Esta frase, “a minha verdade é a minha justiça”, me foi dita por uma juíza, durante pesquisa realizada para meu doutoramento em direito, nos idos de 2010.
Recentemente, no dia 20/06/2022, o Brasil, e provavelmente o mundo, ficou escandalizado com um vídeo que publicizou momentos de uma audiência realizada na 1ª Vara Cível da Comarca de Tijucas, SC, envolvendo um caso de aborto decorrente de estupro, nos termos do artigo 128, inciso II, do Código Penal: “Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”.
O Código Penal, em sua literalidade, não exige autorização judicial e nem define marco temporal para a realização desse tipo de aborto. Mas, no caso concreto, em detrimento da lei, o Hospital Universitário Professor Polydoro Ernani de São Thiago, ligado à UFSC, lastreado em normas técnicas do Ministério da Saúde, acrescenta à redação da lei um marco temporal de 20 semanas. A partir disso, o Hospital não realiza o aborto e exige que a vítima obtenha a autorização judicial que a própria lei não determina.
Foi assim que o caso da menina de 10 anos chegou ao Judiciário. E, lá chegando, por “falta de sorte”- porque tudo poderia ter sido diferente, e muito menos doloroso, se fosse outro o perfil e o entendimento pessoal da juíza e/ou da promotora - a interpretação restritiva do Hospital encontrou eco na magistrada e na promotora em exercício, que, igualmente, desfavoráveis ao comando legal, tentaram enquadrá-lo às suas convicções.
Quando estudamos, em direito, o aborto do inciso II do art. 128, costumamos ler adjetivações como “moral, ético, sentimental, terapêutico, humanitário ou piedoso”, acompanhadas do substantivo “aborto”, justamente para configurar que se trata de hipótese excepcional, de excludente de ilicitude, porque em situações de tamanha violência o sistema legal presume o direito da vítima de não ter de suportar uma gestação resultante de um evento traumático, que pode lhe gerar ainda mais sofrimento físico e emocional.
Ocorre que, conforme já explicitaram as inúmeras pesquisas empíricas que o InEAC/UFF e tantos colegas e núcleos vêm conduzindo, aqui, no Brasil, quem diz o que a Lei diz é o Juiz.
Para mim, pessoalmente, uma magistrada disse: “a gente faz mágica para fazer justiça”.
E é uma pena que nem sempre a mágica faça magia (ou justiça), como na audiência referenciada, em que alguns trechos da conversa conduzida pela magistrada, de tão pesados, chamaram a atenção, sendo especialmente difíceis: - “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”, questiona a juíza, seguida da promotora: “A gente mantinha mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga, porque, para ele ter a chance de sobreviver mais, ele precisa tomar os medicamentos para o pulmão se formar completamente”. E prossegue: “Em vez de deixar ele morrer – porque já é um bebê, já é uma criança –, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando”.
A audiência e os fatos falam por si.
Porém, aqui, gostaria de centrar o debate, e propor, mais uma vez, uma reflexão sobre a repercussão do caso, entre colegas, juristas e pesquisadores do Direito.
Citando Clifford Geertz, que dizia que a tarefa da antropologia “é inquietar” e que “tranquilizar é tarefa de outros”, “mercadores que somos do espanto”, gostaria de problematizar não o caso, porque, como eu disse, ele fala por si e está sendo apurado pelas instâncias competentes.
Aqui, o que eu gostaria de problematizar, mais do que o caso em si, é a sua repercussão - e o meu espanto pessoal diante do espanto de tantos colegas que me pareceram abismados, como se estivessem vendo, pela primeira vez, a explicitação de cenas, práticas e rituais judiciários autoritários, que, de certo modo, para nós, que fazemos pesquisa empírica qualitativa em Tribunais há tanto tempo, não são, infelizmente, nem esporádicos, nem inusitados.
Assim, o que eu gostaria de provocar é a reflexão sobre a importância das pesquisas empíricas qualitativas sobre os nossos Tribunais, na medida em que os dados construídos a partir da observação direta ou participante, em entrevistas formais e conversas informais das práticas judiciárias, sempre com conhecimento de todos os envolvidos, só elas, são capazes de explicitar este aspecto de nossa cultura jurídica. E a nós, que fazemos esse tipo de pesquisa há algum tempo, não é dado o espanto ou a perplexidade que torna inédito ou escandaloso o que, na verdade, não é, de forma nenhuma, incomum – embora violento.
Tratar a Juíza de SC como antiestrutural implica tornar invisibilizada uma discussão mais ampliada sobre a nossa cultura jurídica e seus aspectos implícitos e naturalizados. Evidentemente que não estou defendendo essas práticas. É justamente o contrário. O que estou tentando ressaltar é que essas práticas estão naturalizadas e que não produzimos, no mundo do direito, teorias que expliquem as práticas. Produzimos dogmática, abstrações prescritivas e idealizadas, sobre um mundo Judiciário que não existe.
Acredito, honestamente, que a Juíza e a Promotora de SC devem ter ficado igualmente espantadas com a repercussão do caso, porque creio que elas naturalizem a sua própria atuação e o seu fazer jurídico – assim como tantos profissionais do sistema de justiça. Acredito, ainda, que elas não são nem as primeiras, e nem as últimas profissionais do direito, que, no exercício de suas atividades, produzem juízos morais e pessoais sobre a lei – verdadeiras “moralidades situacionais”, como destaca Lucía Eilbaum - e que, em sua margem de interpretação, aportem em suas decisões os seus vieses e sensos particulares de justiça.
Por serem contra o aborto, atuaram e exerceram os seus cargos transitando nessa chave moral e decidiram interpretar a lei com tom punitivista, não tendo sido “positivistas ou legalistas”. De outro lado, outros colegas seus, que fossem favoráveis ao aborto, teriam interpretado literalmente o Código Penal e, sem titubear, autorizado de imediato o aborto.
“A grande vantagem da nossa absoluta, praticamente absoluta autonomia pra decidir, é que se você fizer uma decisão fundamentada, mesmo que incoerente, ela pode até ser reformada, mas ela não é nula, não tá tecnicamente errada. Se eu quiser, coloco uma fundamentação à luz de princípios e pronto, faço de tudo com isso.”.
Esta fala é de um interlocutor da minha pesquisa, magistrado. E reverberações dela estão em diversas pesquisas empíricas que descrevem os rituais do sistema de justiça. Explicitar - ou tratar - como inédita ou extraordinária a conduta da juíza de SC, de novo, implica em desconsiderar a realidade processual brasileira e manter viva a fé ou a crença de que os juízes não julgam com o que está fora do processo ou que eles não julgam contra texto de lei.
Sim, eles julgam. Porque eles têm arbítrio para interpretar a lei. E no Brasil o processo judicial não controla subjetividades e não tem mecanismos consensuais de interpretação das normas. “O que não está nos autos, não está no mundo” é uma ficção. Existe um mundo interno, que está no íntimo dos magistrados, que reconhecida e explicitamente, como nesse caso, repercute nos autos do processo.
A possibilidade de interpretar fatos, leis e provas processuais confere amplo arbítrio aos magistrados, que não são constrangidos pelo positivismo jurídico e que, eventualmente, podem exercer sua jurisdição respaldados no princípio do “livre convencimento motivado do juiz”.
Sendo assim, as frequentes manifestações de surpresa e de estupefação, demonstradas, inclusive, ou especialmente, por pesquisadores e estudiosos do sistema de justiça, que ficam perplexos com suas práticas, revelam, para mim, o quanto precisamos caminhar, ainda, na construção de pesquisas calcadas em dados empíricos qualitativos, fundados na observação das práticas de aplicação das leis.
Afogados em barris de doutrinas e aprisionados no conhecimento e nas verdades reveladas por dogmáticos do direito de outros tempos, seguimos sem problematizar - ou sequer sem olhar - a realidade e a contemporaneidade das práticas cotidianas do mundo jurídico, pagando o preço dessa dissociação cognitiva entre dois mundos tão diversos, que seguem sem se comunicar: o mundo das práticas e o mundo dos manuais doutrinários. As pesquisas empíricas qualitativas são, nesse contexto, o “antídoto” para essa anestesia dogmática. E a única possibilidade de descortinar os véus da naturalização que encobrem os rituais do sistema de justiça e permitir, com isso, os exercícios do estranhamento, da crítica e da reflexividade, tão necessários para conhecermos e, a partir disso, repensarmos e, finalmente, aperfeiçoarmos as nossas estruturas jurídicas.
Bárbara Gomes Lupetti Baptista é pesquisadora do INCT-InEAC/UFF