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O site do INCT INEAC reproduz aqui o artigo "Igualdade ou Liberdade? O Direito e seus limites em perspectiva comparada",  do professor Marco Aurélio Gonçalves Ferreira, pesquisador vinculado ao Ineac, publicado no BLOG CIÊNCIA E MATEMÁTICA do jornal O Globo. 

 

 

Igualdade ou Liberdade? O Direito e seus limites em perspectiva comparada.

Marco Aurélio Gonçalves Ferreira


A retirada de diversas contas nas redes sociais da internet por ordem do poder judiciário, bem como a muito criticada como inconstitucional instauração de um inquérito pelo próprio no STF, para apurar crimes e ele mesmo ao final julgar, têm acendido o debate em torno de duas questões que poucos a percebem como imbricadas, que são os limites de aplicação do direito pelo Poder Judiciário e dos limites da liberdade.

Nas sociedades capitalistas o pensamento contratualista influenciou o ideário político liberal democrático, que associa diretamente as noções de direito aos elementos liberdade e igualdade. Para os contratualistas o Estado nasce com a finalidade, dentre outras, de limitar a liberdade de seus cidadãos. Assim Montesquieu construiu máxima de que a “liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”.

Nos atuais sistemas jurídicos democráticos a liberdade se constitui não somente a partir do espaço de ação do cidadão, mas principalmente a partir dos limites impostos pelo direito.  A liberdade no Estado somente se concretiza através de suas delimitações, ou seja, a liberdade só existe enquanto delimitada pelo direito.   

Os parâmetros delimitadores da liberdade irão acontecer de forma distintas nas tradições jurídicas. Uma das características da liberdade nos países capitalistas liberais, como os EUA, é a sua limitação pelas leis e principalmente pelos precedentes judiciais. Nos EUA duas expressões referem-se aos direitos da liberdade e igualdade: as chamadas Civil Liberties, que são compreendidas como limitação da intervenção do Estado na esfera privada do cidadão. A perspectiva da igualdade refere-se aos Civil Rights que são compreendidos como uma ação positiva do Estado para assegurar o tratamento igualitários aos cidadãos.

Assim, o sujeito tem o direito a não ter a sua liberdade ameaçada pelo Estado, bem como o direito de buscar a garantia da igualdade no acesso às chamadas liberdades públicas. Na tradição anglo americana os bill of rights irão compreender um conjunto de direitos de proteção do cidadão contra o poder governamental. Nesse conjunto encontra-se na 14a emenda o direito à privacidade, que por extensão é também compreendido como o direito de ser deixado em paz ou right to be let alone e o direito de autonomia para fazer as escolhas, the right to choose. Em síntese, o direito norte-americano vai determinar limitações à intervenção do Estado na liberdade individual, e na dimensão particular, as limitações à liberdade se darão estabelecendo um número de escolhas dentre opções finitas, como na justiça criminal, na qual o cidadão pode escolher aceitar a acusação, ficar em silêncio, negociar sua culpa, ou se declarar inocente. Nessas e em outras situações os limites de sua liberdade são previamente dados pelas normas, que são constantemente reforçados pelo Poder Judiciário, pois cabe a ele o papel de assegurar as liberdades.

O Brasil declara seu modelo jurídico como de Civil Law, o que pressupõe que os limites legais da liberdade estejam previamente codificados ou delimitados em lei. Ocorre que, para a literatura jurídica brasileira, todas as normas necessitam sempre de um intérprete mediador e, portanto, a literalidade da lei não possui eficácia por si só; o que corrobora as pesquisas empíricas realizadas nas teses de doutorado em Direito de Regina Lúcia e Cristina Seta, que demonstram que a norma em si não possui conteúdo, mas somente quando há a interpretação circunstancial da autoridade. Isso possibilita inclusive, como demonstra a tese de doutorado em Direito de Daniel Navarro, ao judiciário contrariar a própria literalidade do texto da lei, como manifestou o Ministro Luiz Fux no debate sobre  interpretação antagônica à literalidade do artigo 489 do CPC.

Na esteira do direito brasileiro, assim como a lei, o precedente enquanto norma, também está submetido à reinterpretação e aplicação dos magistrados que, com seu “livre convencimento”, podem não o cumprir, ou determinar uma nova interpretação.  A hierarquia do poder judiciário e a sobreposição de “livres convencimentos” dos diferentes graus da magistratura sobre os fatos e a norma, desde a primeira instância até as cortes superiores, demostram uma ausência de consenso e consequente instabilidade da validade e eficácia das leis e normas jurisprudenciais, dificultando a existência da segurança jurídica fundamental para o funcionamento da sociedade liberal e de mercado. Tudo isso resulta na incerteza da dimensão e extensão da liberdade.

A ausência de uma estabilidade na compreensão e aplicação do sentido da norma impossibilita que em algum momento a cultura jurídica coincida com a cultura cívica, pois que a intepretação e a compreensão dos institutos jurídicos são instáveis e, portanto, imprevisíveis. Desta forma a sociedade não sabe como previamente se comportar diante da norma e, como consequência, tem-se uma intensa intervenção judiciário nas relações pessoais e institucionais.

Nas práticas judiciárias do Brasil, a norma em si não diz nada, ou seja, não possui força em sua literalidade. Portanto, os limites normativos que delineiam o âmbito da liberdade não se encontram previamente determinados nem na lei nem na jurisprudência dos tribunais, mas de forma concreta somente nas decisões circunstanciais da autoridade. Da mesma forma, não estão claros os limites da intervenção do Estado, tampouco as opções para o exercício da liberdade de escolha nas relações jurídicas processuais.

A ausência de parâmetros precisos e determinantes do sentido e interpretação da norma pode levar à ideia imaginária de que no Brasil a liberdade é ilimitada, ou seja, liberdade é fazer o que se quer. No entanto, diferentemente de outras tradições jurídicas, no Brasil a norma não é cumprida em razão de sua existência, pois que a cada passo que o cidadão der é necessário olhar para a autoridade e buscar receber a sua anuência ou reprovação. Ou seja, no Brasil o direito não está posto. Embora a distribuição do direito à liberdade ocorra de forma desigual, como também são desigualmente distribuídos os demais direitos no Brasil, a “liberdade à brasileira” não é uma liberdade previamente estabelecida e, portanto, previsível a todos, mas sim circunstanciada.

Em consequência, no Brasil a liberdade é compreendida negativamente, como limitadora da autoridade, o que vai se externalizar, por exemplo, na ausência de protocolos na ação policial e na instabilidade das decisões judiciais. A liberdade da autoridade prevalece sobre as liberdades individuais, no atuar dos agentes de segurança pública, no atuar dos magistrados livres da literalidade da lei, livres na interpretação da jurisprudência e livres na interpretação dos fatos. Ao passo que em outros sistemas jurídicos, aqui mencionados, a existência da norma é compreendida como a real afirmação das liberdades.

Um olhar a partir da lente de outras sociedades capitalistas, sobre as práticas judiciárias brasileiras, resultaria necessariamente na percepção paradoxal de que aqui se iguala desigualando e a liberdade é sem escolhas. Sob essa ótica não seria estranho a afirmação de que estamos diante de um “sistema” que nega o próprio direito.

 

 

Marco Aurélio Gonçalves Ferreira é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).

 

O CNPQ e a ABC promoveram hoje o webinário "A contribuição dos INCTs para a sociedade" e que contou com a participação do coordenador do INCT INEAC , antropólogo Roberto Kant de Lima, na mesa INCTs, Desigualdade e Democracia , também com as participações de Wilson Gomes (UFBA) e Nadya Guimarães (USP).

A segunda mesa foi sobre o tema INCTs e a Sustentabilidade do Planeta: Terra, Mar e Ar e que contou com as participações de José Marengo (Cemaden), Jefferson Simões (UFRGS) e Maria Fatima Grossi de Sá (Embrapa). O Webinário teve a coordenação de Maria Zaira Turchi.

Confira a transmissão pelo link https://www.youtube.com/watch?v=KmgYR0EL8l0

 

Le Monde Diplomatique traz, em sua edição de junho /2022, o artigo VIOLÊNCIA DE ESTADO "O fasci-racismo a partir do Rio de Janeiro" de autoria do antropólogo Lenin Pires,  pesquisador vinculado ao INCT/INEAC e que trata da violência do Estado Brasileiro.

Confira abaixo ou acesse o link: https://diplomatique.org.br/o-fasci-racismo-a-partir-do-rio-de-janeiro/

 

O fasci-racismo a partir do Rio de Janeiro

 

Neste breve artigo eu exploro situações e dados sobre violência em uma sociedade que parece amalgamar seu contumaz racismo com um fascismo ascendente, em meio a um crescente armamento da população. Elementos inquietantes, que julgo merecer a devida atenção de todos nós, devido a eventuais implicações políticas.

Segunda-feira, dia 9 de maio de 2022. Do interior de seu carro o sargento-bombeiro Paulo César de Albuquerque pediu um sanduíche em um fastfood na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Após a compra ter sido registrada, informou ter um cupom de desconto. Contrariado por não obter o desconto, sequer aguardou que o pedido fosse anulado. Vídeos mostram o momento que ele adentrou a loja e disparou quatro tiros contra Matheus, um jovem negro de 21 anos. O rapaz perdeu um rim e parte do intestino, se tornando mais uma vítima por uso indiscriminado de armas de fogo, na região metropolitana do Rio. Pessoas cada vez mais se ferem ou morrem, seja em situações cotidianas, seja na escalada bélica com que se pratica a segurança pública.

 

Matheus, Durval e Hiago

Bombeiros não apagam fogo com armas, nem salvam vidas atirando nelas. Entretanto, desde 2003 são autorizados a portarem-nas, por serem militares. A partir de então, muitos passaram a trabalhar como seguranças privados ou a engrossar as fileiras das milícias que dominam amplas áreas no Rio. Por não se saber quando um profissional fardado pode ser vítima, ou não, da ação de criminosos, a arma parece fazer sentido. O bombeiro Paulo Cesar, porém, valeu-se de seu porte para dar vazão a um ideal de violência civil que, infelizmente, não se circunscreve apenas a este episódio. Outras situações chamam a atenção para a crescente associação entre banalidade no uso de armas e um certo senso de impunidade.

Na noite do dia 2 de fevereiro deste mesmo ano, Durval Teófilo Filho retornava para casa quando foi alvejado na porta do condomínio em que morava, em São Gonçalo. O sargento da Marinha Aurélio Bezerra deu-lhe quatro tiros. Alegou, mais tarde, que confundiu o homem com um assaltante. Negro, funcionário de um supermercado, Durval veio a falecer no hospital, deixando mulher e a filha de seis anos. Duas semanas depois, há pouco mais de 20 km dali, um outro jovem negro de 21 anos foi baleado em frente a estação das barcas de Niterói. Hiago de Oliveira Bastos faleceu do tiro disparado pelo sargento PM Carlos Arnaud Baldez Silva Júnior, após uma ligeira discussão, quando o policial desembarcava.

Os casos que sublinho acima são inquietantes, mas não foram os únicos envolvendo o uso de armas de fogo ocorridos neste ano, no Rio; seja por agentes públicos ou civis. Chamam a atenção pela futilidade das motivações. São testemunhos da banalidade com que a vida humana pode ser descartada, sobretudo àquelas pertencentes a negros. Pessoas simples agredidas e mortas por pessoas que aparentam ser igualmente simples. Estas últimas, porém, parecem se julgar impunes por serem parte ou estarem sob a proteção do Estado. Isso ocorre, a meu ver, em decorrência das dinâmicas violentas que parecem espiralar a partir das agências estatais.

 

Chacina permanente

Os contornos se tornam mais preocupantes quando episódios envolvendo autoritarismos, preconceitos, racismo e impunidade são extrapolados para as ações envolvendo instituições da chamada “segurança pública”. Particularmente, no controle dos territórios onde vivem pessoas com os mesmos perfis de Matheus, Durval e Hiago. Segundo dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF), somente em 2022 ocorreram 16 chacinas decorrentes de operações policiais, resultando em 85 mortes, no Rio. Isto é, tem sido cada vez mais recorrentes que tais operações produzam, no mínimo, três homicídios. Somemos a estes dados a memória das operações policiais nos períodos anteriores, onde a cifra de mortos sempre esteve acima dos 1.100 nos últimos cinco anos.  Ou recordemos situações como os fuzilamentos do músico Evaldo Barbosa e do catador Luciano Macedo, também na zona oeste, por soldados do Exército em 2019. Homens negros, armados ou indefesos, ceifados pela lógica bélica da política de segurança em curso.

Entrementes, o antropólogo Eduardo Rodrigues, pesquisador do LAESP/UFF, desenvolveu, durante dois anos, uma etnografia com jovens moradores das zonas norte e oeste do Rio que desejam ser policiais. Ele demonstra em sua tese de doutorado como, a partir da proximidade com policiais nos bairros em que vivem, se interessam em participar das dinâmicas repressivas que caracterizam o ofício das polícias. Demonstra, assim, que há uma socialização prévia que os fazem naturalizar a violência empregada contra outros jovens pretos e pardos, em determinados contextos. Querem entrar para as policias, mas nem todos conseguem. Assim, eventualmente, alguns desempenham atividades correlatas como seguranças privados, ordenanças de milícia ou, como assinala, em outros “esquemas”. Majoritariamente negros, estes buscam através do uso da força, oficial ou oficiosamente, se diferenciar daqueles outros com potencial de serem vítimas de tais arranjos. O acesso às armas e, se possível, à carteira funcional nas polícias é um brevê para voos autoritários, na mente da maioria. Muitas vezes, porém, vale apenas a proximidade para obter salvo-condutos para práticas arbitrárias, que pode incluir a eliminação de pessoas.

Matar parece ser um requisito para marcar pontos com pretensos superiores nas corporações policiais, construir reputações dentro e fora das mesmas e, eventualmente, auferir projeção política. Servem como testemunhos algumas trajetórias nos âmbitos executivo e legislativo nas esferas federal, estadual ou em municípios no estado do Rio de Janeiro. Wilson Witzel, por exemplo, foi eleito governador do estado pregando “atirar na cabecinha” de traficantes nas favelas. Afastado do poder, assiste Cláudio Castro, seu sucessor fazê-lo com mais efetividade, embora este não comemore publicamente. Entretanto, é notória sua desfaçatez de chamar as chacinas em curso de Plano de Redução da Letalidade Policial, em resposta a uma exigência do Supremo Tribunal Federal. Impulsionado pelos movimentos de favelas a mais alta corte do país tem buscado, através da ADPF 635, por freios aos massacres conduzidos pelas polícias do Rio nas periferias. Até aqui, sem sucesso. Entre outras coisas, por que a matança ganha sociedades como, por exemplo, da Polícia Rodoviária Federal. Esta última debutou com apetite no mórbido banquete onde são servidos corpos negros, participando de três chacinas. Entre elas a da Vila Cruzeiro, onde 23 pessoas perderam a vida. O atual presidente, claro, curtiu.

 

Um espetáculo mórbido em um país em transformação

A situação é insustentável. Torna-se cada vez mais difícil relatar para pessoas de outros países com tradição democrática o que se passa no Rio ou em outros lugares do Brasil. Episódios dantescos saltam para o noticiário como pipoca numa caçarola. Que o diga o emblemático episódio da câmara de gás improvisada em um camburão da PRF que asfixiou Genivaldo de Jesus Santos, homem negro e diagnosticado com esquizofrenia, no Ceará. O roteiro desse filme, tão conhecido, é fascista e tem a eliminação de pessoas negras como enredo principal.

Muitas mortes vêm ocorrendo e sequer registro adequado recebem. O Brasil apresentou no último ano a menor taxa de homicídio desde que os dados sobre violência e criminalidade passaram a ser contabilizados, em 1993. Poder-se-ia comemorar, ainda que os números de assassinatos registrados sejam superiores a 47 mil ao ano. Não obstante, analisar as dinâmicas por trás dos números pode ajudar a conter uma eventual euforia. Crescem os desaparecimentos, fazendo lembrar que muitos mortos sequer possuem identificação civil; geralmente, moradores de rua ou de favelas.  Um outro fator, de especial interesse para o argumento deste artigo, é o aumento de mortes violentas por causas indeterminadas (MCVI). Os números publicados pelo Atlas da Violência 2021, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, compilou dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAM), a partir dos atestados de óbito. Ambos sistemas são do Ministério da Saúde, cujos dados registrados mais recentes são de 2019. Enquanto a taxa de homicídios na maioria dos estados brasileiros apresentou queda, entre 2018 e 2020, o número de mortes violentas em que não foi possível identificar a motivação cresceu 35,2% no mesmo período. Os maiores aumentos foram registrados no Rio de Janeiro (232%), no Acre (185%) e em Rondônia (178%). Essas mortes, segundo o estudo, podem ter sido provocadas por agressões, suicídios, assassinatos ou acidentes, mas acabam entrando nas estatísticas como indefinidas, puxando os registros de homicídios para baixo.

Por outro lado, o percentual de assassinatos entre jovens de 20 a 29 anos segue nas alturas. Observa-se que o percentual de assassinatos é maior entre jovens de 20 a 24 anos (52,3%), seguido pelo subgrupo de 25 a 29 anos (43,7%). Um massacre. Em 2018, pretos e pardos foram 75,7% das vítimas destes homicídios. Como estamos vendo, o que ocorreu com Matheus, Durval e Hiago parece responder a um padrão que atingiu centenas de outros pretos e pardos pelo Brasil afora e, principalmente, na região metropolitana do Rio. A dinâmica da violência sugere que na administração dos conflitos recorre-se a liquidação do oponente por motivo racial.

 

Armas para quem?

Para ampliar a problematização, quero chamar a atenção para o sugestivo crescimento da circulação de armas. Segundo o pesquisador Roberto Uchoa, em seu livro “Armas para quem?” – A busca por armas de fogo (2021, Editora Dialética), esse fenômeno teve início em 2017, ainda no governo Temer. Nele, uma portaria do exército brasileiro instituiu o chamado porte de trânsito, permitindo que participantes dos clubes de tiros pudessem transitar de sua casa até tais estabelecimentos portando armas carregadas. Ou seja, pronto para o uso. Foi o estopim, segundo ele, para um crescimento vertiginoso tanto de armas quanto de clubes. Atualmente, para adquirir armas uma pessoa pode, como antes, declarar que deseja se defender e registrá-la junto ao sistema da Policia Federal (Sinarm); ou pode informar seu interesse pela caça, por colecionar ou praticar tiro esportivo junto ao Exército (Sigma).  Segundo Uchoa, nestes dois sistemas de controle há, aproximadamente, 2 milhões de armas registradas. Cifra que aumentou pelo menos 300%, em quatro anos. O crescimento se deve, sobretudo, aos decretos com que o presidente Bolsonaro tem desmantelado o Estatuto do Desarmamento fazendo, inclusive, com que armas de grosso calibre – como fuzis – sejam adquiridos por praticantes de tiro esportivo e colecionadores. Para onde vão tantas armas?

Recentemente a polícia civil de São Paulo identificou que armas aprendidas com criminosos do PCC haviam sido vendidas originalmente para este público, que as repassaram. Ou seja, as armas registradas já começam a servir a interesses diferentes daqueles declarados. Minhas pesquisas sobre os mercados informais, porém, me autorizam a inferir que há muitas mais que entram ilegalmente no país e se valem dos circuitos de distribuição formal. Estas tendem a ter cifras superiores àquelas oficialmente reconhecidas, como ocorre com muitas outras mercadorias com chances de circularem de maneira ilegal. Logo, não há controle sobre suas existências e suas posses. São menores, portanto, as possibilidades de se rastrear suas origens, bem como das munições nelas utilizadas. Caso sejam envolvidas em um homicídio, diminuem ainda mais as chances de elucidação do crime.

No assassinato da vereadora carioca Marielle Franco, por exemplo, a autoria foi identificada a partir de outros meios, em virtude da comoção nacional e internacional do caso. Não é, contudo, o que ocorre com a maioria dos assassinatos. No Brasil, a taxa de elucidação de homicídios não é superior a 44%. No Rio de Janeiro, gira em torno de 14%. Há um risco, portanto, de que mortes sem motivação aparente, com chances de serem banalizadas pelo público, cresçam na mesma proporção da quantidade de armas que passaram a circular, permanecendo impunes.

 

 

Discursos de ódio e o fasci-racismo

É oportuno lembrar da morte de Marielle. Sabemos que a matou um assassino profissional, mas não sabemos a mando de quem. Não se tergiversa sobre sua natureza política, mas se desconversa quando se fala em crime de ódio, por tudo que ela representava: negra, mulher, LGBTQIA+, de esquerda e favelada. Enfim, a sociedade brasileira resiste a admitir para o flagrante contorno racial que envolvem as mortes de pretos e pardos, bem como outras formas de violência. Alguns podem dizer que isso ocorre há muito tempo. É verdade, em parte. Nos anos 1950, segundo o sociólogo Michel Misse, teve início a escalada da violência que observamos, sobretudo a policial. Contudo, e este é o meu ponto, é possível que neste momento, em torno destas mortes, se esteja erguendo um projeto que combina o racismo contumaz com o fascismo de ocasião. Considerando os elementos que sabemos da morte da vereadora, é bem provável que esta seja mais uma simbologia que possamos atribuir a ela.

Concluindo, os discursos de ódio perderam o acanhamento de outrora na medida em que encontraram nas redes sociais um canal para destilação de seu fel. Entretanto, há uma possibilidade de poderem se valer das práticas racistas institucionalizadas, que há décadas vitimam negros e negras, para levar adiante a construção de seu ideário de horror. Caso se verifique, estar-se-ia ampliando a mimetização, por civis, das práticas discursivas violentas de agentes do Estado em relação a esta população. Mais ou menos, e em sentido inverso, como fizeram os nazistas ao se apropriarem da naturalização dos pogroms contra judeus durante séculos e, sobretudo, nas décadas que antecederam o terceiro Reich. Alguns poderão dizer que eu exagero. Se assim for, é sinal que concordam que algo de substantivo há neste contexto sangrento onde crescem o acesso às armas, os motivos fúteis para sua utilização, o número de corpos negros atingidos e a naturalização de tais acontecimentos. Já será um indício que o incômodo tem potencial para ir além dos círculos intelectuais e democratas antirracistas. Oxalá seja um caminho para uma reação pública, com repercussão política para deter o descalabro que testemunhamos.

 

Lenin Pires é antropólogo, professor do Departameno de Segurança Pública da UFF e coordenador do Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (LAESP/UFF)

 

 

 

Nesta terça-feira (07), ás 20h, no tradicional evento ”TERÇAS DO IPCN” (Instituto de Pesquisas das Culturas Negras), que acontece sempre em encontros fechados via Google Meet, receberá o *Doutor em Antropologia, Lenin Pires, com o TEMA – _O ALVO É A NEGRITUDE: A NATURALIZAÇÃO DO FASCI-RACISMO NO BRASIL_*

Lenin Pires, além da formação em doutorado, também é professor do Depto de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador do Institutos de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC).

No encontro também teremos a *”Série: IPCN nas Eleições de 2022″, onde será proposto uma análise do atual cenário político para a negritude nos próximos pleitos.*. Envie-nos sua sugestão para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. ou deixe nos comentários sua pergunta.

Participe e realize sua inscrição enviando um e-mail para *Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.* e receba um link de acesso em até 15 minutos antes do evento. 

 

Vai até o dia 30 de junho de 2022 a Chamada da revista francesa "Brasil (es). Humanities and Social Sciences" dirigida para pesquisadores interessados em publicar na revista. Os textos deverão ser enviados à redação da revista Brésil(s) . Os autores deverão respeitar todas as outras normas editoriais da revista Brésil(s) disponíveis no site da revista: https://journals.openedition.org/bresils/10253

Brasil (es). Humanities and Social Sciences é uma revista francesa e francesa sobre o Brasil. Publicado na École des Hautes Études en Sciences Sociales pelo Center for Research on Colonial and Contemporary Brazil (CRBC), uma equipe da American Worlds Joint Research Unit, é publicado pela Editions de la Maison des Sciences de Human e é apoiado por o Instituto de Ciências Humanas e Sociais do CNRS. Esta publicação semestral, aberta a todas as disciplinas, tem como objetivo divulgar os mais diversos temas e abordagens, nomeadamente numa perspetiva comparativa. Trata-se de (re) situar o Brasil, sua história, sua sociedade, seus espaços em amplas perspectivas resultantes de debates teóricos e pesquisas empíricas capazes de renovar sua análise e percepção. Cada número inclui um dossiê temático e uma variedade, composta por artigos inéditos e resenhas de livros.

 O email para contato e envios é: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Perspectivas Etnográficas Sobre a Justiça no Brasil

Responsáveis: Professores Luís Roberto Cardoso de Oliveira (UnB), Roberto Kant de Lima (UFF) & Jussara Freire (UFF)

O fato de a desigualdade social ser reconhecidamente uma forte característica da sociedade brasileira, somada ao foco etnográfico em nossas instituições judiciárias e em demandas de direitos diversas, fez com que a antropologia jurídica ou do direito desenvolvida no Brasil ficasse marcada pela articulação da análise de administração de conflitos com reflexões sobre os dilemas da cidadania. A nosso ver, esta seria a principal contribuição da antropologia brasileira aos estudos nesta área que nasceu e teve grande desenvolvimento no mundo anglo-americano.

Neste quadro, o presente dossiê, a ser publicado em 2023, pretende realçar a singularidade dos trabalhos desenvolvidos com foco na análise dos padrões de desigualdade de tratamento que permeiam nossas instituições e um amplo universo de interações entre os cidadãos no espaço público, ou no que poderíamos definir como mundo cívico. A despeito dos princípios igualitários exaltados em nossa Carta Constitucional de 1988, pesquisas etnográficas têm demonstrado que nossas audiências judiciais não observam a paridade de armas, nem se orientam por critérios de avaliação claros e transparentes, tratando casos idênticos com decisões opostas, em nome de um “princípio” do “livre convencimento motivado” de cada juiz, que autorizaria, em função da garantia da independência de suas decisões, a livre interpretação não só sobre a definição das provas, mas também das leis, produzindo um padrão recorrente de decisões arbitrárias. Recentemente, por exemplo, duas decisões monocráticas de dois ministros do Supremo Tribunal Federal em habeas corpus em que se pedia a liberdade de cidadãos acusados pelos chamados crimes de bagatela, em que os valores furtados são de mínima importância, um dos ministros optou pela soltura do acusado de furtar 1 (hum) quilo de alcatra; a outra, decidiu deixar presa a acusada de furto de dois frascos de produtos de higiene pessoal. Da mesma forma, além de nossa própria estrutura normativa relativizar a igualdade de direitos em certas circunstâncias (e.g., o instituto da prisão especial para portadores de diplomas universitários), que se reflete fortemente na falta de uniformidade na aplicação judicial da lei, estudos sobre práticas policiais revelam a existência de uma ética policial que legitima e orienta tratamento desigual conforme o status e a condição social do cidadão, em contraposição às regras formais previstas na Constituição e no regulamento da corporação.

 

O Programa Institutos Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação (INCTs)  se caracteriza por grandes projetos de pesquisa de longo prazo, de alto impacto científico e de formação de recursos humanos, em redes nacionais e ou internacionais de cooperação científica, envolvendo pesquisadores e bolsistas das mais diversas áreas.
Como forma de promover o acompanhamento das realizações dessa rede pela sociedade, a Academia Brasileira de Ciências e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico estão organizando uma série de quatro eventos, os “Webinários ABC/CNPq: a contribuição dos INCTs para a sociedade”. 
Ao longo das próximas terças-feiras, dias 31/5, 7/6, 14/6 e 21/6, sempre das 16h às 18h, representantes de alguns INCTs vão apresentar temas amplos, transversais à atuação dos mais de 100 institutos. Os eventos serão transmitidos pelo YouTube da ABC e do CNPq.
O antropólogo Roberto Kant de Lima, coordenador do INCT/INEAC, participa no dia 7 de junho de 2022, no Tema 1: INCTs, Desigualdade e Democracia
 
Confira abaixo a programação completa  do seminário "A Contribuição dos INCTs para a Sociedade"
 

PROGRAMAÇÃO

 

Sempre às 3as feiras, das 16 às 18h, nos canais do YouTube da ABC e do CNPq

 

31 DE MAIO

Transmissão: https://youtu.be/EOcF1O-x8iI

 

Abertura: INCTs e os desafios em CT&I 
Ministro Paulo Alvim (MCTI)
Evaldo Vilela (Presidente do CNPq)
Helena Nader (Presidente da ABC)
Odir Dellagostin (Presidente do Confap)
Rafael Lucchesi (Diretor de Educação e Tecnologia da CNI)

 

Os INCTs e o Futuro da CT&I no Brasil
Jailson Bittencourt de Andrade (Vice-presidente da ABC, Senai/Cimatec)


7 DE JUNHO

Transmissão: https://youtu.be/KmgYR0EL8l0

Coordenação: Maria Zaira Turchi

 

Tema 1: INCTs, Desigualdade e Democracia
Wilson Gomes (UFBA)
Roberto Kant (UFF)
Nadya Guimarães (USP)

 

Tema 2: INCTs e a Sustentabilidade do Planeta: Terra, Mar e Ar
José Marengo (Cemaden)
Jefferson Simões (UFRGS)
Maria Fatima Grossi de Sá (USP)


14 DE JUNHO

Transmissão: https://youtu.be/yiwVedUykCk

Coordenação: Helena Nader e Luiz Davidovich

 

Tema 3: INCTs e Saúde Única (One Health)
Adalberto Val (Inpa)
Carlos Morel e Thiago Moreno (Fiocruz) 
Afonso Luís Barth (HC-UFRGS)

 

Tema 4: INCT e Nexus – Segurança Energética, Hídrica e Alimentar
Mariangela Hungria (Embrapa)
Carlos Chernicharo (UFMG) a confirmar
Marcel Bursztyn (UnB)


21 DE JUNHO

Transmissão: https://youtu.be/HiRuzTpJj_E

Coordenação: Helena Nader e Luiz Davidovich

 

Tema 5: INCT, Ciência e Sociedade
Luisa Massarani (Fiocruz)
Roberto Lent (UFRJ/Rede CpE)
Ricardo Gazzinelli (UFMG/Fiocruz)

 

Tema 6: O Futuro é Hoje – Pesquisas de Fronteira
Virgilio Almeida (UFMG) - Inteligência Artificial/BigData
Mayana Zatz (CrispR)
Gonçalo Pereira (Unicamp) - Energia/Descarbonização
Marcos Pimenta (UFMG) - Nanociência/Nanotecnologia

 

 

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