Eliane Cantarino O’Dwyer
Os ventos de mudança soprados de fora das comunidades tradicionais amazônicas, nas duas últimas décadas, têm gerado um neoextrativismo hegemônico promovido por interesses capitalistas associados às políticas públicas desenvolvimentistas implementadas pelo Estado brasileiro. As grandes obras de infraestrutura, com a abertura de rodovias, construção de hidrelétricas, hidrovias e portos vêm acompanhadas de uma expansão sem precedentes dos agronegócios sobre as terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e demais categorias de povos tradicionais. Os desmatamentos para o cultivo de grandes extensões de grãos, sobretudo soja, têm transformado de modo crescente biomas florestais, utilizados como áreas de extrativismo tradicional - caça, pesca, coleta e agricultura familiar - em uma paisagem homogênea e monocromática ao suprimir a biodiversidade caraterística e impedir a reprodução de modos próprios de fazer, criar e viver.
Tais mudanças, no contexto regional do Baixo Amazonas, têm convergido para o município de Santarém, Pará, mediante intensos conflitos territoriais e ambientais. A disputa entre interesses econômicos empresariais dos agronegócios, representados pelo Sindicato Rural de Santarém (SIRSAN) e alinhados politicamente à “bancada ruralista” (Frente Parlamentar da Agropecuária – FPA) no Congresso Nacional, através de membros do legislativo e do executivo local, têm confrontado movimentos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, trabalhadores rurais e organizações não governamentais, por meio de acusações públicas, ocorrências policiais e contestações judiciais.
Os impactos ambientais e sociais desse modelo neocolonial de monocultivo exportador são minimizados por uma perspectiva desenvolvimentista prevalente aos círculos de poder, segundo a qual o sofrimento infringido ao outro só tem sido considerado condenável quando gratuito, mas justificável quando está relacionado a um objetivo – desenvolvimentista neste caso - que se crê fonte de salvação da economia, da política e do Estado Nação.
A frente de expansão dos agronegócios voltada para a produção em larga escala de soja segue o traçado da BR 163 Cuiabá-Santarém, atraindo empreendimentos do centro-oeste motivados pelo estoque de terras disponíveis a preços reduzidos e do baixo custo de transporte fluvial pelo porto da Cargill, instalado em 2003. As obras de infraestrutura da BR 163 avançaram ainda mais com a pavimentação do trecho Moraes Almeida e Novo Progresso (PA), realizada pelo 8º Batalhão de Engenheira e Construção do Exército (8º BEC), concluído em novembro de 2019, e considerado a última etapa para integrar os estados de Mato Grosso e Pará.
Apenas três meses antes da conclusão desse asfaltamento, fazendeiros, madeireiros e empresários de Novo Progresso foram acusados de promover o chamado “Dia do Fogo”, em 10 de agosto, de acordo com investigações das polícias Civil, Federal e do Ministério Público. A mídia nacional e internacional relata a deflagração de queimadas em larga escala na região amazônica. Nessa ocasião, a Procuradora Geral da República considerou o fato de “haver indícios de uma ação orquestrada para incendiar pontos da floresta”
A expansão da soja no planalto santareno acompanha igualmente o traçado da rodovia PA-370 (Santarém-Curuá-Una), paralela à BR 163 e ao Lago do Maicá, este último considerado estratégico pelo plano diretor do município de Santarém. O aumento dos conflitos de terra nessa área do planalto tem sido protagonizados por comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas, como nos casos dos Munduruku do Planalto Santareno e das comunidades quilombolas do Ituqui diante das ameaças aos seus territórios de ocupação tradicional.
As pesquisas etnográficas recentemente realizadas junto às comunidades de quilombo nesse contexto regional (2017-2020) têm se deparado com uma “arena pública” em confronto entre as razões de Estado (desenvolvimentistas), associadas aos interesses de empreendimentos dos agronegócios e unilateralmente impostas sem o consentimento de povos e comunidades tradicionais afetados pelos impactos ambientais. As manifestações contrárias têm sido registradas mediante Protocolos de Consulta utilizados como estratégia de resistência, organizadas pelas associações indígenas, quilombolas, Colônia de Pescadores Z-20, Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém, Pará (STTR), além de audiências públicas com a participação da sociedade civil sobre a questão da ameaça à existência tradicional dessas comunidades representada pelo projeto de construção do complexo portuário no Maicá para escoamento da soja.
Os impactos ambientais e os desmatamentos provocados pelo avanço dos monocultivos sobre biomas florestais produzem alterações não apenas de efeitos paisagísticos, pois tais paisagens são culturalmente produzidas por povos tradicionais na ocupação dessas áreas florestais e representam igualmente bens irredutivelmente sociais. Assim, o risco de entropia atinge os recursos florestais e aquíferos renováveis, mas também a existência social de povos tradicionais pela ameaça da perda de conhecimentos ou tradições culturais.
As recentes afirmações de que a soja brasileira não tem relação com os desmatamentos, como divulgado nos meios de comunicação, revela desconhecimento das realidades localizadas e a intenção de filtrar informações comprovadas por dados de satélite e evidências etnográficas.
O negacionismo quanto aos desmatamentos está amparado na desregulação da legislação ambiental, como estabelecida na reunião ministerial de 22/04/2020, na qual o ministro do Meio Ambiente, ao citar inclusive as obras na BR 163, propõe “ir passando a boiada, ir mudando todo o regramento, ir simplificando normas”.
No contexto regional do Baixo Amazonas, as incertezas e dúvidas sobre a isenção do Estado no espaço ocupado entre a lei e sua aplicação, convergem para áreas de atuação de empreendimentos capitalistas relacionados principalmente à exploração dos agronegócios, extração madeireira em terras protegidas, criação de gado em áreas de desmatamento ilegal e empreendimentos de mineração. Tais interesses econômicos têm intensificado sua atuação no nível político local mediante financiamento de campanhas eleitorais para prefeituras e câmaras municipais, consolidando assim as bases para um novo tipo de “coronelismo, enxada e voto”.
A política desenvolvimentista aliada à desregulação ambiental, atualmente defendida pelo Estado brasileiro, é orientada pelas denominadas razões de Estado e, deste modo, não pode ser vista como moralmente neutra, ao assumir como próprias às razões de empresários e políticos influentes sem levar em conta normas estabelecidas democraticamente e valores culturais legalmente reconhecidos.
Eliane Cantarino O’Dwyer (InEAC-INCT/UFF/UFPA/Conselho Científico – ABA)