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Quinta, 17 Fevereiro 2022 17:42

Entre a prisão e a acusação: o mérito da e na audiência de custódia

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O site do INCT/INEAC disponibiliza aqui o artigo "Entre a prisão e a acusação: o mérito da e na audiência de custódia"de autoria dos pesquisadores Pedro Heitor Geraldo Barros e João Vitor Freitas Duarte Abreu , ambos vinculados ao INCT/INEAC.

 O artigo foi publicado no site https://www.jota.info/ . Para ler acesse o link https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/entre-a-prisao-e-a-acusacao-o-merito-da-e-na-audiencia-de-custodia-04022022

Ou leia abaixo:

JUDICIÁRIO E SOCIEDADE

Entre a prisão e a acusação: o mérito da e na audiência de custódia

Audiência funciona como um 1º encontro com o juiz, mas não é necessariamente uma revisão das práticas policiais

 

A partir dos dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Folha de S.Paulo noticiou o “desaparecimento” das audiências de custódia no Brasil, com a queda de 222 mil em 2019 para 66 mil em 2020 – até junho de 2021, apenas 19 mil foram realizadas. Cerca de 52,9% dessas 19 mil não cumprem os requisitos estabelecidos em resolução para realização por meio de videoconferência.

Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem consolidado a jurisprudência, de que a não realização da audiência de custódia no prazo de 24 horas depois da prisão em flagrante constitui irregularidade passível de ser sanada, que nem mesmo conduz à imediata soltura do custodiado” (Rcl. 49566 AgR).

A 1ª Turma do STF tem o mesmo entendimento: a “falta de audiência de custódia constitui irregularidade, não afastando a prisão preventiva, uma vez atendidos os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal e observados direitos e garantias versados na Constituição Federal” (HC 198.784, relator ministro Marco Aurélio).

 

Por fim, o ministro Nunes Marques, como relator no julgamento do HC194.074, argumentou que “a superveniência da realização da audiência de instrução e julgamento torna superada a alegação de ausência de audiência de custódia”.

Afinal qual o mérito na e da audiência de custódia? Como é possível compreender a não realização de uma audiência que, em tese, deveria supervisionar a legalidade da prisão em flagrante, a ocorrência de tortura ou maus tratos no momento da prisão e a necessidade da manutenção da prisão ou a concessão de medidas cautelares.

Na prática, é comum observar diferentes significados do “mérito”. O mais comum é a referência à instrução do processo. São empregados sob o mesmo jargão dos operadores “mérito dos fatos” presente nos textos normativos que regulamenta audiência de custódia. Aqui, a categoria mérito se refere ao que deve ser apreciado pelo juiz. Pretendemos contribuir para compreensão distinguindo as alegações sobre o mérito da prisão como objeto da audiência de custódia e mérito da acusação como responsabilidade do promotor e objeto do processo penal. Argumentamos que a forma de organização da Justiça brasileira orientada para as finalidades do processo impõe desafios de implementação dos “serviços” da justiça.

A orientação dos momentos de encontro da Justiça com os custodiados para as finalidades do processo tem implicações na condução da audiência, como incompreensões da interação em custodiados e operadores do direito sobre o que denominam “mérito”. Seja para impedir a fala dos custodiados (ABREU, 2019) ou utilizar desse argumento para o cerceamento manifestação da defesa na audiência de custódia (JESUS; TOLEDO; BANDEIRA, 2021).

Processo como forma de administração dos conflitos e a produção dos registros

Os autos do processo constituem-se no conjunto de registros para a decisão do juiz ordenados cronologicamente e de propriedade da jurisdição. A decisão final deve supostamente fazer referência apenas aos registros constantes nos autos. A organização da Justiça brasileira se subordina ao processo como forma de administração de conflitos. Essa forma contribui para incompreensão de dois aspectos relevantes para audiência de custódia.

O processo é uma maneira de acumular registros contra os acusados. Esta forma acaba confundindo os dois significados na audiência: o mérito da acusação (quem acusa é o promotor que é o objeto do processo penal) e o mérito da prisão (o objeto da audiência de custódia). Tanto a análise dos registros quanto uma apreciação do testemunho do custodiado são passíveis de serem apreciados ou descartados na decisão, em razão do mérito da acusação, que é antecipada formalmente por meio do Auto de Prisão em Flagrante (APF).

As audiências de custódia foram implantadas no sistema de Justiça brasileiro a partir do julgamento da ADPF 347, em 2015, como uma “observância obrigatória”. Posteriormente o CNJ editou a resolução nº 213 de 2015 estabelecendo parâmetros para sua realização. Em 2019, tornou-se lei em sentido estrito, mas sem o detalhamento do rito.

Sobre o “mérito”, suas restrições estão na Resolução n° 213/2015 do CNJ, que contém em seu artigo 8º, VII, que o magistrado deve “abster-se de formular perguntas com finalidade de produzir prova para a investigação ou ação penal relativas aos fatos objeto do auto de prisão em flagrante”; e no §1º, que estabelece que o juiz deve “indeferir as perguntas relativas ao mérito dos fatos que possam constituir eventual imputação (…)”.

Essas medidas são vistas pelos operadores como cuidados necessários para a garantia dos direitos dos custodiados uma vez que essa é uma etapa entre o inquérito e a ação penal iniciada pelo recebimento da denúncia. Inevitavelmente, essa distinção pode ser ambígua e a audiência de custódia se torna parte do processo, uma vez que as audiências não funcionam para a explicitação do ritual de justiça, mas para a produção de registros para o juiz.

O referido artigo da Resolução n° 213/2015 demonstra uma preocupação com os registros que ela pode produzir. Por esta razão, a compreensão da função dos “autos” como potenciais acumuladores de registros a respeito do mérito da acusação é relevante.

O ‘mérito dos fatos’ entre a prisão e a acusação

Numa audiência de custódia, o custodiado aparentava ter cerca de 50 anos e estava com as mãos algemadas embaixo da mesa com a cabeça baixa. Atrás dele, estava o policial militar responsável pela segurança da sala de audiência. Ele foi preso por furtar uma peça de queijo de um supermercado dois dias antes.

O promotor opinou pela prisão preventiva. A juíza entendeu que a prisão não era proporcional e concedeu a liberdade provisória com aplicação de medidas cautelares: “Olha, [nome do custodiado], vou soltar, mas não era para soltar. Era um queijo, mas de 200 reais. Não quero te ver de novo aqui!”.

O processo foi distribuído em junho de 2017. Dias depois, o juiz que recebeu o processo na vara criminal onde aconteceria a instrução despachou informando que o indiciado havia sido beneficiado com a liberdade provisória por decisão em audiência de custódia e abriu “vista ao MP”. Os autos retornaram para o juiz no fim do mesmo mês, e o juiz decretou a prisão preventiva após o requerimento do MP.

Quase um ano depois, o processo terminava. Mesmo depois da decisão concedendo a liberdade provisória na audiência de custódia, ele permaneceu preso durante todo o processo. Ao final do processo, foi condenado a um ano de reclusão e dez dias multa no regime inicial semiaberto.

A audiência de custódia tem se caracterizado na organização da Justiça criminal como uma etapa presidida por um juiz de primeira instância. A revisão do mesmo ato pelo juiz natural, ou seja, aquele que instrui o processo e delibera sobre o mérito da acusação, sendo também um juiz de primeira instância, acaba criando, na prática, uma nova instância, sendo a unidade que realiza a audiência de custódia hierarquicamente inferior às varas criminais.

Nesse sentido, a 2ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), deferiu, em habeas corpus, que sem fato novo, o juiz natural não pode alterar a decisão do juiz da audiência de custódia que concedeu a liberdade ao acusado, pois ambos são da mesma instância. Segundo a relatora do HC: “A competência revisora da decisão prolatada pelo juiz de audiência de custódia é exclusiva do Tribunal de Justiça, sob pena de subversão da ordem jurídica (…)” (TJSP, 2018).

Este caso demonstra como o mérito da audiência de custódia não está bem definido para os operadores. O juiz natural, ao se manifestar sobre a recepção da ação penal na instrução, ensejou uma discussão sobre instância e jurisdição. O mesmo problema segue no argumento do ministro Nunes Marques ao orientar que “a superveniência da realização da audiência de instrução e julgamento torna superada a alegação de ausência de audiência de custódia”.

A categoria “mérito dos fatos” não colabora para distinguir a finalidade da audiência, pois os fatos podem se relacionar tanto a como a prisão foi realizada, quanto como o suposto crime praticado, embora seja este o significado pretendido normativamente. O registro do APF é parte dos depoimentos que foram “reduzidas a termo” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2011) por uma das partes interessadas na acusação. Assim, na audiência de custódia a prisão não é representada por quem realmente a efetuou, mas sim pela autoridade que efetuou o registro da comunicação da prisão por meio do APF, que possui presunção de legalidade.

Nesse sentido, o mérito da acusação é provar com a proposição da ação penal a prática do crime pelo réu. No entanto, o mérito da acusação é antecipado pelo APF na audiência de custódia. A recente alteração legislativa que possibilita ao delegado de polícia requerer a prisão preventiva mesmo nos casos de flagrante tem sido observado como algo que pode substituir o pedido da acusação em audiência de custódia caso o juiz entenda que não pode decretar a prisão preventiva de ofício.

Estas práticas demonstram uma confusão dos papéis dos atores durante essa audiência. Na série Justiça e Pesquisa, os pesquisadores identificaram a forte unidade entre juízes e promotores tanto na condução das audiências, como pelas motivações decisórias, contribuindo para confusão dos papéis de acusadores e julgadores (AZEVEDO; SINHORETTO; LIMA, 2018).

O mérito da prisão é frequentemente negligenciado. São poucos registros de relaxamento de flagrante decorrente de inconsistências na análise formal dos documentos que compõem o APF, ou pela ocorrência de violência, tortura ou maus tratos no momento da prisão. Pelo contrário, os excessos da polícia continuam a produzir efeitos a favor da acusação, pois deixam de fazer parte dos registros. Essa prática é observada como uma forma de regulação da tortura de acordo com a queixa e posição social dos envolvidos (KANT DE LIMA, 1999).

Assim, esta audiência acaba funcionando como mais uma situação de reafirmação da suspeição sistemática; não só pesa em desfavor o registro do APF, mas os relatos sobre tortura dos cidadãos são desacreditados, na medida em que se soma ao processo uma decisão fortemente desfavorável que é a prisão.

Ao pensarmos em termos organizacionais, a confusão do mérito da prisão e da acusação é favorecida por esta forma de administrar conflitos pelos registros. Fazendo que a audiência de custódia funcione como um primeiro encontro com um juiz, mas não necessariamente uma revisão das práticas policiais durante as prisões.


ABREU, J. V. F. D. A custódia das audiências: uma análise das práticas decisórias na Central de Audiência de Custódia (CEAC) do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado—Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2019.

AZEVEDO, R. G. DE; SINHORETTO, J.; LIMA, R. S. DE. Audiência de Custódia, Prisão Provisória e Medidas Cautelares: Obstáculos Institucionais e Ideológicos à Efetivação da Liberdade como Regra: Justiça Pesquisa Direitos e Garantias Fundamentais. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2018.

CARDOSO DE OLIVEIRA, L. R. Direito Legal e insulto moral: Dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.

JESUS, M. G. M. DE; TOLEDO, F. L.; BANDEIRA, A. L. V. DE V. MÉRITO SOB CUSTÓDIA: OS LIMITES DA MENÇÃO AOS FATOS DA PRISÃO DURANTE AS AUDIÊNCIAS DE CUSTÓDIA. Direito Público, v. 18, n. 99, 28 out. 2021.

KANT DE LIMA, R. Polícia, justiça e sociedade no Brasil: uma abordagem comparativa dos modelos de administração de conflitos no espaço público. Revista de Sociologia e Política, p. 23–38, nov. 1999.

 

PEDRO HEITOR BARROS GERALDO – Professor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC-UFF), do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito.
JOÃO VITOR FREITAS DUARTE ABREU – Doutorando em Sociologia e Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Mestre em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense. Bacharel em Segurança Pública e Social pela UFF. Pesquisador vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC) e ao Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito (NSD)

 

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