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Sexta, 04 Fevereiro 2022 18:21

Moro “através do espelho” (do STF): o HC 164.493/PR e a suspeição do ex-Juiz

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Disponibilizamos no nosso site o artigo "Moro “através do espelho” (do STF): o HC 164.493/PR e a suspeição do ex-Juiz" , escrito por Bárbara Gomes Lupetti Baptista, pesquisadora vinculada ao INCT/INEAC . O artigo foi publicado originalmente nessa quinta-feira 3/2/22 no blog Ciência e Matemática do jornal O Globo: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/moro-atraves-do-espelho-do-stf-o-hc-164493pr-e-suspeicao-do-ex-juiz.html

 

Moro “através do espelho” (do STF): o HC 164.493/PR e a suspeição do ex-Juiz

 

Bárbara Gomes Lupetti Baptista

O título deste artigo faz alusão ao famoso livro “Alice através do espelho” (1871), continuação do clássico “Alice no País das Maravilhas” (1865), ambos de autoria de Lewis Carroll.

Movida pela curiosidade e pelo espírito aventureiro, Alice atravessa o espelho situado na sala de sua casa; e se depara com um mundo diferente e paradoxal, onde tudo parecia “funcionar ao contrário”. Ocorre que, embora aparentemente disfuncionais, todas as coisas tinham um sentido, do outro lado do espelho de Alice.

Aqui também, em nossa República Federativa, as engrenagens institucionais frequentemente parecem disfuncionais, até que, olhando atenta e curiosamente, entendemos as funcionalidades das supostas disfunções das nossas estruturas de Poder.

É neste cenário metafórico, e irônico, que apresento e proponho problematizarmos o Habeas Corpus 164.493/PR, que reconheceu a suspeição do ex-Juiz Sergio Moro, que, além de ex-Juiz, também é ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública do Governo Bolsonaro (e o uso do verbo no presente do indicativo é proposital, para que o fato não fique esquecido em um passado remoto), porque, afinal, ele também é atual candidato à Presidência da República.

Apenas para relembrar, o Habeas Corpus 164.493/PR foi impetrado em favor do ex-Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, tendo como autoridade coatora o ex-Juiz Federal Sérgio Moro, com o objetivo de que o magistrado fosse declarado suspeito (de parcialidade) na condução e no julgamento da ação penal nº 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, processo que ficou popularmente conhecido como o caso do “triplex do Guarujá”, pretendendo-se, através do reconhecimento de sua suspeição, a consequente anulação de todos os atos do processo.

A defesa do ex-Presidente Lula questionou a imparcialidade do ex-Juiz Sergio Moro, basicamente, em função de 7 fatos que configurariam o “interesse pessoal” do Juiz na condenação do ex-Presidente, ultrapassando, o magistrado, os limites de julgador, e atuando como se fosse investigador. Em resumo, os 7 fatos: (1) a realização de uma espetaculosa condução coercitiva do ex-Presidente, sem que fosse oportunizada, previamente, sua intimação pessoal para comparecimento em juízo, como exige o art. 260 do Código de Processo Penal; (2) a flagrante violação do direito constitucional à ampla defesa do ex-Presidente Lula, uma vez que o ex-Juiz realizou a quebra de sigilos telefônicos do paciente e de seus familiares e até mesmo de seus advogados, com o intuito de monitorar e antecipar as estratégias defensivas; (3) a divulgação/vazamento de conversas obtidas em interceptações telefônicas do paciente com familiares e terceiros. Afinal, em decisão de 31/03/2016, o Ministro Teori Zavascki, nos autos da Reclamação 23.457, reconheceu que a decisão do ex-Juiz que ordenou os vazamentos violou a competência do STF, ante o envolvimento de autoridades detentoras de foro por prerrogativa de função, e ainda se revelou ilícita por envolver a divulgação de trechos de diálogos captados após a determinação judicial de interrupção das interceptações telefônicas. O STF literalmente decidiu que o “vazamento das interceptações, além de reconhecidamente ilegal, foi manipuladamente seletivo”; (4) a atuação interessada e pró-ativa de Moro para que não fosse dado cumprimento à ordem do magistrado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Desembargador Rogério Favreto, que concedera ordem de Habeas Corpus para determinar a liberdade do ex-Presidente Lula (no HC 5025614-40.2018.4.04.0000), de modo a possibilitar-lhe a participação no “processo democrático das eleições nacionais, seja nos atos internos partidários, seja na ações de pré-campanha”. Na ocasião, mesmo sem jurisdição sobre o caso e em período de férias, o ex-Juiz Sergio Moro atuou intensamente para evitar o cumprimento da ordem, a ponto de telefonar ao então Diretor-Geral da Polícia Federal, Dr. Maurício Valeixo, e sustentar o descumprimento da liminar, agindo como se membro do Ministério Público fosse, com o objetivo de manter a prisão de um réu, o ex-Presidente, em um caso no qual já havia se manifestado como julgador; (5) a própria sentença da ação penal do Caso Triplex, objeto da anulação, tendo em vista que, ao proferir a sentença condenatória, o ex-Juiz Sergio Moro se antecipara estrategicamente de eventual e futura acusação de parcialidade, fazendo constar que a defesa do ex-Presidente teria sido abusiva, ofensiva e agressiva, para, ao final, literalmente dizer que “em relação a essas medidas processuais questionáveis e ao comportamento processual inadequado da defesa, vale a regra prevista no art. 256 do CPP (‘a suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida, quando a parte injuriar o juiz ou de propósito der motivo para criá-la”), antecipando-se e já se defendendo, previamente, de eventual incidente de suspeição que, de fato, acabou sendo feito e ensejando o próprio HC 164.493; (6) a violação do dever de independência da autoridade judiciária consistente na decisão tomada pelo magistrado, em 01/10/2018, de ordenar o levantamento do sigilo e a juntada de parte dos depoimentos prestados por Antônio Palocci Filho em acordo de colaboração premiada para os autos da Ação Penal 5063130-17.2016.4.04.7000 (Instituto Lula), quando, na verdade, a fase de instrução processual já havia sido encerrada, não podendo, tal acordo, fundamentar a prolação da sentença. A Segunda Turma do STF, no julgamento de outro HC, o de nº 163.493, reconheceu a ilegalidade tanto do levantamento do sigilo quanto do translado de trechos do depoimento prestado por delator para os autos da ação penal do Triplex; (7) por fim, a ausência de imparcialidade do magistrado teria sido confirmada mediante a aceitação do cargo de Ministro da Justiça após a eleição do atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, que há muito despontava como principal adversário político do paciente, ex-Presidente Lula. Sergio Moro decidiu fazer parte do Governo que se elegeu em oposição ao partido cujo maior representante é Lula (impossibilitado de se candidatar justamente por causa da referida condenação). Logo, o ex-Juiz foi diretamente beneficiado pela condenação e pela prisão que ele mesmo determinou.

O HC foi acolhido: primeiro, em 23/03/2021, pela 2ª Turma do STF, e, depois, confirmado, em 23/06/2021, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, que declarou a suspeição do ex-Juiz.

No espelho do STF, a imagem do ex-Juiz, atual candidato à Presidência, confrontou o Princípio da Imparcialidade Judicial, considerado, no próprio HC, como a “pedra de toque do direito processual penal”.

É verdade que o espelho do STF não refletiu o posicionamento da unanimidade dos Ministros da Corte, mas de sua maioria, pois a decisão da 2ª Turma foi proferida por maioria de 3 x 2 e a do Pleno, de 7 x 4.

De todo modo, a contundência da decisão explicitou a reação do Supremo a uma postura considerada ilegítima e tratada como antiestrutural, pressupondo que a regra da estrutura do sistema de justiça é a Imparcialidade.

Para seguir na linha de Alice, o ex-Juiz Sergio Moro teria agido de forma disfuncional (fazendo tudo “ao contrário” do que determina o mundo do direito). E, por isso mesmo, ao explicitar de forma tão evidente a sua parcialidade, acabou por colocar em xeque a crença no sistema de justiça e, por causa disso, precisou ser “exemplarmente” (ainda que por maioria), julgado e condenado à pecha de juiz parcial.

O Ministro Marco Aurélio disse em seu voto: “Reconheço ser a suspeição a pecha pior, relativamente a um Juízo, a um juiz, porque cola a prática de ato merecedor de glosa, já que se pressupõe não a parcialidade, mas a imparcialidade”.

Tudo isso é revelador de que existe uma crença no dogma da Imparcialidade Judicial, que coloca esse princípio, recepcionado como dever fundamental dos magistrados, em um lugar sacralizado, inabalável, incólume.

Daí a comoção causada no episódio da Vaza Jato, e mesmo da Lava Jato, e no julgamento do HC 164.493 (que não se pretende minimizar, de forma alguma, eis que de fato revelou a intimidade e a cumplicidade da relação entre ministério público e magistratura, repercutindo na prisão, às vésperas da eleição, do ex-Presidente Lula, e produzindo impactos inéditos e inquestionavelmente antidemocráticos e deletérios às instituições da República).

Mas, o que eu gostaria de provocar e problematizar é que a intensidade da perplexidade com o fato ocorrido tem relação direta com a proporção da crença no dogma. Ou seja, explicitar - ou tratar - como absurda, incomum, inédita ou extraordinária a conduta do ex-Juiz que conduziu o processo da operação Lava Jato é, de um lado, desconsiderar a realidade processual brasileira, e, de outro, manter viva a fé em um princípio que nem sempre encontra correspondência na realidade do direito brasileiro.

A parcialidade do ex-Juiz Sergio Moro, explicitada na forma como interpretou os fatos, as provas, as leis processuais, para fazer “a sua justiça”, não é antiestrutural. Pesquisas etnográficas realizadas no âmbito do nosso Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT- InEAC www.ineac.uff.br) revelam que muitos juízes cuidam de processos, avaliam provas, decidem casos, interpretam fatos, dão sentido às leis, a partir de seus sensos particulares de justiça.

Nessa linha, a postura do ex-Juiz Sergio Moro, comprometida por suas convicções pessoais e sensos particularizados de justiça (e, de novo, não pretendo com isso absolvê-lo de seu comprometimento pessoal com o caso e dos impactos nefastos causados nas eleições de 2018, tanto que chamo a atenção para o fato de que, no presente do indicativo, Sua Excelência é candidato ao mais alto cargo de Poder de nossa República e a forma como exerceu a magistratura, sem dúvida, constitui a sua identidade), mas apenas problematizar o tratamento concedido a este caso, publicizado como extraordinário, inédito, disfuncional.

As sentenças proferidas pelo ex-Juiz não são as primeiras e nem serão as últimas a serem prolatadas por juízes comprometidos em seus julgamentos por moralidades e boas intenções que interferem na jurisdição prestada, porque permeadas por possibilidades interpretativas incontroláveis acerca dos fatos e dos significados das Leis.

Nesse sentido, é possível dizer que o sistema de justiça estruturalmente reproduz práticas rotineiras de “parcialidade”, no sentido do uso do processo para fazer justiça no caso concreto, segundo critérios particulares do que seja “fazer justiça”.

Assim, o comportamento do ex-Juiz Sergio Moro na condução dos processos da operação Lava Jato não se apresenta como extraordinário ou incomum, mas sim como revelador de uma lógica e de uma cultura jurídica que centraliza no Juiz um imenso de poder de fazer as escolhas sobre fatos, evidências, verdades, leis, interpretações e sensos particularizados de justiça, no ritmo do seu “livre convencimento motivado”. O ex-Juiz Sergio Moro e a operação Lava Jato são, portanto, a mais pura explicitação do sistema de justiça brasileiro. Assim como o é, a postura do STF, de, por maioria de votos, sem consenso, mais de dois anos após os fatos, condená-lo à pecha de “parcial”, que também explicita a lógica deste sistema. Afinal, na ocasião dos fatos, em 2018, o comportamento do ex-Juiz, embora questionado, não foi ecoado no Judiciário. Isto só ocorreu anos depois, em 2021.

Voltando ao mundo de Alice, portanto, com olhos curiosos e a cabeça cheia de perguntas e estranhamentos, o objetivo da problematização proposta foi elucidar que, também aqui, por vezes, as coisas parecem funcionar “ao contrário”. Mas, tudo tem um sentido, um propósito.

O ex-Juiz, também ex-Ministro, é hoje candidato à Presidência. E aquele Judiciário, que em 2018 consentiu, agora, em 2021, interditou.

A nós, cidadãos brasileiros, resta, assim como a Alice, olhar através do espelho e não ceder às imagens prontamente refletidas diante de nós. Tudo pode estar no sentido previsto, embora aparentemente “ao contrário”: os culpados, os inocentes e os supostos heróis.

Bárbara Gomes Lupetti Baptista é Pesquisadora do INCT-InEAC

 

 

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