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Quinta, 02 Março 2023 00:08

Entre crenças e certezas: o papel da inquisitorialidade e da cisma no campo da comunicação contemporânea

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O site do INCT INEAC disponibiliza aqui o artigo "Entre crenças e certezas: o papel da inquisitorialidade e da cisma no campo da comunicação contemporânea" dos antropólogos Roberto Kant de Lima (UFF e UVA), coordenador do INCT/INEAC e Fábio Reis Motta (UFF), também pesquisador vinculado ao INEAC. O artigo foi publicado nessa quarta-feira, dia 1/3/2023 , no site Brasil 247 - https://www.brasil247.com/ideias/entre-crencas-e-certezas-o-papel-da-inquisitorialidade-e-da-cisma-no-campo-da-comunicacao-contemporanea . 

 

Entre crenças e certezas: o papel da inquisitorialidade e da cisma no campo da comunicação contemporânea

 Fabio Reis Mota e Roberto Kant de Lima, do INCT-INEAC

 

O mundo degusta, com um certo mal-estar, os nutrientes da modernidade. Por um lado, um oceano de informações nunca experimentado pela humanidade, ao passo que, por outro, ilhas ensimesmadas nas borbulhas (e bolhas) das certezas nos arquipélagos de entendimento dos mundos virtuais e presenciais próprios da contemporaneidade. Muitas interrogações, que pairam no universo inquieto em que vivemos. Isso nos impele, cada vez mais, a compartilhar com um público mais amplo o que dispomos de conhecimento no domínio das Ciências Sociais, em particular da Antropologia Social e Cultural.  

 

 Como dizia o velho Chacrinha: “quem não se comunica, se trumbica”. Logo, no lugar de se trumbicar, gostaríamos de nos comunicar. Com passos e tropeços, pois, afinal, buscaremos prover o/a leitor/a de uma paisagem antropológica com seus contornos técnicos e teóricos que  podem, porventura, tornar turvo o raio de compartilhamento da compreensão e da comunicação. Não pelo interesse de obscurecer o trabalho de partilhar com o público o conhecimento antropológico, mas muito mais pelos vícios do ofício. Afinal, somos, com muito orgulho, antropólogos de profissão e visão de/do mundo.  

 E a Antropologia, embora forjada na esteira da história do colonialismo europeu, que se extasiava com o “descobrimento” dos povos “exóticos” e “primitivos”, se constitui na contemporaneidade como um conhecimento capaz de desembotar o absolutismo das certezas do racionalismo através das provocativas e provocadas etnografias, que colocam em relevo uma teoria do conhecimento da diferença.  Falaremos desse porto antropológico.  

 

 Logo, emprestaremos uma atenção às diferentes formas como se manufatura, material e simbolicamente, o social. Como manejamos nossas experiências e pensamentos, damos formas às instituições e normas, regulamos “a vida como ela é”, como diria Nelson Rodrigues. E o exercício analítico, compreensivo e interpretativo que buscaremos compartilhar com vocês provém das pesquisas de caráter etnográfico produzidas na Universidade Pública.  

 Estas etnografias são resultado das observações sistemáticas das interações e das práticas do cotidiano inseridas nos mais diferentes contextos, cujas lógicas se quer compreender.  Comungamos com a antropóloga Mariza Peirano o fato de que “a pesquisa de campo não tem momento certo para começar e acabar. Esses momentos são arbitrários por definição e dependem, hoje que abandonamos as grandes travessias para ilhas isoladas e exóticas, da potencialidade de estranhamento, do insólito da experiência, da necessidade de examinar por que alguns eventos, vividos ou observados, nos surpreendem. E é assim que nos tornamos agentes na etnografia, não apenas como investigadores, mas nativos/etnógrafos”. (Peirano 2014, 379).  

Parafraseando a personagem Odete, de O Clone, “cada mergulho é um flash”. Para antropólogos, “cada experiência é um flash etnográfico”.   

 Os flashs dos quais aqui nos ocuparemos se limitam ao raio do nosso conhecimento. Ele não é infinito, nem mesmo grandioso e imponente, mas muito ao contrário, se circunscreve a um campo delimitado pelos caminhos que foi possível trilhar na labuta científica de dois “rapazes latino-americanos sem dinheiro no banco”, como diria Belchior.  

 

 Outro aspecto que exploraremos em nossos percursos antropológicos é a comparação. A comparação como método. Seres humanos e outras espécies vivas no Planeta comparam. Com finalidades, conteúdos e formas distintas, mas estão todos “aptos” a comparar. Os seres humanos comparam coisas, pessoas, circunstâncias. Somos uma espécie comparativa. Na Antropologia  a comparação contem um substrato teórico/metodológico, concedido pela formação antropológica. Assim como um chef que precisa dispor das técnicas, do conhecimento, da experiência e dos artefatos para medir adequadamente as misturas dos ingredientes em sua manufatura dos pratos de seu cardápio, o/a antropólogo/a deve assentar suas medidas comparativas nas técnicas, conhecimento, experiência e artefatos disponíveis na cozinha da Antropologia. E as comparações, que inicialmente se pautavam por reconhecer graus de semelhanças para hierarquizar as sociedades de simples a complexas, de primitivas a civilizadas, hoje pelo contrário, muito se nutrem dos contrastes entre as práticas e seus contextos nas diferentes sociedades.   

 Por isso mesmo, dada a infinitude das diferenças que nos fazem humanos, embora distintos uns dos outros, o fato de sermos antropólogos não supõe uma propriedade sobre a verdade. Sr Jorge, pescador, Dona Sônia, CEO da Brastemp e Sr Juvenal, o pipoqueiro, são igualmente agentes ativos e capazes de fornecerem ferramentas analíticas e compreensivas do ser humano. Não gozamos da posse do social. Nossas perspectivas não são melhores nem piores do que as deles, mas apenas diferentes. E, por obrigação de ofício, devemos nos debruçar sistematicamente na labuta percorrida pelas estradas das interrogações. Como dizem em muitas periferias, esse é nosso trampo !

 “O poder da criação”, diriam os poetas do samba e da música brasileira, Paulo César Pinheiro e João Nogueira. Diríamos, dois antropólogos por ofício, o poder da imaginação sociológica e antropológica.   

 Assim, as linhas que conduzirão nossas reflexões são o resultado de nossas pesquisas etnográficas e, portanto, embricadas com nossas perspectivas. E se constroem nos fundamentos de fenômenos que misturam o antigo e o recente, muitas vezes quebrando cronologias consensualizadas e consagradas da divisão entre o passado e o presente.

 No entanto, estão sempre dirigidas para compreender certas práticas existentes nas sociedades contemporâneas, que podem divergir entre si, mas que, por isso mesmo, são boas – como diria Lévi-Strauss sobre o Totemismo - para pensá-las.

 Para conferir forma discursiva inteligível aos leitores, centraremos nossas exposições em torno de duas categorias analíticas, que também são categorias do senso comum nos seus contextos distintos e que representam formas de interação que visam estruturar as relações de poder nas sociedades em que se verificam.

 A primeira delas é a categoria “inquisitorialidade”. Essa é uma categoria multivocal, que tem significado jurídico, mas também está presente, embora muitas vezes sem este nome, nas práticas cotidianas de alguns grupos sociais. A compreensão que temos aqui é a de que ela supõe, basicamente, uma suspeição sistemática prévia sobre um “outro” com quem estamos interagindo. A origem dessa suspeição não é explicitamente compartilhada. E sua prática consiste em estarmos certos de determinados fatos e práticas que o eventual interlocutor cometeu e, abordando-o de alguma forma, fazer com que reconheça sua culpa, assim confirmando nossas suspeitas que desejamos se transformem em fatos e certezas.  

 A prática da inquisitorialidade estabelece uma assimetria entre o interlocutor que sabe e acusa e o interlocutor que nega e se defende. O conhecimento sigiloso, obtido sem a participação da outra parte, institui um poder que o acusador adquire na relação.  

 Exemplos dessas práticas são comuns nas relações amorosas, em que o ciúme fantasia, muitas vezes sem fundamento, traições inexistentes, mas que nem por isso deixam de ter efeitos nas dinâmicas da violência e do conflito que provocam. Mas a inquisitorialidade também se manifesta com aqueles que ocupam posições subalternas na sociedade, muitas vezes acusados, com ou sem razão, de práticas incompatíveis com a confiança personalizada neles depositada. É o caso das acusações às empregadas domésticas, mas também aos filhos e aos cônjuges em referência a seu comportamento mais ou menos adequado ao ambiente de confiança familiar. Por exemplo, na expressão: “Quem tirou minha carteira do lugar?”, em que se supõe que alguém moveu indevidamente um objeto, sem que haja nenhuma evidência que comprove essa autoria, que muitas vezes é do próprio acusador, que esqueceu de colocá-la no lugar habitual. Finalmente, essa categoria aparece também no campo judiciário, em práticas de interrogatório de acusados e nos ritos de julgamento em que os acusados são tratados como se fossem previamente culpados, sem ser informados do conteúdo e das fontes que forneceram os elementos de acusação.

 A outra categoria analítica que mobilizaremos é “cisma”. Trata-se de uma categoria polissêmica, pois ela pode apresentar vários sentidos em diferentes contextos e no próprio dicionário. “O” cisma pode significar uma ruptura ou cisão, enquanto “a” cisma adquire outro significado: cismar é um ato que consiste em produzir uma avaliação e julgamento sobre as coisas, as pessoas e os fatos sustentados por uma ideia prévia fixa e inarredável, como a máxima que tem circulado amplamente em certas redes sociais, de que o Presidente Lula, em que pese nada ter sido provado nem verificado sobre suas condutas em outros mandatos, roubou; um mantra cismático, “Lula ladrão!!!”  

 A cisma difere do ato de desconfiar substantivamente, na medida em que na desconfiança as pontes comunicativas viabilizam a interlocução e a produção de consensos provisórios sobre os elementos que fazem parte da interação, da relação social e da controvérsia que se apresenta, podendo desfazer as certezas iniciais. Já a cisma produz o cisma comunicativo, rompendo os circuitos do reconhecimento do outro interlocutor. A desconfiança (e a confiança/trust) tem uma matriz liberal, na qual se presume a existência de indivíduos capazes de usufruírem da “lógica”, da “racionalidade” e das assertivas válidas para uma audiência determinada, no sentido de viabilizar o compartilhamento de argumentos. A cisma, como a inquisitorialidade, tem uma matriz medieval, pré-científica, pois só se reconhece aquilo que já se sabe, diluindo o caráter crítico das interações humanas em nome do absolutismo das certezas.   

 A cisma se expressa, por exemplo, nos ritos de interação que envolvem a “tia/tio do zap” no churrasco de domingo ou na festa de Natal. Seus argumentos, envoltos em concepções cismáticas, ganham musculatura e posição privilegiada na conformação de uma verdade acerca de um determinado tema ou questão. Não importam os outros argumentos mobilizados, os outros dados fornecidos no percurso do debate, porque ele ou ela estarão profundamente enraizados em suas convicções. O caso mais extremo são os dos “terraplanistas”, que podem facilmente verificar que a terra é redonda por diferentes meios, mas “cismam” que ela é plana...  

 Daí a rachadura perpetrada no ambiente de muitas famílias brasileiras (mais não apenas) em um mundo em que as informações em abundância produzem uma escassez de conhecimento, impermeabilizando o trabalho de concertação e alinhamento das concepções e visões de mundo. A cisma, igualmente, ganha corpo nas práticas institucionais judiciárias e policiais expressas nos rituais de julgamento e nas abordagens policiais eivadas de princípios e racionalidades cismáticas que se tornaram explícitas e notórias no episódio patrocinado por membros da Operação Lava-Jato e que repercutiu nas redes sociais como sendo um ato em que o julgamento moral não estava fundado em provas, mas em convicções: “não tenho provas, mas tem convicção”.  

 Inquisitorialidade e cisma “dão pano pra manga” e, esperamos, uma boa conversa entre nós e os/as leitores/as. Sigamos os passos desse papo. E até uma próxima leitura para nos comunicarmos sem nos “trumbicarmos”.    

 
Fabio Reis Mota e Roberto Kant de Lima, respectivamente pesquisador e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (www.ineac.uff.br).

 

 

 

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