José Colaço e Roberto Kant de Lima
O discurso científico foi uma das primeiras coisas atacadas por autoridades políticas nacionais e importantes personalidades públicas brasileiras, desde o início da pandemia e pelas mais variadas razões. Esta atitude, como sabemos, foi designada como “negacionismo”, uma vez que ela mobiliza a negação, a não aceitação ou a rejeição de evidências basilares que até mesmo a ciência não precisa de muito esforço para tentar explicar. Como, por exemplo, que temos um novo e desconhecido vírus que se transmite pelo ar circulando por aí e precisamos nos mobilizar, de alguma forma, para conter isso.
Nas etnografias que realizamos sobre conhecimentos naturalísticos, ou seja, sobre os conhecimentos que grupos sociais que estabelecem uma relação direta, biográfica e umbilical com o meio ambiente natural possuem sobre diversos os aspectos que o compõem, ficou evidente que estes conhecimentos quase nunca adquirem status de conhecimento com “C” maiúsculo para pesquisadores e/ou agentes de políticas públicas das áreas de oceanografia, biologia marinha, geologia, agronomia, etc., o que implica obstaculizar seu reconhecimento oficial, por parte do Estado, ou mesmo sua incorporação na implementação de políticas de conservação ambiental, planos de manejo de áreas protegidas etc.
Por isso mesmo, se por um lado, tornou-se incômodo o ataque e a defesa incondicional da ciência na atual conjuntura, por outro incomodou também a forma como a classe média esclarecida começou a se relacionar com ciência neste contexto. Com um discurso abertamente crítico ao atual Governo Federal, sobretudo no que diz respeito à condução da maior crise sanitária que já vivemos, parte considerável da grande mídia nacional iniciou uma campanha sem precedentes, a favor da ciência e tudo aquilo que dela pode ser derivado, como a vacina, os materiais de proteção, os protocolos sanitários, as pesquisas, os especialistas, as tabelas, os números, as estatísticas e por aí vai. A verdade é que não há um só dia que esta mesma mídia não exiba a fala de um especialista, ou seja, de um cientista, ou de um médico, sobre o modo através do qual a pandemia tem sido mal conduzida no Brasil. Nos expomos às elaborações de vários especialistas, como se todos eles tivessem um conhecimento uniforme sobre o vírus, o que misturou em sua maioria médicos – que têm a perspectiva do tratamento da “doença” – com aqueles que procuram estudar e conhecer o vírus – especialmente os virologistas e aqueles que têm suas especialidades na lida com as epidemias e a saúde pública. Todas essas perspectivas diferenciadas de abordagens de uma mesma pandemia produziu uma cacofonia de opiniões, aparentemente discordantes, se não se distingue de onde elas partem.
A voraz defesa da ciência, ou do pensamento científico, parece encenar uma espécie de “iluminismo tardio”, anacrônico e superficial, em plena segunda década do século XXI. Uma cruzada da racionalidade contra as trevas e o obscurantismo que, nesta edição contemporânea, ganhou o nome, acertadamente, de negacionismo. Essa narrativa do “iluminismo tardio” peca, no entanto, em não conseguir se comunicar com um considerável estrato da população que nunca acreditou ou vem sendo secular e sistematicamente excluída, por vários motivos, inclusive educacionais, sobre a eficácia das práticas científicas. Tal narrativa soa, por vezes, arrogante, e parece reificar a ciência como, ao fim e ao cabo, a única forma de razoável “estar no mundo” castigado pela pandemia.
Tornamo-nos pesquisadores em antropologia num período em que a disciplina já tinha “ido para o divã”, em diversas ocasiões, para rever seu passado etnocentrista, racista, colonial, machista, racionalista, hiper ocidentalizado etc. Isso não significa que ela não seja isso, ou parte disso, ainda hoje. O que queremos destacar aqui, no entanto, é que há uma atitude fundamental para o exercício, não apenas da antropologia, mas da prática científica em geral. Estamos nos referindo ao ceticismo. Na antropologia ficou charmoso, pelo menos no Brasil, chamar ceticismo de “estranhamento”. Sem isso não há ciência, pois sem ceticismo não há experimentação nem especulação.
Experimentação e especulação são características apenas do chamado “pensamento científico”? A ciência antropológica nos chamou a atenção de que todas as formas de pensamento humano partem de um mesmo princípio que combina, entre outras operações, a experimentação das coisas que habitam o mundo, sejam elas seres invisíveis aos olhos humanos, tais como micro organismos ou espíritos, e especulação sobre causas ou efeitos de fenômenos das mais diversas naturezas. Basta que lembremos de um desses textos, a “Ciência do Concreto”, capítulo do livro “O Pensamento Selvagem” de Claude Lévi-Strauss.
Há outro componente que deveríamos destacar brevemente aqui, que escapa a isso que estamos chamando de reificação da ciência ou iluminismo tardio: a crença. A identificação com a ciência está muito mais relacionada ao ajustamento a um projeto de sociedade, com componentes morais, valorativos e práticos do que a sua real capacidade de resolver nossos problemas enquanto sociedade. “Acreditamos” na ciência e na tecnologia menos por seus resultados e mais, porque, naquilo que os sociólogos chamam (ou chamavam) de modernidade, parte considerável da sociedade sucumbiu aos chamados Sistemas Peritos, como tentou definir, já há alguns anos, Anthony Giddens. Sempre que penso em nossa relação com a ciência e com a técnica, me lembro do exemplo do avião: não precisamos conhecer como um avião funciona, não precisamos entender de engenharia aeronáutica, não precisamos saber pilotar um avião, não precisamos saber em detalhes as condições atmosféricas durante um voo para sabermos que o avião é o meio de transporte mais seguro que a humanidade já produziu e, ao mesmo tempo, não aceitar esta condição e ter “medo de avião” é considerado, geralmente, algo infantil ou irracional.
Se a noção de Sistemas Peritos aqui grosseiramente resumida é controversa na teoria social de hoje, de todo modo podemos admitir que a ciência, além de uma expressão do pensamento, de um conjunto metódico e bem arranjado de procedimentos e de uma linguagem é, também, uma crença, e por isso recorremos a esta noção num momento em que observamos construções de narrativas midiáticas e o uso exagerado e irresponsável das redes sociais (com vinculações de informações parciais, superficiais ou mesmo, claro, as agora conhecidas Fake News).
Assim, a reificação, ou sacralização da ciência nos soa estranha quando o pensamento científico parece surgir como o “grande salvador da humanidade”. Claro que em relação ao combate ao vírus e à pandemia, bem como para outras tantas situações, pensamos que a humanidade não criou opções muito melhores. Nos preocupa, no entanto, a brecha que, por conta da crise humanitária que atravessamos, pode ser aberta para intensificar algo que já existe e para o qual a ciência foi muitas vezes utilizada sem parcimônia: sua capacidade de produzir hierarquias entre as áreas do conhecimento, mesmo entre aquelas consideradas científicas, como os contrastes que desigualam em status as “ciências do espírito” e as “ciências da natureza”, ou definindo o que é útil ou não para ser pesquisado.
Mas a hierarquização dos conhecimentos não reside apenas dentro da ciência. Na verdade, o que mais tem chamado atenção é a produção de hierarquias na relação entre a ciência e outras formas de pensamento consideradas “não científicas”, “não acadêmicas” ou “não formais”. Nos referimos, portanto, ao que acontece “fora” dos muros dos laboratórios ou institutos de pesquisa que, como a antropologia sobretudo tem tentado mostrar, apenas atualiza uma hierarquia que é de ordem moral e social se pensarmos, por exemplo, quem são os detentores do conhecimento científico e quem são os detentores dos conhecimentos naturalísticos ou tradicionais. No caso de sociedades desiguais como a brasileira, infelizmente, como temos acompanhado em nossas pesquisas e etnografias sobre as políticas de reconhecimento de povos ou comunidades tradicionais, ou seja, grupos indígenas, quilombolas, extrativistas, pescadores artesanais, por exemplo – detentores dos tais conhecimentos “não científicos” – a tendência tem sido além do aprofundamento das desigualdades não só no que diz respeito ao status dos conhecimentos naturalísticos que elas detêm, mas também à sua exclusão ao acesso a direitos sociais básicos, além de outras violências e silenciamentos.
O que nós, cientistas ou não, não podemos fazer, é atualizar a falsa ideia, tanto positivista como iluminista, de que há algo como uma “evolução do pensamento humano”, de uma fase mais simples e tosca, para uma fase mais elaborada e sofisticada, de modo que as outras formas de pensamento serão dirimidas, assimiladas ou simplesmente, desaparecerão, como chegou-se a afirmar em séculos passados do suposto duelo entre Ciência e Religião.
A despeito destas elaborações, estranhamentos e críticas não temos dúvida que devemos defender a ciência contra qualquer tipo de ataque que tente difamá-la, caluniá-la ou desacreditá-la em prol de um projeto de “produção de mundo” que tem como base a aniquilação da diferença, das controvérsias e da vida. Não devemos esquecer que praticar ciência também é um ato político do qual, nós cientistas, não podemos nos esquivar. A ciência não é neutra nunca e nem é objetiva sempre. Nós cientistas, não devemos ter medo de reconhecer estas características tão marcantes em nosso ofício. Cada vez que conseguimos reconhecer isso, estaremos dando passos importantes, como a antropologia tem tentado realizar, para o reconhecimento da pluralidade do pensamento humano expresso na diversidade de modos de vida ou de se “estar no mundo”.
José Colaço e Roberto Kant de Lima são, respectivamente, pesquisador e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC - www.ineac.uff.br)