoritária?
Há uma constante queixa relativa ao tratamento desigual do sistema brasileiro
PEDRO HEITOR BARROS GERALDO
16/09/2022
Nos últimos meses, estive envolvido na coordenação do curso de extensão “Antirracismo e as Mobilizações Profissionais do Campo do Direito”, realizado pelo Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito (NSD) do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (InEAC-UFF).
Ao longo do curso, tive a oportunidade de acompanhar como ouvinte uma série de aulas ministradas por profissionais do campo do direito, considerados referências pelo IDPN. Esses professores são profissionais inseridos nas instituições de justiça e no mercado da advocacia em diferentes estados. Além da formação jurídica, eles também compartilham uma perspectiva crítica sobre o papel encarcerador do sistema de justiça, que aflige principalmente a população negra. São todos profissionais muito sensíveis ao contexto da luta antirracista e compartilham uma forma de “fundamentar” seus entendimentos jurídicos por meio de filosofias estrangeiras de diferentes naturezas, como as do direito e as do conhecimento, por exemplo.
A experiência com e no sistema de justiça e na segurança pública produz um saber prático, dramatizado nos relatos dos casos e nas consequências nefastas do trabalho realizado pelas instituições de justiça. Para esses professores, assim como para outros operadores do direito, convivemos no Brasil com um sistema de justiça autoritário.
Esta formulação está orientada por algumas características comuns das práticas decisórias forenses. Os profissionais muitas vezes relatam com indignação a forma arbitrária pela qual as decisões são tomadas. Em outras palavras, a regra jurídica é objeto de ressignificação pelas autoridades por “entendimentos” segundo o “caso”. Tanto as regras de processo quanto as de direito material são por vezes desconsideradas, ignoradas ou ressignificadas, o que implica um grande arbítrio no gerenciamento dos processos e, consequentemente, no tensionamento dos conflitos.
Há uma constante queixa relativa ao tratamento desigual, à ausência de imparcialidade nos julgamentos, à falta de escuta dos envolvidos, à falta de atenção aos registros constantes nos processos, à falta de zelo com a execução penal (ainda muito degradante) e à desigualdade de atenção das autoridades segundo a natureza do conflito (e não do processo). Nesse cenário, em alguns conflitos relevantes, como homicídios, há uma demora para se decidir, enquanto em outros menos complexos, como um furto ou tráfico, decide-se rápido demais. Além disso, há também um reconhecimento da dificuldade em se delimitar o que é uma prova no processo criminal.
Este ponto de vista contrasta com a autoimagem da justiça, ciosa de sua credibilidade, a respeito de suas políticas de organização destinadas a modernizar, democratizar e garantir acessibilidade à tutela jurisdicional. A justiça reivindica uma excelência de seus quadros em razão do concurso público e exerce um poder sobre um amplo conjunto de conflitos levados pelas instituições e pela própria sociedade. Para os seus membros, os juízes, os milhões de processos seriam igualmente um sinal desta acessibilidade e democratização.
A Lava Jato sempre é uma referência constante como um exemplo de violação e disfuncionalidades do modelo acusatorial por diferentes operadores.
Como compreender este contraste entre a autoimagem do Judiciário e a justiça autoritária? Do ponto de vista dos operadores, este contraste produz uma descrença dos profissionais acerca do direito e promove uma compreensão em termos de disfuncionalidade do modelo acusatorial, aliás a Lava Jato sempre é um exemplo recorrente deste aspecto. Em nossa cultura jurídica, o modelo acusatorial é compreendido como um modelo positivo contra o inquisitorial, que é negativo e relegado ao inquérito policial sobre o qual Ministério Público e Judiciário poderiam melhor controlar as impressões parciais das instituições de segurança pública e corrigir abusos e excessos. Embora não seja exatamente isto que ocorre na prática, como sempre lembram em meio à insatisfação destes operadores do direito.
As frequentes reformas legislativas incidem sobre o processo, mas não sobre a organização da justiça. Os operadores do direito brasileiro naturalizaram a concentração de poderes instrutórios nos juízes de forma suplementar ao Ministério Público e às Polícias Civil e Militar. O processo é emendado como se o problema estivesse nas regras de procedimento utilizadas, em vez de se identificar as moralidades profissionais envolvidas na sua operacionalização e, principalmente, a finalidade desta organização de prover um tratamento desigualado dos cidadãos.
A defesa dogmática do modelo acusatorial em nosso contexto funciona como um obstáculo epistemológico, nos termos bachelardianos, no campo do direito brasileiro. Ela impede que os operadores discutam as formas de intervenção, sobre as consequências indesejadas do trabalho do sistema de justiça com base em evidências apresentadas por um amplo conjunto de pesquisas empíricas sobre o direito brasileiro, amplamente desenvolvidas em diferentes redes de pesquisa nacionais em diálogo direto com o campo do direito, a exemplo do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos financiado por agências de fomento a pesquisa; a Rede de Estudos Empíricos em Direito, organizada como uma associação; e as diferentes redes de pesquisa que se organizam nos congressos das associações dos cientistas sociais como a Associação Brasileira de Antropologia, a Sociedade Brasileira de Sociologia, a Associação Brasileira de Ciência Política e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais.
A dificuldade de reconhecer a tradição inquisitorial nas formas de administração de conflitos produz um efeito em que os operadores atribuem os problemas da justiça a um disfuncionamento do modelo acusatorial, em vez de identificá-los como próprios de modelos inquisitoriais nos quais o julgador e acusador concentram muitos poderes enquanto a defesa tem menor margem de manobra, pois o processo penal tem por finalidade demonstrar a culpa já indicada nos primeiros registros produzidos pelo delegado ao indiciar o tipo penal e as circunstâncias do delito. No caso do processo penal, o juiz guarda um amplo poder decisório inclusive sobre os fatos. Por meio do processo, opera-se uma economia textual em que se pode ler os trechos do inquérito nas sentenças judiciais.
Desta forma, um contraste pode ser feito com a França, onde operadores do direito reconhecem a tradição inquisitorial e buscam reformar a justiça para limitar a decisão por meio de diferentes estratégias, como (a) a formação para o trabalho de julgar; (b) a complexificação da divisão do trabalho para a decisão judiciária; e (c) a organização da audiência judicial.
Em primeiro lugar, a formação para o trabalho de julgar realizada na Escola Nacional da Magistratura substituiu a formação no próprio trabalho, ou formação sur le tas. A crise da seleção de magistrados na França culminou na polêmica criação da ENM como explica Boigeol (2010). O trabalho de julgar tornou-se objeto de atenção institucional e de reprodução coletiva para os novatos. O aprendizado sob supervisão faz com que o erro tenha um efeito pedagógico para quem o cometeu e para a instituição, que pode revisá-lo e aperfeiçoar suas estratégias de reprodução das práticas do trabalho. Assim, os limites no julgamento, por exemplo, se tornam mais explícitos, ao contrário da experiência idiossincrática de aprendizado no trabalho dos magistrados e promotores no contexto brasileiro, onde o erro produz consequências negativas para quem erra — assim podemos compreender a práticas de delegação do erro em que a “corda arrebenta para o lado mais fraco”.
Em segundo lugar, há na França uma separação entre as ordens administrativa, constitucional e judiciária que delimita a concentração de competências. Além disto, a divisão do trabalho na produção da decisão busca limitar a concentração de poderes. Ao dividir as tipificações penais em contravenções, delitos e crimes, supõe-se também uma complexificação das jurisdições criminais em que contravenções e alguns delitos são julgadas por um juiz monocrático — uma exceção no contexto francês orientado pela ideia do juge unique, juge inique —, os delitos e alguns crimes por três juízes e os crimes mais graves por um escabinato composto por três juízes profissionais e seis jurados leigos. O processo penal também desconcentra poderes de instrução, revisão dos pedidos envolvendo a liberdade do réu por outro juiz e um terceiro, para julgar os fatos determinados pelo juiz da instrução a fim de garantir a imparcialidade do julgador. Enquanto no Brasil, todas estas competências podem estar concentradas num único juiz.
Por fim, a audiência judicial no contexto francês é o momento de acolhimento dos conflitos levados ao Judiciário. Ela acolhe um universo de interessados de diferentes “dossiers” que serão ouvidos diretamente pelo juiz numa única sessão. A audiência coletiva produz um efeito pedagógico em que os presentes aprendem o ritual e sua linguagem, e também podem experimentar o tratamento igualitário entre as decisões por meio da repetição da regra através dos casos. A decisão de justiça é uma escolha de uma regra explícita e literal cujo significado é um consenso para os operadores do direito. Há uma distinção fenomenológica entre a decisão proferida oralmente em audiência e a sentença, que é o registro escrito da decisão divulgada posteriormente à audiência. O público presente na audiência aprende por meio da observação, e constrange o juiz durante sua realização. O contraste então pode ser feito com as audiências de gabinete no contexto brasileiro, as quais são apenas uma etapa do processo e se caracterizam por restringir e excluir os cidadãos dos rituais de justiça.
As políticas de informatização do processo e mais recentemente de virtualização da própria justiça buscam se orientar por ideias de democratização e modernização, mas reproduzem toda a ética para lidar com o principal instrumento de administração de conflitos, o processo judicial. Os autos do processo são o repositório de registro sob controle das autoridades e também são propriedades dos tribunais, que os guardam nos cartórios. O processo eletrônico, o PJe, como os instrumentos de informatização, estão todos a serviço dos juízes. Estas transformações reproduziram sob outra forma a mesma organização da justiça. Quando o “sistema” funciona, proporciona aos cartórios a oportunidade de fazer com menos recursos humanos e remotamente o que já se fazia antes. A melhoria serve , portanto, apenas à própria justiça e não aos seus usuários.
Esta comparação com um modelo explicitamente inquisitorial nos permite compreender como a formação de juízes e promotores para o trabalho, a divisão do trabalho decisório e a organização da audiência podem sugerir chaves para lidar com nossa inquisitorialidade descontrolada e compreender como o processo e o cartório são instrumentos que alijam os cidadãos de maior inteligibilidade do sistema de justiça.
*
Agradeço aos comentários de Fábio Ferraz de Almeida e Luiza Barçante Sanandres a este artigo.
BOIGEOL, A. A formação dos Magistrados: Do aprendizado na prática à escola profissional. Revista ética e filosofia política, v. 2, n. 12, p. 61–97, 2010.
PEDRO HEITOR BARROS GERALDO – Professor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC-UFF), do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito.
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/uma-justica-autoritaria-16092022
A missa de sétimo dia da nossa querida Profa. Maria Stella Faria de Amorim será no próximo sábado, dia 17 de setembro de 2022, às 17:30h, na igreja Nossa Senhora de Copacabana, na Rua Hilário de Gouveia - Copacabana - RJ .
Profa. Maria Stella Faria de Amorim (26/01/1936 – 11/09/2022), foi pesquisadora, professora, autora, conselheira e gestora, e atuou de modo brilhante nos campos disciplinares da Antropologia, da Sociologia, das Ciências Sociais e do Direito, integrando em diferentes posições os quadros da Universidade do Brasil (1963-1967), do IFCS-UFRJ (1967-1993), do ICHF-UFF (1978-1989), da Universidade Gama Filho – UGF (1978-2014), da Fundação Darcy Ribeiro (1996 até o presente), do INCT-InEAC (2009 até o presente), da Universidad de Buenos Aires – UBA (2009-2011), da Universidade Nova de Lisboa (2010) e da Universidade Veiga de Almeida .
Doutora e Livre Docente (Leis Federais 5.802/1972 e 6.096/1974) em Sociologia pelo ICHF/UFF, em 1975. Curso de Mestrado em Antropologia Social no PPGAS/UFRJ, Curso de Especialização em Antropologia Social na antiga Divisão de Antropologia do Museu Nacional. Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Professora Titular de Sociologia do IFCS/UFRJ (aposentada e colaboradora eventual).Professora Titular de Sociologia Jurídica do Programa de Pós-Graduação em Direito da UGF. Atual professora titular de Sociologia do Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito ( Mestrado e Doutorado) da Universidade Veiga de Almeida (UVA). Research Associate na Universidade de Harvard (USA -1971/1972) e Professora Visitante na Universidade Internacional de Lisboa. Pesquisas realizadas: Índios Maxakali do Nordeste de Minas Gerais; Burocracias do Nordeste Brasileiro; Pescadores da Lagoa de Maricá (RJ); Ética, cidadania e privilégios; Institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro; Juizados Especiais Criminais na Baixada Fluminense; Juizados Especiais e Federais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Juizados Especiais em perspectiva Comparada; Juizados da Violência Familiar e contra a Mulher; Acesso à justiça e prestação jurisdicional em tribunais do Rio de Janeiro; Meios alternativos na Justiça Brasileira, entre outras. Participante, pesquisadora e parceira nos editais Pró-Africa/CNPq; Capes/SPU/CAPG-Brasil-Argentina; CAPES/CNJ Acadêmico; Humanidades/Faperj; Pensa Rio/Faperj; BRA/SRJ/MJ/PNUD; CAPES/FCT-Brasil-Portugal; INCT-InEAC/CNPq/Faperj pesquisadora. Membro Permanente do Conselho da Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR). Membro efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA); da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS); da Sociedade Argentina de Sociologia Jurídica (SASJ) e associada do CONPEDI. Coordenadora do PPGD-UGF de 02/2009 a 01/2012, nota 5 CAPES e Coordenadora do PPGD-UVA de 05/2014 a 08/2015, nota 4 CAPES. Membro do Comitê Gestor do INCT-INEAC/UFF.
O Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília - PPGAS/UnB - está com inscrições abertas para Seleção de Doutorado para ingresso de estudantes em março/2023.
Doutorado - inscrições de 5 de setembro a 5 de outubro de 2022
Em breve informações sobre a Seleção de Mestrado
Os Editais de Seleção estão disponíveis no site:
http://dan.unb.br/pt/junte-se-a-nos/processos-seletivos/abertos
NOTA DE FALECIMENTO
PROFa. MARIA STELLA FARIA DE AMORIM
(26/01/1936 – 11/09/2022)
O Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense – PPGA-UFF lamenta profundamente o falecimento da Profa. Maria Stella Faria de Amorim, ocorrido ontem, dia 11 de setembro de 2022. Ao longo de seis décadas de experiência profissional como pesquisadora, professora, autora, conselheira e gestora, Stella Amorim atuou de modo brilhante nos campos disciplinares da Antropologia, da Sociologia, das Ciências Sociais e do Direito, integrando em diferentes posições os quadros da Universidade do Brasil (1963-1967), do IFCS-UFRJ (1967-1993), do ICHF-UFF (1978-1989), da Universidade Gama Filho – UGF (1978-2014), da Fundação Darcy Ribeiro (1996 até o presente), do INCT-InEAC (2009 até o presente), da Universidad de Buenos Aires – UBA (2009-2011), da Universidade Nova de Lisboa (2010) e da Universidade Veiga de Almeida – UVV (2014 até o presente). Com seu alto rigor acadêmico, destacada competência, bom humor e pensamento crítico marcante, contribuiu para a formação de várias gerações de profissionais, muitos deles hoje professores, tendo participado de diversas bancas examinadoras, projetos institucionais, missões de trabalho, seminários, mesas redondas, cursos e outras atividades do PPGA-UFF desde a sua criação. O velório será realizado amanhã, dia 13 de setembro de 2022, na capela 6 do Cemitério São João Batista, em Botafogo - RJ, das 12h às 15h. Nossos sentimentos a familiares, amigos, colegas, orientandos, alunos e alunas da Profa. Stella Amorim.
O que esperar da política de segurança pública em 2023?
Especialistas do Instituto Sou da Paz, Fogo Cruzado e Universidade Federal Fluminense analisam os planos de governo dos candidatos mais bem colocados nas pesquisas .
O site do INCT/INEAC reproduz aqui matéria da Revista CARTA CAPITAL (https://www.cartacapital.com.br/politica/o-que-esperar-da-politica-de-seguranca-publica-em-2023/) publicada nessa segunda-feira 12/9/22 e que conta com a participação do antropólogo Lenin Pires , pesquisador vinculado ao INCT/INEAC .
POLÍTICA
O que esperar da política de segurança pública em 2023?
Especialistas do Instituto Sou da Paz, Fogo Cruzado e Universidade Federal Fluminense analisam os planos de governo dos candidatos mais bem colocados nas pesquisas
POR CAMILA DA SILVA
Apesar de uma leve e desigual redução no número de mortes violentas intencionais, o Brasil ainda convive com episódios preocupantes de violência extrema. Nos últimos anos, foram simbólicos o massacre na favela do Jacarezinho, a execução em câmara de de gás de Sergipe, e os assassinatos do indigenista Bruno e do jornalista Dom Phillips.
Também preocupa a disparada no número de armas em circulação no País. Segundo dados obtidos pelos institutos Igarapé e Sou da Paz, o número de armas registradas
no País chegou a 1 milhão. Só na região amazônica, o aumento foi de 700%. O cenário revela a fragilidade dos arranjos institucionais da segurança pública no país e impõe desafios ao próximo ocupante da cadeira presidencial.
Para analisar os destaques das propostas dos candidatos e como eles pretendem mudar este cenário, CartaCapital convidou Cecília Olliveira, diretora executiva do Instituto Fogo Cruzado e especialista em tráfico de armas e drogas; Lenin Pires, antropólogo, professor do Departamento de Segurança Pública e diretor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense e Carolina Ricardo, advogada, socióloga e diretora-executiva do Instituto Sou da Paz.
CartaCapital: Há pontos em comum nos planos. Um deles é a implementação do Sistema Único de Segurança Pública, o SUSP. Qual sua importância para diminuição dos indicadores de violência?
Cecília: O Sistema Único de Segurança Pública foi criado em 2018 com o objetivo de preservar a ordem pública e a integridade das pessoas e do patrimônio, através da atuação conjunta dos órgãos de segurança pública nas esferas Federal, Estadual e Municipal. A principal função do SUSP é proporcionar o compartilhamento de informações entre os órgãos de segurança pública. A integração das forças de segurança sob a mesma governança permite uma padronização de dados, integração tecnológica e de inteligência em informações e operações. Isso gera maior eficiência para que o sistema opere de forma mais eficaz na prevenção da violência e no controle qualificado da criminalidade.
Lenin: Um episódio que contaminou o SUSP foi a intervenção federal no Rio de Janeiro. Você tem na prática aquilo que seria um Sistema Único de Segurança Pública para integrar atividades de profissionais civis na prática, por um lado, por conta do que aconteceu no Rio de Janeiro e por outro lado a emergência explícita das Forças Armadas no cenário federal fez com que esta integração seja muito mais pensada dentro dessa coisa ostensiva, do que na questão da inteligência.
O que fragilizou bastante as fronteiras, permitindo evidentemente o aumento de tráfico de drogas e tráfico de armas, entre outras formas de contrabando. Evidentemente, os decretos do governo Bolsonaro permitiram uma circulação inconstitucional de que também contribuíram bastante para isso, porque hoje os contrabandistas têm formas de legitimar suas ações, mas sobretudo na fragilidade das polícias federais.
A Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal — esta, inclusive, passou a atuar ostensivamente em qualquer lugar do País, não só cuidando das das rotas, mas buscando o maior protagonismo nacional urbano. Então diria que essa coisa da integração foi deturpada pela ênfase da guerra às drogas e à ostensividade.
CC: Qual a efetividade da tecnologia para prevenção e investigação de crimes? O que merece ser destacado?
Cecília: Não existe bala de prata na segurança pública e muitas vezes a tecnologia é tomada como uma solução mágica. E não é, O uso de no combate ao crime organizado é, sem dúvida, uma ferramenta indispensável para construir políticas de fiscalização da fronteira, rastreio e monitoramento de armas e munições, interceptação das rotas do tráfico internacional de drogas que cortam o país, monitoramento do garimpo ilegal na Amazônia comandada por grupos criminosos e para solucionar homicídios.
Mas as ferramentas tecnológicas estão sujeitas ao uso – não raro político – que se faz delas e às escolhas que fazemos enquanto sociedade. Para avaliar o impacto de uma tecnologia com foco em combater a criminalidade, é preciso saber antes quais os quais os objetivos e metas e qual o planejamento por trás do seu uso.
Lenin: Se o uso da força é ostensivo, e muitas vezes abusivos, as tecnologias também vão favorecer isso. No Rio de Janeiro, por exemplo, policiais já começam a organizar a atividade deles de maneira que a bateria das câmeras que eles carregam sejam gastas num contexto onde eles estão aparentemente lidando com o patrulhamento. E, na hora que o sujeito vai lá na favela, acabou a bateria.
LULA (PT)
CC: O candidato fala sobre a implementação de diretrizes nacionais e padronização dos procedimentos operacionais, essa é uma medida viável?
Lenin: Olha, não é descartável esse tipo de medida, mas a cultura institucional corporativa é muito mais forte. São profissionais formados a partir de uma pedagogia muito particular, que apostam em mudar o corpo dos profissionais, na socialização pela extenuação e que colocam a identidade policial num patamar superior ao da população. É muito difícil mudar esse paradigma com “cursinho isolado”. É necessário um programa onde a socialização dos policiais seja feita junto com a população, em cursos de capacitação e extensão.
Cecília: Ações voltadas para a valorização do trabalho policial, melhoria nas condições de trabalho e de proteção são sem dúvidas essenciais. Mas elas não resolverão o problema que está arraigado no nosso modo de fazer política de segurança. É preciso investir em planejamento, em informação e inteligência, mas também entender a segurança como parte de algo maior, levando em consideração outras políticas públicas, como as educacionais e sociais.
A segurança não pode ser o último bastião dos problemas sociais, depois que tudo falhou, como é a décadas. Sem ações sistêmicas, focadas, baseadas em evidência e não apenas na letalidade, que muitas vezes ajuda a angariar votos, não veremos uma substancial nesse quadro.
Carolina: Na proposta do Lula tem cinco pontos específicos de segurança pública, dois deles de valorização do profissional, então parece que a valorização dos agentes será um princípio orientador de todas as políticas.
É um valor importante, assim como um plano de direitos humanos, mas ele é o começo, não é suficiente. E aí quando a gente olha a outra parte [do plano] me parece que teve um esforço de pensar concretamente, de pensar formação e seleção, padronizar os procedimentos operacionais e abrir diálogo para modernização das carreiras. Mas também é preciso conversar sobre os marcos legais das polícias.
Pelo menos no que foi formalizado, não entrou nada sobre a questão de controle de armas, é muito importante retomar o que está no Estatuto do Desarmamento de manter a proibição do porte de armas.
JAIR BOLSONARO (PL)
CC: Bolsonaro apresenta um aumento da população carcerária e apreensão de drogas como resultado positivo de seu mandato. Quais seriam as consequências de mais quatro anos dessa política?
Cecília: A prisão não resolve tudo. Prendemos muito, mas isso não tem tido impacto em nossos índices criminais. Os crimes contra a pessoa somam 11% [das prisões]. Isso significa que os crimes contra a vida, num País que perde em média 50 mil pessoas assassinadas por ano, não tem sido olhados como deveria.
O Fogo Cruzado mapeia tiroteios e disparos de arma de fogo em 3 regiões metropolitanas. Rio de Janeiro, Recife e Salvador. Em Rio e Salvador, apenas em agosto, mapeamos 3 e 6 chacinas, respectivamente.
Em Recife, 91 crianças e adolescentes foram baleadas nesses 8 meses de 2022. Se apenas prender indivíduos resultasse em mais segurança, o cenário seria bem diferente, não? Segurança pública se faz com inteligência, planejamento e participação dos cidadãos.
Carolina: Eu não acredito que esse é o maior problema do plano dele [mas, sim] quando ele gasta um trecho inteiro falando da importância da preservação e potencialização do exercício da legítima defesa que autoriza o uso da força inclusive com arma de fogo. Ele apostou numa lógica de Segurança Pública que não é uma lógica coletiva da política pública, ele apostou no todos contra todos.
Lenin: Sobre o Bolsonaro, eu quero te chamar atenção para um detalhe. Ele diz que a política que ele vai desenvolver em todos os níveis é para os cidadãos que trabalham. Então, para ele o cidadão é o que trabalha e tem família, ou seja, os moradores de rua, os estrangeiros, as pessoas desempregadas. São 40 milhões de pessoas na informalidade, pelo menos 30 milhões passando fome, ou seja, nessa lógica temos 70 milhões de não-cidadãos, segundo Bolsonaro.
A política dele é toda de reafirmação da repressão, ele já definiu o limite da cidadania e portanto para quem pode ser pensado algum tipo de direito civil.
CIRO GOMES (PDT)
CC: Diferentemente dos outros planos, há destaque ao programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte. Quais os impactos específicos da violência armada contra esse grupo?
Carolina: Há diferentes formas de violência contra às crianças e adolescentes e é muito importante que tenha uma prioridade específica sobre isso como tem no plano do Ciro.
A gente presta atenção na questão da violência armada que tem atingido cada vez mais crianças e adolescentes em contextos vulneráveis de violência à tráfico de drogas, eventualmente os chamados casos das “balas perdidas”.
O programa de proteção a crianças e adolescentes atinge esses casos mais graves e é fundamental que tenham outras políticas que olhem para outros tipos de violência contra às crianças e adolescentes, como a violência doméstica.
Cecília: Em toda a série histórica do Fogo Cruzado, são 1.083 crianças e adolescentes baleados somente nas regiões metropolitanas do Rio, Recife e Salvador somadas. E há ainda o impacto que raramente ganha a devida atenção: operações policiais mal planejadas com muita frequência resultam em escolas fechadas.
Anos atrás, o Nobel de Economia, James Heckman, mostrou que o investimento na primeira infância ―de zero a 5 anos― é uma estratégia primordial para o crescimento econômico: para cada dólar gasto, o retorno financeiro para a sociedade era de seis dólares , com um retorno sobre o investimento de 7 a 10% ao ano. É preciso virar a chave da segurança pública para preservar a infância e planejar nosso futuro. Não existe amanhã sem o hoje.
SIMONE TEBET (MDB)
CC: Como você avalia as propostas principais do plano de recriar o Ministério da Segurança Pública e atualizar o Código de Execução Penal e o Código de Processo Penal?
Carol: [Em relação a alteração da legislação penal] Essa é uma tentativa de dialogar com essa sensação que as pessoas têm da impunidade – que não vem tanto no caso de homicídios, mas fala muito mais da questão do crime patrimonial. As pessoas estão com medo por causa do Pix, de ter o celular roubado. Essas propostas tentam responder a isso. Seria muito mais efetivo fazer uma discussão de gestão das polícias.
Lenin: O programa da Simone Tebet é interessante, o problema é que os pontos estão ancorados numa visão de mundo. Como se, por exemplo, os setores privados tivessem um compromisso com essas mudanças que são necessárias em todos os âmbitos, mas não há nenhuma menção aos direitos civis.
Em relação a priorização com os ministérios, depende da orientação. Eu acho legal. Assim como o Rio de Janeiro ficou muito mal das pernas sem uma Secretaria de Segurança Pública.
Cecília: O essencial quando se fala em órgãos relacionados à segurança pública no Brasil hoje é notarmos que não existe integração dos dados da segurança pública. Dentre as principais mazelas da segurança, está a falta de um sistema unificado de dados da segurança. Isso é fundamental para criação de políticas públicas efetivas. O que se vê hoje são registros que apresentam significativa variação de qualidade no preenchimento a depender da Unidade da Federação. Para que sejam elaboradas políticas públicas eficazes, antes de tudo deve ser feita uma análise precisa dos fenômenos;
Como fazer isso sem que ocorra a melhoria da qualidade e transparência dos dados de segurança pública? Como saber o real significado da expansão da política de armas se até o Exército que é que habilita colecionadores, atiradores e caçadores diz não saber detalhes dessas armas?
A gente vive um verdadeiro apagão de informações e não tem como dar qualquer passo adiante sem superar esse problema. Para que tenha real dimensão do problema: até hoje não existe integração entre os sistemas do Exército com os de órgãos de segurança pública. Uma das integrações previstas seria a do Sisnar (Sistema Nacional de Rastreamento de Produtos Controlados pelo Exército) com o Sinesp (Sistema Nacional de Informação de Segurança Pública).
O Sinesp é o sistema do Ministério da Justiça e da Segurança Pública que agrega dados de segurança pública e pode ser acessado por policiais estaduais, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal. Atualmente, ele é a principal ferramenta usada no dia a dia de policiais para o rastreamento de armas. No entanto, não agrega dados do Exército, que é o órgão responsável por registrar armas de CACs, militares das Forças Armadas e policiais.
Camila da Silva
Repórter e Produtora de CartaCapital
EQUIPE DE COMUNICAÇÃO DO INEAC
Jornalista Claudio Salles
Bolsista Bruna Alvarenga
ineacmidia@gmail.com