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O Site do INCT/INEAC reproduz aqui o artigo PANDEMIA “Farinha pouca, meu pirão primeiro”: a corrida por privilégios no cenário da pandemia da Covid-19, publicado no Blog Ciência e Matemática do jornal O Globo, nessa segunda-feira 4 de outubro de 2021 e escrito pelos pesquisadores do INCT/INEAC: Bárbara Gomes Lupetti Baptista, Fernanda Duarte, Michel Lobo Toledo Lima, Rafael Mario Iorio Filho e Roberto Kant de Lima.
Confira abaixo o artigo ou acesse o link https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/farinha-pouca-meu-pirao-primeiro-corrida-por-privilegios-no-cenario-da-pandemia-da-covid-19.html
PANDEMIA “Farinha pouca, meu pirão primeiro”: a corrida por privilégios no cenário da pandemia da Covid-19
Ao longo da pandemia da Covid-19, houve um discurso, classificado como senso comum, que compôs inúmeros escritos e notícias jornalísticas no começo da sua disseminação, no sentido de que a doença causada pelo referido vírus seria “democrática”, uma vez que este não distinguia as vítimas quanto à cor, ao status ou à classe social, à escolaridade, à localidade, entre outras características. Porém, há pelo menos duas questões que pesquisadores de diversas áreas têm apontado, no sentido do tensionamento dessa afirmação. A primeira é que, embora o vírus não seja seletivo em relação a quem atingirá, suas formas de transmissão e de prevenção, assim como o risco de adoecimento e de morte, são potencializadas em certos grupos sociais e em certas localidades. A segunda se dá ao observar e analisar como as nossas instituições ditas republicanas têm registrado, percebido e administrado esses casos como se estivéssemos em pleno regime aristocrático.
Partindo dessa segunda questão, nos preocupamos aqui em discutir como as instituições judiciárias no Brasil internalizam e (re)produzem desigualdades. Tal fato, de um lado, particulariza a sua interpretação das regras jurídicas segundo interesses próprios, e, de outro, vincula e reduz a noção de público a uma perspectiva puramente estatal que, travestida de um discurso que a define como sendo a soma de interesses individuais, na verdade reflete interesses particulares de corporações do Estado.
Na sociedade brasileira, apesar dos preceitos constitucionais republicanos, não existe ainda, na prática, uma estrutura jurídica ordinária que assegure um mínimo de direitos comuns e compartilhados por todos os diferentes cidadãos. O que há é um conjunto de privilégios que são atribuídos a certos segmentos da sociedade, que são chamados de “direitos”. Daí o título do artigo.
A pandemia da Covid-19 evidenciou a reiterada naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus variados níveis. Portanto, não é incomum vermos notícias jornalísticas frequentes acerca de casos e de decisões judiciais – seja de juízes de primeira instância, seja dos tribunais – que recorrentemente são seletivas tanto na concessão de privilégios, confundidos com direitos diferenciados e especiais, quanto na distribuição desigual de deveres e penalidades; e que são aparentemente tidas como extraordinárias ou como exceções por essas próprias instituições.
Para exemplificar esse debate, trouxemos alguns casos que ilustram que, apesar da pretendida universalidade das medidas sanitárias provocadas pela pandemia, restritivas de circulação de pessoas e de funcionamento das instituições privadas e públicas - inclusive as judiciárias, foco das nossas reflexões –, estas atingem desigualmente diferentes pessoas e instituições.
Destacamos a seguir alguns eventos que consideramos paradigmáticos na explicitação dessa desigualdade e os sistematizamos em três tipos de casos que envolvem o Judiciário no atual contexto: casos de auxílio-saúde, casos de “fura-fila” da vacinação contra a Covid-19 e casos de tratamento desigual.
A primeira categoria de casos decorre da Resolução nº 04 de 2021, em que o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e a Defensoria Estadual do Estado do Rio Grande do Sul instituíram um auxílio financeiro de saúde suplementar para custear despesas com planos médicos de servidores, incluindo os aposentados. O valor máximo para esse auxílio será de 10% dos salários, que, no caso dos magistrados, chega a R$ 3.500,00, por exemplo. De forma semelhante, o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará implementou a Política de Atenção Integral à Saúde de Magistrados e Servidores do Poder Judiciário. Benefícios análogos também ocorreram em outros estados brasileiros, incluindo “bônus-covid” de até R$ 1 mil para promotores e procuradores do Mato Grosso, licença-prêmio a juízes do Pará, aumento salarial de servidores públicos e home office até janeiro para funcionários do Supremo Tribunal Federal.
A segunda categoria de casos, que intitulamos de “fura-fila” da vacinação contra a Covid-19, é igualmente exemplar para discutir o que DaMatta e Junqueira chamam de “mentalidade do preferencial”. O “fura-fila” é o cidadão que não respeita a ordem de uma fila de espera e passa à frente dos demais, se apropriando de um lugar privilegiado, e excepcionando a regra da isonomia.
Na pandemia de Covid-19 não foram raros os casos de “fura-fila” para vacinação. Porém, aqui, destacamos os pedidos feitos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), através de ofícios institucionais encaminhados aos institutos Fiocruz e Butantan, buscando prioridade para assegurar a vacinação de ministros e servidores. Após a publicização dos pedidos na mídia e a negativa formal da reserva de doses, o Presidente do STJ se manifestou no sentido de que a intenção de compra de vacinas vem sendo manifestada por diversos órgãos públicos que realizam campanhas de imunização entre seus funcionários; e que se trataria, portanto, de um “protocolo comercial”, visando adiantar um pedido para quando houver disponibilidade. Já no âmbito do STF, a polêmica gerou a exoneração do médico que exercia a função de Secretário de Serviços Integrados de Saúde do STF.
A terceira categoria de casos articula tratamento desigual na apreciação de pedidos de liberdade de réus presos em razão da pandemia da Covid-19. Esta pandemia, especialmente em razão de seus altos índices de contágio, potencializou o risco sanitário para aquelas pessoas em estado de privação de liberdade, já que os presídios no Brasil, assim como em muitas outras partes, não têm condições de assegurar as medidas recomendáveis e necessárias para evitar a transmissão e contaminação pelo vírus. Tanto é que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão incumbido pela Constituição brasileira de zelar e promover o controle e a transparência administrativa e processual no Poder Judiciário brasileiro, com base nas posições públicas assumidas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) expediu, em março de 2020, a Recomendação nº 62, destinada aos juízes e tribunais no sentido da “adoção de medidas preventivas à propagação da infecção pelo novo Coronavírus no âmbito dos sistemas de justiça penal e socioeducativo”, inclusive no sentido de reavaliar as prisões provisórias nesse contexto.
A partir desta recomendação, numerosos pedidos de liberdade provisória ou de comutação de regime de cumprimento de pena foram formulados perante os juízos competentes, no intuito de assegurar ao preso interessado sua saúde e liberdade. Estes por algumas vezes foram concedidos e por muitas outras, não, sem que da leitura das peças processuais se possa ao certo identificar os elementos objetivos que levaram à decisão de soltura e que deveriam ser aplicados em situações análogas se a igualdade de tratamento para casos semelhantes fosse um vetor interpretativo por si só.
Um caso bastante rumoroso e que recebeu muita atenção da mídia, foi o de “Fabrício Queiroz e sua mulher”, no qual o STJ, por decisão da Presidência, em 2020, deferiu a prisão domiciliar para ambos, com base em razões humanitárias. Ele, por se encontrar doente, em tratamento contra um câncer, e ela, a despeito de estar foragida, para que pudesse cuidar de seu marido, mostrando-se o tribunal sensibilizado com as condições dos presídios brasileiros.
Inclusive este caso foi recebido pela advocacia como uma sinalização de que o STJ, daí para adiante, adotaria essa postura tida como humanitária, sendo o mesmo ainda invocado como precedente no tema. Porém não foi assim que se passou, e segundo levantamento feito pelo portal G1, junto ao próprio STJ, dos 725 pedidos similares aos do caso Queiroz, o Presidente do STJ concedeu apenas 18 (2,5%) prisões domiciliares.
Com esses casos relatados, independentemente dos questionamentos que podem ser feitos em razão da figura do réu, o fato é que, a despeito de serem portadoras de doenças que as colocaria como parte do grupo de risco da Covid-19, nem todas as pessoas envolvidas receberam o mesmo benefício penal por conta das razões humanitárias apontadas pelo CNJ. Situações análogas com desfechos desiguais.
Como se pode ver, dualidades há muito superadas em outras sociedades ocidentais, tais como desigualdade/diferença; direito/privilégio, ainda persistem no Brasil. A pandemia é exemplar nesse sentido, pois explicita como não fomos socializados no exercício da cidadania plena, no sentido de que não fomos socializados a exigir (e a obedecer) o cumprimento universal (para todos) e aplicação uniforme (da mesma maneira) das regras, que são sempre aplicadas particularizadamente.
Somando-se a essa cultura social as marcas de nossa cultura jurídica, resulta uma estrutura de poder a serviço da desigualdade jurídica e, consequentemente, do tratamento não uniforme aplicado aos casos concretos e às vidas dos cidadãos de nossa república. Esta, cada vez mais se fragiliza, especialmente através da atuação característica de um dos seus Poderes, que sistematicamente atua reforçando e naturalizando a desigualdade de tratamento jurídico dos seus cidadãos.
Bárbara Gomes Lupetti Baptista, Fernanda Duarte, Michel Lobo Toledo Lima, Rafael Mario Iorio Filho e Roberto Kant de Lima são, respectivamente, pesquisadores e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC - www.ineac.uff.br).
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