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Quarta, 09 Fevereiro 2022 14:40

OS JUÍZES CRIMINAIS E SEUS ASSESSORES: O PAPEL DA PRESUNÇÃO DA CULPA E DA “CONFIANÇA” NA PRODUÇÃO DAS SENTENÇAS CRIMINAIS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

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Já está disponivel em nosso site o artigo "OS JUÍZES CRIMINAIS E SEUS ASSESSORES: O PAPEL DA PRESUNÇÃO DA CULPA E DA “CONFIANÇA” NA PRODUÇÃO DAS SENTENÇAS CRIMINAIS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO", publicado na Juris Poiesis: Revista do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá. O artigo é de autoria dos pesquisadores Luiz Fernando Souza Sampaio e Roberto Kant de Lima, ambos vinculados ao INCT/INEAC.

O artigo pode ser lido abaixo, ou com a formatação original no PDF abaixo em anexo.

 

OS JUÍZES CRIMINAIS E SEUS ASSESSORES: O PAPEL DA PRESUNÇÃO DA CULPA E DA “CONFIANÇA” NA PRODUÇÃO DAS SENTENÇAS CRIMINAIS NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

 

RESUMO A categoria “confiança” que se pretende definir neste trabalho foi desvelada pela pesquisa etnográfica dentro das varas criminais da capital do Rio de Janeiro através de entrevistas com servidores que trabalham dentro dos gabinetes de juízes. Esta categoria não está relacionada com a questão do instituto jurídico do trust norte-americano, por exemplo, que definia uma relação de confiança pública necessária nas relações de mercado, ensejador do desenvolvimento da economia daquele país (DAVID, 1978). E embora seja uma categoria ligada à questão da formação da burocracia brasileira, menos ainda se pretende que haja alguma relação com a definição de burocracia weberiana, definida por normas que buscavam a formação de uma burocracia formada por regras racionais, transparentes e universalizadas a serem cumpridas por todos. A questão da categoria confiança que pretendemos expor, com o conteúdo alcançado por nossas pesquisas, tem um caráter particularizante. A trama das relações entre servidores e juízes tem como um de seus constituintes a confiança que neste contexto demarca a relação hierárquica que há na relação servidor/juiz e desvela outras características das rotinas e tarefas do processamento nos cartórios criminais na capital do Rio de Janeiro. E fornece elementos causais para as características das práticas inquisitoriais do processo penal.

 

PALAVRAS-CHAVE: Relações de confiança; subordinação na organização das rotinas cartorárias; práticas inquisitoriais no processo penal; etnografia jurídica.

 

1. INTRODUÇÃO

A categoria confiança será objeto do presente trabalho. Na interpretação desta categoria o trabalho tenta delimitar as relações significativas dentro do contexto da pesquisa. Nesta interpretação, buscou-se relacionar a categoria com a própria característica inquisitorial3 presente dentro das práticas do processo penal brasileiro e relacioná-la ainda com a questão da característica da sociedade brasileira como uma sociedade hierarquizada, onde não se privilegiam as relações igualitárias (DAMATTA, 1979). Tais características serão explicitadas aqui ao colocarmos sob descrição práticas cartoriais criminais e o papel da categoria que, conforme se verificou na pesquisa, é articuladora do tecido de relações interpessoais dos atores da justiça criminal carioca. Para além disso, a questão da confiança e o espectro semântico que será apresentado dentro das possíveis significações do termo, demonstram como tal categoria pode servir para apontar características das práticas do processo penal, ensejando uma clara diferenciação entre a prática e o dever ser do Direito, cristalizando o dilema do Direito, no qual as práticas da Justiça não condizem com o que é regularizado pela regra jurídica nem preconizado pela doutrina. Trata-se de um trabalho de etnografia participante desenvolvida ao longo do doutorado que, de certa forma, ocorreu e se viabilizou em razão de minha função como serventuário da justiça criminal na cidade do Rio de Janeiro (AUTOR 1, 2021). Parte do texto deste constituise de reflexões e descrições densas (GEERTZ, 1999) acerca do trabalho de campo desenvolvido. Os instrumentos de pesquisa são entrevistas com servidores da Justiça criminal (federal e estadual) da capital do Rio de Janeiro que trabalham assessorando juízes na criação de decisões e sentenças. Foram escolhidos 10 cartórios criminais que pertencem à Justiça Federal (todos sediados no fórum do centro da cidade, na Avenida Venezuela, 134) e outros 10 cartórios criminais da Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (todos também sediados no centro, Rua Erasmo Braga, 115).

O problema da pesquisa (AUTOR 1, 2021) centrava-se, a princípio, na verificação do processo de criação dos textos decisórios destes cartórios. Verificava-se a questão das garantias processuais correlatas à vedação constitucional do juízo de exceção. Entretanto, neste trabalho pretende-se enfatizar nas observações das relações entre servidores e juízes, como são feitas as referidas decisões e como a categoria nativa observada “confiança” se torna parte do tecido necessário e indispensável para a questão da execução das tarefas cartorárias. Para tanto, foram feitas entrevistas com os referidos servidores e também, em razão do contexto para se obter as entrevistas, serão algumas vezes relatadas as observações efetuadas em audiências que foram presenciadas.

3 A tradição inquisitorial é explicitada, desde os anos 80, em trabalhos etnográficos que a identifica nas práticas dos operadores do direito, observadas em pesquisas de campo e que poderiam ser frouxamente resumidas no formato das práticas presentes inicialmente no inquérito policial, que pretende identificar autores e materialidade de eventos considerados criminosos. Assim, mesmo com as definições legais e doutrinárias da consagração da presunção da inocência no processo, os efeitos do indiciamento policial marcam indelevelmente, para as rotinas dos operadores judiciais, a presunção da culpa dos envolvidos nos inquéritos, indiciados ou denunciados pelo Ministério Público (AUTOR 2, 2008, 2010, 2019)

 

2 - SIGNIFICADOS DE CONFIANÇA

O primeiro passo, para que possamos entender a categoria nativa “confiança” dentro do contexto da pesquisa que se pretende descrever e analisar, será demarcarmos alguns parâmetros e analisarmos algumas outras definições para o termo com a finalidade de evitar confundi-la com significações que se distanciem do que se pretende demonstrar.

A categoria “confiança” que se pretende definir neste trabalho não está relacionada com a questão do trust norte-americano, por exemplo, que definia uma relação de confiança como pressuposto indispensável nas regras e relações que devem se estabelecer no mercado, ensejador do desenvolvimento da economia daquele país (DAVID, 1978). Neste último significado designa trust advém como um elemento indispensável, explícito e necessário à forma contratual que se estabelece dentro da cultura de mercado da common law. Também, embora seja uma categoria ligada à questão da formação da burocracia brasileira, menos ainda quer se pretender que haja alguma relação com a definição de burocracia weberiana (WEBER, 1982), definida por normas que buscavam a formação de uma burocracia formada por regras racionais, transparentes e universalizadas a serem cumpridas por todos. A questão da categoria confiança que pretendemos discutir, com o conteúdo alcançado por nossas pesquisas, tem um caráter explicitamente particularizante. Não há nesta categoria, que será adiante colocada sob descrição, uma relação de generalidade e universalidade, mas de particularismos que, em vários exemplos, são formados dentro de tecido dos relacionamentos interpessoais, em núcleos de pessoas inseridos na burocracia cartorária dos juízos pesquisados. Sua existência aí está relacionada a um sistema formado por relações personalizadas entre servidores e juízes, que se integram a um ethos mais geral ligado à própria característica hierarquizada de nossa sociedade (DAMATTA, 1979). Esta categoria, cuja construção pretendemos delinear através das informações da presente pesquisa, é também um reflexo constituinte de uma articulação entre o ethos de nossa sociedade hierarquizada e das características inquisitoriais das práticas do processo penal brasileiro como um todo (AUTOR 2, 2008, 2019). No caso da categoria confiança, sua aplicação estabelece um tecido de trocas de atribuições informais, de lealdades e obrigatoriedades recíprocas (MAUSS, 2003), mas que não são assumidas com transparência pública, embora possam produzir efeitos públicos. Tal circunstância está também relacionada ao trato secreto em que o meio jurídico, especialmente dentro dos cartórios das varas criminais, é construído. Essas rotinas são atreladas à tradição inquisitorial de segredo diante de documentos públicos escritos (MIRANDA, 2000, 2005), o que a pesquisa atual confirma de forma inequívoca, como já apontado, na forma secreta como são passadas as informações para terceiros sobre rotinas do cartório ou mesmo em relação aos envolvidos ou acusados vinculados aos processos do acervo de cada cartório.

Não pretendamos fazer neste trabalho um apanhado histórico, tão costumeiro nas monografias e dissertações acadêmicas no Direito, sobre a categoria nativa4 que pretendo descrever – confiança. Entretanto, a relação que tencionamos buscar, numa perspectiva diacrônica, com certeza iluminará o contexto dos usos desse termo dentro da estrutura do Judiciário nos dias atuais, mesmo sendo esta pesquisa restrita às varas criminais da capital do Estado do Rio de Janeiro. Passamos, portanto, a demonstrar as relações que subsistem sobre a categoria confiança entre o Direito em sua formação no Brasil Colônia e o ethos dos cartórios pesquisados neste trabalho. 2.1 As origens da confiança como elemento de formação da burocracia brasileira O autor Stuart B. Schwartz (2011), em seu texto sobre a formação da burocracia do Brasil Colônia, traz importante esclarecimento sobre como a confiança se traduz, desde a formação da sociedade colonial brasileira, em uma ferramenta para a estruturação da formação da burocracia administrativa da Coroa de Portugal no Brasil Colônia. Inicialmente, a questão se refere ao respeito ao modo como o controle da Coroa se consubstanciava nas fileiras de magistrados que eram convocados para atuar no Brasil, como magistrados de primeira instância ou ainda nos Tribunais da Relação da Bahia e Rio de Janeiro. O autor faz um levantamento que inclui uma descrição precisa desde a formação destes juízes em Portugal, assim como das repercussões de suas atuações no Brasil Colônia, verificando as influências que eles irão fomentar naquela sociedade incipiente e ainda se agregar a elas como um elemento social de poder e prestígio. Sobre a questão, será relevante notar que os magistrados que aqui atuaram, com formação na Universidade de Coimbra, marcadamente adaptaram-se ao contexto social da Colônia, distanciando-se, muitas vezes, das obrigações que a Coroa portuguesa pretendia com suas nomeações.

4 “Categoria nativa” é a denominação que os antropólogos dão às expressões que orientam sistematicamente o discurso dos seus interlocutores no campo.

 

A questão da confiança será para a Coroa portuguesa o ponto estratégico que irá demandar a introdução desses magistrados no Brasil. A pretensão e necessidade da Coroa Portuguesa era tentar manter a centralização do poder na metrópole de forma que os magistrados e outros membros dessa administração (governadores-gerais, ouvidores, entre outros) pudessem gerir suas ordens a contento, como um braço da Coroa que alcançasse as colônias e mantivesse, assim, o poder centralizado. Entre as medidas para este fim administrativo, os magistrados desempenhavam um papel bastante importante. Sendo todos formados pela tradição Coimbrã, esta apresentava como sua principal finalidade a formação de pessoas que se tornassem aptas a exercer os cargos dessa incipiente posição de Estado português, ou seja, o ensino jurídico da Universidade de Coimbra tinha como principal objetivo a criação de um corpo burocrático para a Coroa portuguesa. Tal fato, por si só, entretanto, não foi capaz de manter as finalidades planejadas. Ainda que tenham sido estabelecidas várias regras para que a lisura e confiança dos juízes fossem mantidas e reguladas, a prática e a vivência que são descritas pelo autor revelam uma série de desmandos e irregularidades praticados por essas autoridades, que impuseram um verdadeiro costume de corrupção e afronta à lei pelos magistrados portugueses no Brasil Colônia. A questão da confiança entre a Coroa e os magistrados que vieram exercer atividades judiciárias no Brasil acaba por não se estabelecer da forma pretendida, em primeiro lugar, porque essa confiança deveria se realizar de maneira particularizada e pessoal, o que não era possível tanto em função do distanciamento entre a metrópole (Portugal) e a Colônia (Brasil), como pela prevalência da pessoalidade sobre a obediência às regras, a qual se impõe nesse tipo de relação de confiança. A questão da confiança neste caso se torna importante para a presente pesquisa, porque delineia toda uma formação de burocracia administrativa baseada neste fator (ainda que nos seus primeiros momentos se verifique uma quebra da confiança no liame de relação institucional que deveria existir entre os magistrados e a Coroa portuguesa). A Coroa tinha confiança na formação dos magistrados e um prognóstico de sua lisura para desempenhar o papel na Colônia que se separava da metrópole por milhares de quilômetros, dificultando que outra fiscalização fosse feita. E a forma como fracassaram as medidas pretendidas pela Coroa está, provavelmente, ligada à questão de que a confiança não confere um liame da regra objetiva e universalizada, mas sim de uma relação personalizada e de convivência próxima e reiterada que a distância física e de convívio existente entre a Colônia e a Metrópole impedia.

 

As decisões e os desmandos dos magistrados portugueses que vieram para o Brasil, com a finalidade de manter a lisura dos atos dos habitantes locais, acabam por produzir uma aura de discricionariedade arbitrária em suas práticas judiciais, contexto em que cada um destes magistrados decidia os conflitos que lhes eram trazidos não em razão de uma regra formal administrativa que buscasse resoluções previsíveis dentro das normas estabelecidas, mas decisões que, de modo bastante comum, passavam pelos seus interesses individuais, ou de pessoas que fossem de seu círculo social, como descreve o autor:

O prestígio e o poder da magistratura estimulavam a elite colonial a fazer alianças com ela, e os magistrados, por sua vez, não tardavam a usar sua posição em proveito próprio ou da família. Magistrados desinteressados eram guardiães da estrutura formal do Império imaginada pela Coroa, mas esses homens geralmente buscavam alcançar objetivos individuais e coletivos que conflitavam abertamente com os padrões do cargo. Esse era o paradoxo do governo colonial, mas era um paradoxo que dava vida ao regime ao conciliar os interesses da metrópole e da colônia (SCHWARTZ, 2011, p. 292).

 

Tal característica irá, como também declara o autor, se perpetuar e naturalizar como uma prática usual na administração pública pelos dias atuais (SCHWARTZ, 2011, p. 293). Realmente, somos testemunhas frequentes nas decisões administrativas, até hoje, de violações de regras que pretenderiam ser universais, para que a administração decida por razões idiossincráticas e mesmo por razões de favorecimento pessoal (AUTOR 2, 2013). 2.2 A categoria confiança em seus alcances dentro do campo A partir deste ponto iremos tratar especificamente a categoria confiança, descrevendo e analisando o seu uso dentro do campo pesquisado (Varas criminais da capital do estado do Rio de Janeiro), com dados construídos durante o trabalho de campo, em etnografia que envolveu entrevistas não estruturadas, observação direta e observação participante. Para tanto, se faz necessário a verificação de como são abrangidos os significados dessa categoria entre seus atores. O primeiro ponto a ser medido é que a categoria confiança estabelece uma relação entre magistrados e servidores, dentro das rotinas de trabalho, ou seja, para que o juiz aceite e atribua funções aos servidores, terá que estar estabelecida entre esse servidor e o juiz a relação de confiança Entretanto, a referida categoria confiança no campo tem implicações e significações bastante específicas. Quando estabelecida entre serventuário e juiz irá implicar uma série de padrões nesta relação. O primeiro deles está na razão pela qual o juiz irá delegar de modo informal a incumbência a este funcionário das tarefas que são exclusivas dos juízes. O exemplo mais comum e importante será a criação dos textos judiciais decisórios. Para tanto, e como segunda característica para que se promova a “confiança”, o servidor terá que ter a expertise de saber que tipo de decisão o juiz irá tomar para os possíveis contextos usuais das decisões dentro do cartório, qual seja, por exemplo, em um caso de flagrante de drogas, como o juiz irá decidir sobre liberdade provisória ou ainda, como se dá a dosimetria na sentença, o que significa dizer, qual o modelo deve ser usado para cada situação. Em outro ponto de bastante relevância para se estabelecer a confiança, o juiz ao escolher um serventuário para trabalhar diretamente com ele, tem a perspectiva de que as informações dentro do cartório e principalmente dentro do gabinete, por mais corriqueiras que sejam, devem ser mantidas em segredo. Esse servidor, que terá a confiança do juiz, deverá ter um perfil específico no que tange às práticas do processo penal e sobre questão da culpabilização dos acusados, de modo que o acusado processado deve ser encarado com a presunção de culpa. A desconfiança sobre a pessoa acusada é uma marca comum entre todos os atores pesquisados. Por fim, a categoria confiança revelada no campo, demonstra uma estrutura de culpabilização dos serventuários para os possíveis erros cometidos na execução das tarefas, o que significa dizer que, como as decisões são em sua grande maioria feitas pelos serventuários, ainda que de atribuição exclusiva do juiz, a responsabilização será direcionada ao serventuário, acarretando uma relação de risco menor ao juiz e maior risco da culpabilização do serventuário. Todas estas características, que serão descritas, alicerçam a constatação da inquisitorialidade do processo penal brasileiro nas suas práticas processuais. Há dentro da dogmática jurídica uma clássica distinção entre os tipos de processo penal limitados pela classificação como acusatório, inquisitorial e misto (TOURINHO FILHO, 2000, p. 8), cujas características distintivas estão arraigadas na atuação dos atores no ato do julgamento (acusação, defesa e órgão julgador), na relação de publicidade dos atos (processos sigilosos ou públicos) e na capacidade dialógica das argumentações das partes no processo. Por essa lógica classificatória quanto maior a distinção entre os autores que participam do julgamento (acusação, defesa e julgador), quanto maior a publicidade dos atos processuais e quanto maior a possibilidade da argumentação e de contra argumentação, o processo seria classificado como acusatório. Contrário sensu, quanto mais concentradas as tarefas de julgamento em uma única pessoa, que acusa e julga no mesmo processo, quanto maior o sigilo dos atos processuais e menor a possibilidade da defesa argumentar, temos um processo inquisitorial. Entre as duas possibilidades, haveria o meio termo que considera o processo penal misto ou acusatório formal, em que as fases preliminares do processo que antecedem a fase de julgamento, são sigilosas e não permitiriam o contraditório. Entretanto, o que se extrai das informações das práticas do processo penal nas pesquisas empíricas, demonstra que a inquisitorialidade dessas práticas, aqui colocadas sob descrição, para além da controvérsia doutrinária, constatam o estabelecimento prévio da culpa e a formação de rotinas secretas dentro da própria justiça. Estas características correspondem à realidade das práticas do processo penal brasileiro e são suas marcas claras de inquisitorialidade. Este artigo, especificamente, se concentra na descrição das práticas observadas no campo, a saber, as Varas criminais da capital de estado do Rio de Janeiro, mas que confirmam os achados de outros trabalhos de natureza etnográfica que se orientam pela perspectiva empírica por exemplo, (ABREU, 2019; BAPTISTA, 2013; AUTOR 2, 2013, 2019, 2019a; MENDES, 2010; MOUZINHO et al, 2016; SARMENTO, 2017).

 

3 - DIFERENÇAS ENTRE “SEGREDO DE JUSTIÇA” E SEGREDO PARTICULARIZADO DAS PRÁTICAS CARTORÁRIAS MANTIDOS PELA CONFIANÇA Durante a pesquisa, pode-se observar a relação de confiança dentro dos gabinetes sob duas óticas. A primeira relaciona-se às informações que são ventiladas, não apenas dentro da questão processual, mas também do cotidiano cartorário; e a outra é ligada à produção textual de decisões propriamente ditas, que nem sempre passam pela supervisão dos magistrados, responsáveis pelas ordens judiciais.

Como primeiro ponto sobre a questão da confiança dentro das rotinas que ocorrem nos gabinetes de juízes, ficou notório, pelas tentativas que foram feitas nas várias abordagens aos servidores na busca das entrevistas, o quanto as informações são consideradas secretas. Em todos os casos que tiveram como resultado uma entrevista para a formação do corpus da presente pesquisa, houve a necessidade de um convencimento para que ela ocorresse. Todo comportamento de recusa ou de dúvida sobre o consentimento para se fazer a entrevista era motivado pela questão do “sigilo profissional”, bem como pela relação de confiança que havia entre servidor e juízes. Na grande maioria das vezes, foi necessário o juiz dar permissão para as entrevistas, para que o servidor se dispusesse a falar. As falas mais comuns sobre o pedido eram: “Preciso antes falar com o meu juiz”, “Eu vou falar com o juiz, mas te adianto que ele não costuma permitir entrevistas por causa dos processos. Tem muito processo com segredo de justiça”, ou ainda, “Não posso falar com você sobre o trabalho, a não ser que o juiz permita”. Entretanto, observamos que a questão vai bem além do sigilo profissional que as carreiras da justiça exigem. Não se trata apenas das informações acerca de dados sigilosos sobre os processos, mas de uma verdadeira estrutura de segredo sobre qualquer informação que deve ser passada a quem quer que seja, excetuando-se quando se trata de um integrante do cartório. E esse fator consistia em uma das representações da relação de confiança entre servidor e juiz. A começar pela presença ou não do juiz dentro do cartório, por exemplo. Há casos reportados em que o juiz não permitia aos servidores comentarem sobre sua ausência no cartório. Para isso, havia um padrão de respostas para as pessoas que perguntassem, tais como: “Ele veio, mas acabou de sair”, “Não o vi entrar, mas se for necessário, posso verificar para o senhor”, “Não sei dizer ao certo se ele já saiu. Também não o vi chegar”. As respostas eram sempre vagas e incertas, de forma a não permitir que o interlocutor ficasse sabendo sobre a ausência do juiz. Como que a confirmar esse padrão, nas entrevistas nenhum entrevistado comentou qualquer informação pessoal do juiz, por mais banal que fosse. Um outro tema sobre o qual se desdobrava sistematicamente o segredo era o do modo como o juiz entende uma questão de Direito, cuja informação também não é passada para as partes, embora possa ser verificada dentro do próprio sistema eletrônico processual, quando se pesquisa a jurisprudência das decisões do juiz. Entre muitos outros exemplos, o sigilo particularizado das práticas cartorárias (e não apenas em relação ao processo ou ao sigilo cartorário) se deve também à tradição inquisitorial já reportada por Autor (2019) em sua pesquisa sobre as práticas inquisitoriais da polícia judiciária do estado do Rio de Janeiro. O segredo do registro cartorário da fase administrativa policial, entretanto, pode ser justificado legalmente porque ainda não há acusação formal. No caso do processo penal, contrário sensu, inclusive para as partes interessadas, não há justificativa nem legal, nem doutrinariamente, para o sigilo no caso de processos comuns, nos quais não foi decretado “segredo de justiça”. Entretanto, o sigilo das informações é um dos elementos-chave para a caracterização da forma inquisitorial do processo. Tais características, por muitas vezes, são efetivamente meios de dificultar o acesso às informações, até mesmo aos acusados, sobre dados do processo. Não há nas regras processuais um anteparo para essas medidas, construídas na relação dos personagens inseridos no cotidiano cartorário através da confiança que se estabelece entre os atores dentro do cartório (juízes e serventuários). As entrevistas demonstraram que, como parte de uma espécie de status quo, o segredo se dá também pela construção antecipada e apriorística da imagem da parte acusada como “criminoso”. O acusado entra na relação que irá se construir com os atores do cartório (juízes e serventuários com diversas funções) como a pessoa que cometeu um crime. Reiteradamente é citada na visão dos serventuários entrevistados a imagem construída sobre os acusados: “Só de olhar, você já sabe que é culpado”, “Na maioria dos casos é flagrante, aí é quase certa a condenação”, “O inquérito já vem com todas as provas, claro que são culpados”. Essa construção da imagem do acusado é parte importante do processo em que se inserem as questões inquisitoriais das rotinas cartorárias do Judiciário. O serventuário que pertence à rotina do gabinete do juiz, preferencialmente (e isto faz parte da motivação para que ele seja escolhido para a função), tem um modo específico de lidar com a visão construída do acusado que será processado naquele cartório. Tal visão, que o servidor passa a demonstrar em suas atividades, acaba tornando sedimentada a questão da relação de confiança entre juiz/servidor para que a atividade de construção das decisões produzidas no gabinete do juiz se estabeleça como uma rotina e não seja mais necessária a revisão do trabalho produzido pelos serventuários. Há nas entrevistas a informação de que, quando o grau de confiança do juiz é elevado, possibilite a sua assinatura sem que ele precise revisar as decisões ou sentenças elaboradas pelos serventuários, como uma linha de produção para a elaboração das decisões, conforme verificado nos diálogos dos entrevistados a seguir citados:  A minha juíza sempre dá uma olhada em tudo o que fazemos antes de assinar. Ela gosta de ver tudo e sempre nos dá uma diretriz sobre o que devemos fazer, mas tem juízes que só assinam sem olhar nada. Eu trabalhei com um juiz assim. Era legal porque o trabalho andava rápido, mas também a gente ficava inseguro. Tínhamos que fazer com muito cuidado para não errar (Serventuário X da Justiça Federal, entrevistado). No caso do juiz titular, a gente tem que fazer a decisão e sempre dar uma revisada, porque ele não corrige o que a gente faz. Então precisa ficar tudo certinho (Serventuário Y da Justiça Federal, entrevistado).

 

Ainda em relação aos acusados e à perspectiva que os serventuários e juízes tinham a respeito deles, é importante notar que tais juízos eram feitos entre as pessoas pertencentes ao cartório e, por isso mesmo, não deveriam sair daquele meio. Nesse caso, não se tratava apenas da possível representação que poderia ser realizada contra o cartório ou a possível nulidade que poderia ser pleiteada, mas principalmente em razão de tal informação fazer parte do segredo particularizado do cartório. As vozes dos entrevistados refletem essa questão: não é importante informar sobre o processo de alguém que se sabe culpado. Tal assunto acerca de uma espécie de culpabilidade prévia, será tratado mais adiante, por ser também uma característica marcante na construção das decisões judiciais.

4 - A CATEGORIA CONFIANÇA NA PRODUÇÃO DE DECISÕES DAS VARAS CRIMINAIS Chegamos à mais importante verificação do uso da categoria confiança na presente pesquisa. Trata-se do seu emprego na produção de decisões que está fortemente correlacionada ao fato de como se dá, na estrutura do Judiciário, a divisão das tarefas e, ainda, como se compõe o tecido da estrutura hierárquica entre servidor e juiz nas tarefas da construção das decisões. Em tal ponto, como já foi ventilado no presente trabalho, fica claro que as relações entre juiz e servidor implicam maior responsabilidade desse último na feitura das referidas decisões. A atribuição da tarefa de produzir as decisões sobre o julgado é exclusiva do juiz. A ele cabe decidir as demandas, e tal pressuposto implica uma série de princípios e garantias que são caros ao Direito Processual brasileiro, posto que há na estrutura do processo penal brasileiro regras claras e taxativas para que a isenção do juiz seja assegurada por uma série de deveres e direitos. Entre eles o “princípio do juiz natural”, que vincula a figura de um juiz ou, melhor dizendo, do juízo, ao processo específico. Tal princípio, presente na maioria dos manuais de Direito Processual Penal, tem como ponto essencial as garantias de que o acusado não será julgado por um tribunal de exceção e que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente, garantias estas que estão explicitadas na Constituição Federal de 19885 . Como este princípio, vários outros têm como escopo a afirmação positivada da referida garantia constitucional. Apenas para ilustração, passamos a transcrever a definição deste princípio inserido em um dos muitos manuais de Processo Penal, o do autor Aury Lopes Junior (2006): 

Dentro das garantias orgânicas, nos centraremos, agora, na independência, pois para termos um juiz natural, imparcial e que verdadeiramente desempenhe sua função (de garantidor) no processo penal deve estar acima de quaisquer espécie de pressão à manipulação política. Não que com isso estejamos querendo o impossível – um juiz neutro – senão um juiz independente, alguém que realmente possua condições de formar sua livre convicção. Esta liberdade é em relação a fatores externos, ou seja, não está obrigado a decidir conforme queira a maioria ou tampouco deve ceder a pressões políticas (LOPES JUNIOR, 2006, p. 76-77).

 

Historicamente, este princípio remonta aos ideais liberais do século XVIII, cujo estabelecimento ocorreu em razão do próprio desenvolvimento do Direito no período que sucede a Revolução Francesa e os ideais iluministas. Da mesma maneira que ocorre com outros princípios, caros ao Direito Penal, como a ampla defesa, o contraditório, ou os que se referem à limitação das regras penais de incriminação, o do juiz natural será, nas palavras de Luigi Ferrajoli (2010, p. 37-38), parte da formação do garantismo penal clássico. Pode-se, com certeza, asseverar que as diferenças estabelecidas entre os princípios do Direito Processual Penal no Brasil, como norma, e a ausência de sua efetivação, nas práticas jurídicas, têm fundamento nas tradições inquisitoriais presentes desde a formação histórica do Direito brasileiro, cujas marcas até a presente data são visíveis. Ocorre que o princípio do juiz natural em comento possui uma regulamentação diferenciada por diversas regras, o que significa que, em prima facie, o princípio estaria sendo efetivado por estas regras. Entretanto, como se trata de um princípio, também relacionado ao princípio da presunção da inocência, as entrevistas demonstram que o serventuário é muitas vezes o criador das decisões e, portanto, tal comportamento pode ser considerado uma forma de desvirtuar o princípio do juiz natural, principalmente em razão de que todas as informações sobre a construção textual jurídica dentro das varas criminais cariocas são sigilosas e, portanto, não são transparentes ao escrutínio público. A respeito dessas práticas que se identificaram na pesquisa à categoria da confiança, alguns questionamentos foram marcantes e determinantes na escolha da abordagem sobre o tema. O primeiro questionamento ocorreu em razão de minha função como serventuário da justiça criminal e do modo como são estabelecidas e processadas as demandas nas varas criminais. Na produção de decisões e sentenças penais, no mais das vezes, o servidor possui uma rotina de atribuições e funções que implica necessariamente a participação deste serventuário na elaboração dos textos, quer seja para preparar relatórios da sentença, quer seja na adequação de modelos padronizados de decisões e sentenças, quer seja na maneira como se processam as diligências para acelerar o processamento do feito. De todo modo, tudo isso nos leva à categoria confiança que é o liame que se estabelece nesse ambiente para os serventuários exercerem efetivamente as atribuições acima mencionadas. Nessa ótica, as entrevistas da pesquisa se iniciaram com perguntas sobre como os processos penais chegam à mão do juiz para sentenciar. Como era feito tal preparo; nesse momento, os entrevistados tinham respostas bastante próximas, com a informação de que a avaliação para verificação acerca de o processo estar maduro para sentença era feita por eles mesmos: “Nós verificamos se foram cumpridas as diligências, se haveria algum documento a ser juntado nos autos”. Ou ainda: “Antes de passar o processo para o juiz, a gente verifica se foi juntada a FAC6 do acusado, ou se todas as defesas foram intimadas, e se juntaram as alegações, estas coisas”. Em outro momento, e também em consequência do primeiro, dentro das práticas de processamento judicial, a questão do uso de padrões, quer seja para o recebimento de uma denúncia, quer seja para sentenciar o processo, implica desvincular o juízo do magistrado daquele caso concreto. As sentenças ou as decisões padronizadas, ainda que produzidas originalmente pelo juiz da causa, levam necessariamente à saída do juiz da função de observador do caso concreto para ministrar a ele um julgamento individualizado, para entregar “em confiança” a tarefa ao servidor que efetivamente irá produzir a decisão. Dentro deste prisma a pesquisadora Marilha Gabriela Reverendo Garau demonstra o mecanismo dos “modelões” na formação de decisões, propiciando que não haja uma avaliação caso a caso e sem que sejam ponderados os argumentos da defesa do acusado (GARAU, 2021, p. 86-111).

Nessa situação, como fica demonstrado, as decisões distanciam-se de todos os princípios que a dogmática prega, posto que o que norteará tais decisões, como também é demonstrado na pesquisa da autora citada (GARAU, 2021), será uma presunção de culpa dos acusados. 

5 Artigo 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição da República Federativa do Brasil.

Sob esta perspectiva, todas as indicações sobre qual mecanismo instrumentalizava as rotinas da criação textual das decisões estão esclarecidas pela categoria da confiança em relação a tal rotina de trabalho. A confiança demarca a entrega da tarefa de construir as decisões pelos serventuários, sendo determinada de modo particularizado, individualizado, mas não oficializado, o que significa formalmente não haver dentro do processo registros deste procedimento. Tal circunstância apenas reflete e corrobora a formação da massa crítica que se estabelece com os trabalhos de pesquisas etnográficas que demonstram a prevalência do ethos inquisitorial nas práticas do nosso processo penal. O mecanismo misto de informalidade e particularismo pelo qual são feitas as diversas decisões correspondem à mesma informalidade que se verifica nos cartórios da polícia carioca (AUTOR 2, 2019). Em tais circunstâncias, a informalidade e a falta de normatização dos procedimentos demandam uma particularização e consequentemente arbitrariedades dentro do sistema policial. O mesmo se pode dizer em relação à formação da organização do judiciário, como se verifica no trabalho do autor Wagner Brito (2017), cujas conclusões confirmam este aspecto dessas tarefas exercidas pelos serventuários:

A ausência de transparência acerca das datas em que todas as petições chegam às serventias ou cartórios judiciais e a falta de padronização no processamento das petições e dos documentos tornam impossível a descrição padronizada das práticas dos serventuários (BRITO, 2017, p. 117).

Como já mencionado, não é demais enfatizar que a categoria confiança neste caso é estruturante das rotinas cartorárias, mas dela não há registro nos autos dos processos, como parte da relação de sigilo e confiança, acerca da outorga da tarefa do juiz ao servidor. Em outro aspecto, na criação de decisões, forma-se entre o juiz e o serventuário um vínculo que se inicia com a escolha deste serventuário para o trabalho no gabinete, também baseada na questão da confiança. O secretário do juiz passa então a conhecer como são as escolhas das decisões segundo o “entendimento” do juiz com quem trabalha. A categoria confiança, assim, constitui-se em elemento crítico para a compreensão da relação que se estabelece entre servidores e juiz na construção das decisões judiciais, porque cria uma relação em que o juiz cede uma atribuição exclusiva sua a um servidor, sem que haja formalidade qualquer para o fato, afirmando o particularismo dessa rotina. O liame de tal relação de transferência não oficial de tarefas não está descrito em uma norma, quer seja interna, quer externa, nem consta dos autos do processo, mas vem acompanhado de uma delegação implícita de responsabilidade ao servidor. As escolhas não seguem padrões dentro de uma expectativa de princípios da administração pública; pelo contrário, trata-se de uma categoria com assento na informalidade e na pessoalidade, que não é transparente para os interessados nos processos. Afasta-se, assim, dos procedimentos racionais e impessoais que devem marcar a administração pública, todos presentes nas formulações teóricas sobre a burocracia no sentido weberiano do termo (WEBER, 1982). Neste ponto a pesquisa buscou sempre obter as informações acerca de como eram feitas as decisões e sentenças penais com os entrevistados. De modo geral, havia certa esquiva do entrevistado para falar claramente como são elaboradas as referidas decisões, conforme pode ser observado em alguns comentários que passo a transcrever de uma entrevista com a serventuária X da Justiça Criminal Estadual, já citada: 

 

X: – A gente verifica todas as questões do processo, desde a denúncia, as intimações, para que não haja alegação de nulidade e vai fazendo o relatório. A: – Mas no caso da fundamentação e a parte dispositiva da sentença? X: – Essa parte é sempre feita pelo juiz. Ele é quem se encarrega de fazer isso. Ele é muito trabalhador. A:– Mas não seria muita coisa para o juiz ver sozinho? X: – No caso do juiz titular, ele faz tudo sozinho. Só quando o caso é muito complexo ele pede para a gente fazer o relatório. Agora, já o juiz substituto, ele permite que a gente faça as decisões, o que é muito mais rápido (Serventuário X da Justiça Criminal Estadual, entrevistado).

 

Outro episódio importante para a demonstração da questão da confiança como vínculo entre servidor e juiz se deu em uma conversa entre servidores sobre um processo criminal em que um terceiro servidor, colega do mesmo órgão (Justiça Federal do Estado do Rio de Janeiro), estava sendo processado por ter usado o token do juiz para liberar alvarás de levantamento de quantias grandes. Em um dado momento os entrevistados se reportaram à questão da confiança:

Pois é, o juiz fez errado de deixar o token com o servidor, mas é uma questão de confiança. E o cara é meio burro (servidor acusado), porque sempre a culpa ia cair sobre ele. O Tribunal não vai desconfiar do juiz (Serventuário H da Justiça Federal, entrevistado).

 

 

Em outras situações os servidores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro também usam a expressão para tratar da relação entre servidor e juiz.

 

O trabalho aqui é muito delicado. Tem vezes que os processos exigem da gente muita cautela para se trabalhar em razão das investigações. E aí o juiz restringe esses processos às pessoas que ele tem confiança, porque é muita responsabilidade (Serventuário Y da Justiça Estadual, entrevistado).

 

Há, portanto, no que se refere à categoria confiança, a formação de um sistema de distribuição de tarefas dentro da justiça, que não corresponde às regras ou ao norteamento que se pretenda dar explicitamente à administração do Judiciário. Não há, nas rotinas do Judiciário examinadas, o regramento dessa questão através de portarias ou outros atos administrativos que sejam motivados pela impessoalidade administrativa ou pela eficiência. As rotinas cartorárias de produção de decisões e sentenças, no Estado do Rio de Janeiro, seguem o modelo implícito baseado na informalidade e nos particularismos, que denotam um claro direcionamento da nossa também sistêmica inquisitorialidade, fundada no segredo cartorário e na falta de transparência para terceiros dos procedimentos adotados. Tal forma de distribuição de tarefas da produção de decisões também se caracteriza como uma forma de resguardar o superior hierárquico (diga-se magistrados) da eventual responsabilização por possíveis erros, bem característicos de sistemas hierárquicos fechados. Dessa feita, em todo erro cometido na produção das decisões a responsabilidade recai internamente no servidor, que de modo efetivo produz os textos das decisões judiciais. Se ocorrer alguma fiscalização externa ou as corregedorias (com atribuição para fiscalizar a atividade judicial) entenderem ser o caso de haver apuração dos fatos, será também de forma institucional e particularizada a resposta para que uma possível sanção não recaia sobre o magistrado. Há nesse contexto duas expressões sinônimas que são utilizadas sobre a forma como também se delegam “não oficialmente” as tarefas de decisão, mas que resultam na delegação “oficial” explícita da culpabilidade atribuída pelos erros cometidos aos serventuários (quer sejam meramente gramaticais, quer sejam acerca do uso de uma fundamentação da doutrina jurídica empregada de forma errada, ou ainda um erro essencial relativo ao julgamento, o que será mais grave), quais sejam: “levar o juiz ao erro” ou “induzir o juiz ao erro” (AUTOR 2, 2013).

Em um caso relatado durante a pesquisa, o serventuário foi chamado para conversar com o magistrado em razão de erro numa decisão que o juiz assinou e acabou sendo veiculada na mídia. Por esse motivo, havia a expectativa de que a corregedoria fosse acionada para que o juiz prestasse contas do que ocorrera. Neste ponto, o depoimento do servidor demonstrou como a culpa passaria a ser imputada a ele, embora a decisão tenha sido assinada por um juiz:

Quando fui chamado para falar com o juiz, sabia que ele ia me dar uma bronca. Na conversa ele começou tranquilo dizendo que as decisões e despachos que ele assinava, quando eram feitos por nós, fazia sempre em confiança, na expectativa de que era tudo revisado e que a gente fazia o trabalho porque conhecia o processamento. Ele continuou dizendo que aquele caso podia dar problema. Era possível que o acusado entrasse na Corregedoria com uma representação e que, se isso acontecesse, nós íamos tentar segurar o problema, mas que não havia certeza de que iria dar certo. Falei com ele que não havia problema, que se fosse o caso, eu iria assumir o erro, porque tinha sido eu quem tinha feito a decisão (Serventuário W da Justiça Federal, grifo nosso).

 

O episódio, de prima facie, demonstra que as rotinas, tão costumeiramente usuais dentro das serventias da justiça, mesmo sendo de conhecimento dos operadores de direito (advogados, defensores, promotores, etc.), é naturalizada como normal e produz uma camuflagem sobre o que ocorre dentro dos cartórios, corroborando o caráter do segredo particularizado das rotinas cartorárias. E mais, por se tratar de responsabilização de atos públicos que se insere num sistema altamente hierarquizado, a culpabilização do servidor que produz a decisão, mas não assina, reforça a tradição das sociedades hierarquizadas, nas quais as sanções não têm uma ação pedagógica de normalização da sociedade como um todo, mas apenas querem enfatizar e preservar as relações de poder, diferenciando-se de antemão quem deve ser punido e quem deve ficar impune, num processo de permanentes suspeição e consequente possibilidade de culpabilização sistemáticas dos estratos inferiores da hierarquia, precarizando de forma institucional sua situação funcional (AUTOR 2, 2013). Não se quer dizer que tal vínculo se dá em razão da quebra de um princípio, como já foi tratado anteriormente sobre a questão do juiz natural, e que este fato seria o principal ponto a ser verificado; pelo contrário, a questão mais importante a ser observada consiste nas consequências dessa categoria para as rotinas de produção de decisões e sentenças e o quanto tais fatores implicam na reafirmação de um establishment das características inquisitórias nas práticas do Processo Penal brasileiro. Essas práticas têm sido identificadas e descritas de forma a criar verdadeira massa crítica de conhecimento acadêmico, como a já mencionada sobre as práticas da Polícia Judiciária Carioca (AUTOR 2, 2019), além de outras etnografias acerca das audiências de custódia como no caso dos pesquisadores Thais Sarmento (2017) e João Victor Abreu (2019). Em ambos os casos, as audiências de custódia deveriam ter como objetivo a diminuição da população carcerária pela avaliação incipiente de cada caso de flagrante, evitando a demora para que o caso chegasse ao juiz. Entretanto, nas duas pesquisas a relação implícita de culpabilidade imposta aos presos comprovam a posição de inquisitorialidade da justiça, com a permanência de grande número de pessoas que continuam encarceradas, após as audiências de custódia, em nome de uma suposta garantia da “ordem pública”. Especificamente, na análise da categoria confiança, dois outros pesquisadores se depararam com a esta categoria em suas pesquisas e complementam a delimitação do termo com resultados que reafirmam a presente pesquisa e a comprovação do caráter inquisitorial relacionado à categoria. O pesquisador Gilson Gil (2021) apresenta a categoria confiança dentro das instituições políticas do poder executivo no Estado do Amazonas. Nesse contexto, haverá a descrição na pesquisa de como as nomeações são pautadas pela categoria confiança e como o critério relativo à categoria está intimamente ligado ao particularismo e às relações pessoais, sem o uso, portanto, de critérios objetivos e universalizantes. Em outro trabalho, da pesquisadora Luiza Barçante (2015), a pesquisa se dá no contexto do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, onde também se observa e os servidores definirem a mesma categoria confiança como liame de relação entre promotores e servidores, com resultados semelhantes, que corroboram a nossa pesquisa. Tal como nas varas da justiça criminal pesquisadas, o servidor da promotoria do Estado do Rio de Janeiro exerce a atribuição de formar pareceres para o Ministério Público Estadual, rotina que deveria ser privada do próprio promotor, e a relação entre promotor e servidor também se caracteriza pelo particularismo das rotinas do órgão, como reporta a autora: 

Uma vez empossados nos cargos, a noção de confiança passa a assumir o sentido de lealdade na fala dos assessores ao informarem que suas funções e atuação dentro da procuradoria de justiça dependem exclusivamente de regras de trabalho estabelecidas pelos procuradores que os nomearam: “— Foi ele que me nomeou não foi? E eu vou dizer não para ele? Está sempre tudo certo. Ele quer que eu leve os pareceres na casa dele para ele corrigir porque não está se sentindo bem. Vou sorrindo.” (BARÇANTE, 2015, p. 44-45).

Todos esses exemplos, bem como de outros acerca da inquisitorialidade das práticas do processo penal, como no caso da formação das decisões através do princípio do livre convencimento motivado (MENDES, 2010), ou ainda, na seara civil, acerca da questão da imparcialidade do juiz (BAPTISTA, 2013), incorporam a massa crítica de pesquisas empíricas que apresentam comprovação científica da inquisitorialidade das práticas de processo penal no Brasil. Assim, a formação de decisões produzidas pelos serventuários da justiça, como um todo, se baseia principalmente em uma formação de juízo sobre como o juiz a ele vinculado trata tal questão e se naturaliza dentro da inquisitorialidade arraigada nas práticas do processo penal brasileiro, as quais acabem por se eximir do exame de como se deu o contexto fático do processo para, então, avaliar a resposta da justiça à ação penal.

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considera-se, portanto, que a categoria que se estabelece dentro do judiciário como confiança tem como primeira característica a estruturação de funções e rotinas designadas pelo judiciário identificadas no âmbito da pesquisa (já que a pretensão do presente trabalho se atém aos limites já indicados na metodologia). Tal demarcação de tarefas e funções entre servidores e juízes não são estabelecidas formalmente por normas, mas de forma particularizada, o que sempre parece se distanciar do conceito weberiano de burocracia e que se move acentuando a sistemática culpabilização – e não a eventual responsabilização do servidor (AUTOR 2, 2013). Isso vem acentuar o poder que as camadas superiores dessa burocracia exercem sobre as camadas inferiores, pois essas delegações não são oficiais, ocorrendo fora de regras transparentes e explícitas para todos e colocando os servidores à mercê dos seus superiores. Ensejadora, portanto, de referências que estão fora dos limites que são impostos por regras universalizantes e impessoais de aplicação uniforme a todos os membros da administração. Esse contexto é produtor de uma reciprocidade hierárquica, em que o juiz “favorece” o servidor com sua confiança, mas deixa-o exposto ao seu arbítrio na ocorrência de erros, intencionais ou não. Assim, tal relação de confiança estabelece uma dicotomia segurança e risco que garante maior segurança ao juiz e risco maior ao serventuário. Como nos exemplos citados, no caso de ocorrer o erro, a categoria confiança é trazida para dirimir a questão e o serventuário que está dentro da relação hierárquica inferior é culpabilizado. Tal situação é característica e está ausente nos contextos públicos de sociedades que se pretendem explicitamente igualitárias, que constroem relações recíprocas de supervisão e responsabilidades mútuas e limitadas. Há, como nas próprias práticas do processo penal, que é a finalidade destas relações de trabalho, uma previsão implícita, mas bastante clara para todos os envolvidos de resposta de punição dos inferiores para se reafirmar a ordem da hierarquia. Forma e conteúdo dentro dos cartórios criminais pesquisados demonstram ter sua organização funcional estruturada por essas relações inquisitoriais, de segredo e suspeição, não apenas no que toca à resposta do juízo para os processos, mas internamente articulada nas suas relações funcionais. 

 

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