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Disponibilizamos aqui o artigo "AFINAL, DE QUE VALEM TÍTULOS UNIVERSITÁRIOS FORA DO MERCADO ACADÊMICO ?", escrito pelos pesquisadores, vinculados ao INCT/INEAC, Pedro Heitor Barros Geraldo, Rafael Mario Iorio Filho e Roberto Kant de Lima . O texto foi publicado no Blog Ciência e Matemática do O Globo, nessa segunda feira 7/12 , no endereço https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/afinal-de-que-valem-titulos-universitarios-fora-do-mercado-academico.html
Confira abaixo o artigo.
Afinal, de que valem títulos universitários fora do mercado acadêmico?
Pedro Heitor Barros Geraldo, Rafael Mario Iorio Filho e Roberto Kant de Lima Não faz muito tempo tivemos um novo episódio de divulgação pela mídia de títulos acadêmicos fake impregnando o currículo de políticos e juristas em busca de fama e prestígio que lhes qualificasse em disputas por cargos no Executivo e no Judiciário.Como todos certamente se lembram, isso tem se repetido há algum tempo, tendo sido um doutorado em Economia da Unicamp atribuído à Presidente Dilma um dos primeiros episódios desta leva de fake-títulos. No entanto, os episódios na atual administração federal apresentam maior complexidade. Ao mesmo tempo que a ciência na universidade pública brasileira é desafiada pela pandemia, ela é surpreendentemente não só negada pública explícita e sistematicamente por autoridades políticas, mas também objeto de cortes drásticos de recursos.Esquecem-se de que sem ela não haveria profissionais especializados de nível superior, hoje indispensáveis à qualidade da vida nas mais diferentes áreas pública e privada, que vão da saúde, à segurança, à justiça, à educação, à construção civil, para apenas mencionar algumas delas. Então, por que ao mesmo tempo em que se nega a relevância das instituições que formam esses profissionais, seus graus acadêmicos se tornam objeto de desejo e mesmo de vantagem para a promoção de trajetórias profissionais? Ora, o Currículo Lattes é uma plataforma de pesquisadores brasileiros, aonde se registram os títulos e os produtos de suas atividades. A partir de sua criação na segunda metade do século passado, constituem um instrumento de avaliação dos seus usuários, assim como um cartão de visitas internacional dos pesquisadores que nele inscrevem seus currículos. Este esforço institucional induzido por muitas políticas de avaliação da pesquisa brasileira foi reconhecido internacionalmente numa publicação na revista Nature como um exemplo de “boa prática”, criando uma comunidade virtual de pesquisadores e políticas de incentivo ao seu uso. A normalização das formas de apresentação das realizações acadêmicas permite racionalizar o trabalho dos pesquisadores e estabelecer indicadores de mérito acadêmico comparáveis reconhecidos pelas diferentes comunidades científicas. Todas as incontáveis avaliações no meio acadêmico – concursos, progressões funcionais, convites para consultorias, cargos de magistério, gestão acadêmica, etc., servem-se desse instrumento para localizar e para ranquear os profissionais de mesma área, ou mesmo de áreas distintas. Também registram suas conquistas acadêmicas, os prêmios, graus e títulos obtidos em sua trajetória, tendo sempre que estar articulados a financiamentos e premiações públicas e transparentes. Enfim, o CVLattes, como é chamado, tornou-se um elemento constitutivo da academia e dos profissionais da pesquisa no Brasil. O CV Lattes também é o resultado de uma maior especialização da atividade de pesquisa distinguindo-a da atividade docente. Esta distinção da pesquisa e da docência foi induzida pelas políticas articuladas de fomento à ciência, tecnologia e inovação associada às políticas de expansão da educação universitária desde a metade do século passado, mas especialmente entre 2002 e 2016. O sociólogo Max Weber descreveu este processo de distinção destas funções há pouco mais de cem anos no contexto da universidade alemã. Esta especialização do trabalho universitário depende de muito esforço individual e coletivo para produzir conhecimento orientado por métodos de pesquisa.Esta permite ainda distinguir o que é o ensino da ciência das opiniões particulares dos professores que, de fato, são indesejáveis e sem nenhum apoio nas comunidades científicas. Mas também permite distinguir o reconhecimento do mérito científico dos usos sociais do diploma, numa sociedade hierárquica e desigualada juridicamente como é a nossa. Este aspecto pode ajudar a explicar o uso social inapropriado e irresponsável de títulos acadêmicos por alguns profissionais que, ao invés de distinguir o valor da ciência enquanto um trabalho específico, percebem apenas seu valor para as hierarquias de seu meio profissional, sem nenhuma afinidade de significado com o do meio profissional da ciência. Afinal, há áreas profissionais que, embora estejam vinculadas às pós-graduações – responsáveis por conferir os graus superiores aos pesquisadores, especialmente àqueles que pretendem lecionar em instituições universitárias de ensino superior – não julgam os méritos de seus integrantes apenas por suas posições acadêmicas, mas também por outros critérios e hierarquizações próprias de mercados profissionais. Notem que os fake-títulos acadêmicos, coincidentemente, são todos em áreas de ciências sociais aplicadas, que tendem muito frequentemente a se basear, no Brasil, nas hierarquias dos mercados profissionais e nas posições de poder que seus membros ocupam, às quais emprestam pressupostos de valor e erudição às opiniões de quem a seu juízo tem poder– são os chamados argumentos de autoridade. Nestas áreas os critérios para se ranquear os saberes decorrem das posições de poder estranhas à produção da ciência. Assim, em muito diferem das afirmações científicas, fundadas sempre em consensos provisórios sobre fatos, necessariamente reconhecidos e legitimados por seus pares porque fundadas na autoridade dos argumentos científicos produzidos pelo uso adequado do método científico. Essa atividade expressa o valor da especialização do trabalho de pesquisador profissional em seus desafios de produzir conhecimento na explicação/interpretação dos dados da realidade e de ser profissionalmente reconhecido por viver disto. Em outras palavras, a ciência opera na chave interpretativa do mérito científico, enquanto profissionais de outros campos se apropriam dos títulos, mas emprestando outro valor ao título, exclusivamente pela honra e pela posição hierárquica que os distinguem na sociedade brasileira. Não nos esqueçamos das tradições culturais portuguesas, que, diferentemente da América espanhola, não permitiam a criação de universidades em suas Colônias. Títulos de bachareis, portanto, eram bens raros na Colônia e mesmo no Império do Brasil, disponíveis apenas àqueles que dispusessem de significativos recursos para obtê-los. Assim, nossa educação, em qualquer nível, sempre foi associada a um sinal de excepcionalidade, de exclusão e não de inclusão como é na sociedade liberal. Assim, este uso social do diploma universitário por autoridades públicas contribui para um contínuo desprezo pelas formas de organização profissional da ciência no Brasil. Não é à toa que os diplomas são muito apreciados nas candidaturas às cúpulas dos poderes constituídos, mas são muito pouco e mal valorizados no âmbito dos concursos públicos que dão acesso aos cargos públicos, muito pouco sensíveis ao trabalho e experiência acumulada dos candidatos, ou seja, à valorização do seu mérito acadêmico-institucional. Por fim, se retomamos ao questionamento que intitula este artigo: “afinal, de que valem títulos universitários fora do mercado acadêmico?” Achamos que a resposta seria valem muito, pois tornam-se mais um sinal diacrítico de pura distinção bacharelesca, de mera honraria em uma sociedade de medalhões, juridicamente desigual. Basta ver o costume que se tem de chamar profissionais das tradicionais carreiras – direito, medicina, engenharia – de doutores, tradição algumas vezes contestada na justiça por profissionais irritados porque seus serviçais não lhes deram esse tratamento. Mais ainda, nessa avidez pela raridade de fora do mercado profissional, essas áreas também criaram no Brasil um título hierarquicamente acima do doutorado, aquele de pós-doutor, para aqueles doutores que fazem um estágio após seu doutoramento. Na área da ciência faz-se vários pós-doutorados, mas ninguém se intitula pósdoutor. Aparentemente, a ostentação social de um doutorado responde a uma necessidade infinita de se desigualar de seus pares profissionais com instrumentos raros, já que se todos os colegas podem ser chamados de “doutores” e de “Excelências”, só seu suposto possuidor ostenta um diploma de doutor – ou de pós-doutor - no seu currículo Lattes...
Pedro Heitor Barros Geraldo, Rafael Mario Iorio Filho e Roberto Kant de Lima, respectivamente pesquisadores e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (www.ineac.uff.br)
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