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Segunda, 30 Agosto 2021 20:11

Ciência em Contexto de Pandemia: Sistema de Conhecimentos ou Sistema de Crenças?

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Reproduzimos aqui o artigo " Ciência em Contexto de Pandemia: Sistema de Conhecimentos ou Sistema de Crenças?", escrito pelo antropólogo Edilson Márcio Almeida da Silva, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC) e publicado no Blog Ciência e Matemática do O GLOBO : https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/ciencia-em-contexto-de-pandemia-sistema-de-conhecimentos-ou-sistema-de-crencas.html

 

CIÊNCIA E PANDEMIA

Ciência em Contexto de Pandemia: Sistema de Conhecimentos ou Sistema de Crenças?

Edilson Márcio Almeida da Silva

 

Há cerca de um mês, os antropólogos José Colaço e Roberto Kant de Lima publicaram, neste espaço, uma interessante reflexão acerca de como, durante a pandemia de Covid-19, a “classe média esclarecida” brasileira tem reagido aos ataques de autoridades e personalidades públicas ao discurso científico. Conforme apontado no artigo, uma parcela dos órgãos de comunicação nacionais vem veiculando ad nauseam entrevistas com os mais diversos pesquisadores das ciências naturais e/ou profissionais da área de saúde (médicos sanitaristas, epidemiologistas, virologistas, pneumologistas, microbiologistas, infectologistas, toxicologistas, etc.), num esforço de mobilização coletiva em “defesa da ciência” e de afirmação do pensamento científico como “grande salvador da humanidade” a que os autores argutamente chamaram “iluminismo tardio”. 

  

Analisando, com o devido distanciamento, os excessos cometidos por detratores e paladinos do discurso científico, Colaço e Kant de Lima lembram que, a exemplo de outras tantas formas de pensamento humano, também a ciência se assenta numa complexa combinação entre experimentação, especulação e crença. Foi justamente o caráter controvertido deste último componente – a crença no/do conhecimento científico – que serviu de provocação inicial à elaboração das linhas que se segue.

 

Nesse sentido, um primeiro e importante esclarecimento a ser feito refere-se ao fato de que o termo crença comporta múltiplos e variados sentidos. Como aponta o etnólogo Jean Pouillon, uma crença tanto pode ser dirigida a alguém ou algo, envolvendo a aceitação de um fato em nível cognitivo, como se referir a uma convicção profundamente interiorizada, o que, no caso, faz com que o “acreditar”, “colocar confiança” ou “ter fé” esteja mais relacionado à emoção do que à cognição. Em termos esquemáticos, seria possível associar a primeira definição aos fatos científicos ao passo que a segunda diria respeito aos fenômenos mágico-religiosos, cujas crenças conferem aos ritos uma eficácia sui generis, denominada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss de “eficácia simbólica”. 

 

Coube a Marcel Mauss e Henri Hubert publicar, em 1902, um dos mais influentes trabalhos dedicados a descrever e explicar a “natureza da crença na magia”. Em seu “Esboço de uma teoria geral da magia”, os sociólogos contrastam a crença mágica e a científica, classificando-as, respectivamente, como a priori a posteriori. De acordo com tal classificação, depreende-se que, ao contrário do que se passa com a crença científica – que tem por fundamento um conhecimento positivo e experimental –, a fé na magia precede e, portanto, prescinde da experiência. Tamanha é a sua autoridade que, em principio, nem mesmo evidências contrárias são capazes de abalar a crença dos fiéis. Subtraída a todo controle, mesmo os fatos desfavoráveis à magia se voltam a seu favor, “pois sempre se pensa que são efeito de uma contra-magia, de faltas rituais e, em geral, de que as condições necessárias das práticas não foram realizadas".

 

Ao caracterizarem a estrutura da magia, Mauss e Hubert a decompõem em três elementos básicos: o mágico (que é responsável por efetuar os atos mágicos), as representações mágicas (ou “as ideias e as crenças que correspondem aos atos mágicos”) e os ritos mágicos (atos em relação aos quais são definidos os demais elementos da magia). Segundo os autores, esses elementos são inseparáveis uns dos outros, posto que a crença não incide sobre uma ou outra parte do todo, mas “sobre o conjunto ou sobre o principio da magia" que, assim como a religião, constitui “um bloco” em relação ao qual só há duas posturas possíveis: ou nele se crê ou não se crê. Nesse caso, portanto, a crença não é passível de compartimentalização. Ela incide igualmente sobre todos os elementos do conjunto, fazendo com que os mesmos mantenham entre si uma relação de absoluta interdependência. Dai a caracterização da magia como um sistema de crenças.

 

Por razões de ordem diversa, o mesmo raciocínio não se aplica à ciência, haja vista que esta, diferentemente da magia, não dispõe de um conjunto sistematizado de crenças.  Ilustração prosaica do que ora se afirma reside no caso hipotético, mas altamente verossímil, do sujeito que se declara cético em relação ao conhecimento científico e à eficácia dos seus produtos, mas não hesita em tomar uma Aspirina ao primeiro sinal de dor de cabeça. 

 

Em tempos de pandemia, infelizmente, o ceticismo quanto à ciência e seus produtos tem propiciado a adoção de posturas nas quais esse tipo de contradição é o que, ao fim e ao cabo, menos importa. Conforme vem sendo amplamente noticiado, há vários segmentos da população brasileira contestando com veemência os números de casos e mortes por Covid-19 registrados pelas autoridades sanitárias. Do mesmo modo, eles questionam a eficácia das ações de combate à doença, como medidas de isolamento social, uso de máscaras de proteção respiratória, higienização constante das mãos e, não menos importante, a imunização vacinal. Muitos alegam que, nesse caso em particular, a normatização implementada em inúmeras localidades do País contraria o princípio da liberdade individual, razão pela qual adotam posturas que vão do descumprimento parcial ao total desprezo pelas orientações sanitárias e, consequentemente, pelo trabalho que as autoridades públicas procuram realizar.

 

Um aspecto digno de nota a esse respeito é que o aludido ceticismo nem sempre se apresenta de forma monolítica. Se, por um lado, há o já conhecido “negacionismo” puro e simples, com o qual parece não haver qualquer possibilidade de diálogo (afinal, o que se pode argumentar com alguém que, refratário à política de imunização vigente, afirma: "Jesus é a minha vacina"?), por outro, há também um “negacionismo relativo”, que tem como base uma espécie de seletividade moral. Nesse caso, o valor da ciência pode até vir a ser reconhecido desde que ela seja praticada por homens/mulheres “de bem” e que não estejam contaminados por interesses político-ideológicos. Não raro, os pesquisadores assim classificados se utilizam de seus títulos, posições acadêmicas e/ou pertencimentos institucionais para defender pautas nas quais justapõem princípios racionais e doutrinários de produção de verdades, numa bricolagem típica do assim chamado pensamento neoconservador. É por meio desse tipo de expediente que, por exemplo, um pesquisador da área das ciências naturais pode desenvolver estudos de reconhecido mérito científico entre os pares e, concomitantemente, se alinhar na defesa de perspectivas como o design inteligente, vertente do criacionismo anunciada como a “maior novidade científica” sobre a origem da vida humana.

 

Há pouco mais de cem anos, o sociólogo Max Weber vaticinou que a marca distintiva das sociedades ocidentais contemporâneas seria uma inexorável racionalização em todas as esferas da vida social, fenômeno a que deu o nome de “desencantamento do mundo moderno”. Hoje, em meio a manifestações extemporâneas como o “iluminismo tardio” e a projetos de dessecularização da ciência, não há como deixar de recordar a inusitada observação feita, há mais de dez anos, pela querida e saudosa antropóloga Simoni Guedes. Impactada pelo crescente espaço que vinha sendo ocupado por publicações de auto-ajuda nas livrarias, bem como pelo uso oracular que os discentes passaram a fazer da internet na confecção dos seus trabalhos escolares, ela dizia que, caso estivesse vivo, muito provavelmente Weber seria obrigado a rever ou no mínimo complementar a sua tese, posto que, nos últimos tempos, estariam em curso não só um “desencantamento” mas, também, um “reencantamento do mundo moderno”, cujas consequências já não pareciam ser, àquela altura, as mais auspiciosas. Até porque, como diria Mauss, "em última instância, é sempre a sociedade que se paga, ela própria, com a moeda falsa do seu sonho".

 

Edilson Márcio Almeida da Silva, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC)

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