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Terça, 01 Outubro 2019 13:21

O que a reintegração de posse revela sobre o judiciário

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O site do INCT/INEAC reproduz aqui o artigo publicado, nessa segunda-feira, 30 de setembro de 2019, no Blog Ciência e Matemática do O GLOBO e escrito pelo  antropólogo Ronaldo Lobão, Pesquisador InEAC/UFF. https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/o-que-reintegracao-de-posse-revela-sobre-o-judiciario.html?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar&fbclid=IwAR3P6ovITEhapBbd4Gr_zZGC-pirZkjmmkvyIBKsE8Rt_nzKGi8t9MZpARI

 

O que a reintegração de posse revela sobre o judiciário

Em geral, uma ação de reintegração de posse coloca frente a frente um grupo que exerce uma posse e um outro que possui um título de propriedade sobre o mesmo espaço. Cabe ao judiciário apreciar os argumentos de ambas partes para definir se a posse é mansa e pacífica e os posseiros devem permanecer no local ocupado ou se o proprietário deve ter uma posse pretérita reestabelecida.

 

Entretanto, desde sempre, como descreveu Auguste Saint Hilaire em seu diário da segunda viagem ao Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo em 1822,

os pobres que não podem ter títulos, estabelecem-se nos terrenos que sabem não ter dono. Capinam matos virgens, plantam, constroem pequenas casas, criam galinhas e quando menos esperam aparecem-lhe sum homem rico, com o título que recebeu na véspera, expulsa-os e aproveita o fruto de seu trabalho.

Essas situações chegavam ao judiciário no século XIX, como descreveu Márcia Menendes Motta. Como padrão, nesses processos judiciais, o discurso das testemunhas dos coronéis sobrepujava a trajetória longeva e pristina da ocupação, uso e permanência dos posseiros.

Poder-se-ia pensar que, no século XXI, a valoração das provas teria se alterado em nosso sistema judicial. Mas não é isso que vimos em um processo judicial envolvendo duas famílias de pescadores artesanais da beira da praia e uma loja maçônica na região oceânica de Niterói. Saíram os coronéis, mas entrou em cena uma loja maçônica, que em seu nome homenageia a esposa falecida de um ex-presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Na decisão de primeira instância, ratificada pelo TJ, uma parte “livre” do Quintal dos Pescadores de Itaipu foi excluída da posse dos pescadores – que ocupam este lugar há mais de cem anos. O fundamento foi o testemunho de um empregado de uma empresa de engenharia, proprietária do lote desde 1990, que alegou ter “avistado” uma obra no lote 12 e teria dito ao pescador para interromper a mesma. Esse lote havia sido comprado pela empresa em conjunto com outros seis lotes. Ela finalizou a construção nestes seis lotes em 1994, mas nunca utilizou a área ocupada pelos pescadores. E no final de 2014 doou o lote 12, com cláusula que transferia uma posse não usufruída ao donatário, a uma loja maçônica para construção de sua sede.

A loja maçônica, em outubro de 2015, na qualidade de proprietária e detentora de uma pretensa posse, interrompeu as conversas com os pescadores e ajuizou ação de reintegração de posse com pedido de demolição das casas centenárias ocupadas pelas famílias dos pescadores.

O que os pescadores apresentaram em sua defesa? Diferente dos posseiros do século XIX, os pescadores de Itaipu, suas artes, sua praia e demais espaços de produção são sujeito e objeto de pesquisas antropológicas há quase cinquenta anos. Pesquisadores da Universidade Federal Fluminense são parceiros dos pescadores e testemunhas da ocupação deste lugar desde a década de 1970.

Chamados a participar da defesa no processo judicial, reunimos, coletamos e produzimos material farto que comprova a ocupação longeva, mansa e pacífica das casas dos pescadores e do lote. Aliás, registramos essa ocupação muito antes do lote sequer existir, posto que o Loteamento Cidade Balneária de Itaipu foi desenhado na década de 1940 e as casas e as famílias dos pescadores já estavam lá. Mapas elaborados pelo IPHAN indicam a presença das casas antes mesmo da abertura da matrícula do lote no Registro Geral de Imóveis. Fotos aéreas da década de 1970, antes da abertura do canal de Itaipu registram as casas e um outro desenho de arruamento. Em conjunto com os pescadores elaboramos uma genealogia das famílias dos pescadores, hoje com mais de mil nomes, que retrata a ocupação do Canto de Itaipu ao longo do século XX. Desenvolvemos o conceito de “genealogia das casas” para mostrar a estratégia de permanência dos pescadores em seu lugar através transmissão patrimonial, desmembramentos e remembramentos de espaços de uso comum e particular. Isso porque não se trata de espaços “escriturados”, mas vividos. Indicamos ao judiciário que estes pescadores compõem a Reserva Extrativista Marinha de Itaipu, conquistada por eles em 2013, em uma luta de quase vinte anos, com a UFF como parceira. Neste lugar, estes pescadores foram reconhecidos como população tradicional, por força da legislação federal, e assim colocaram-se ao abrigo da Constituição em seus artigos 215 e 216, que protegem a cultura e os grupos formadores da sociedade nacional.

O Canto Sul da Praia de Itaipu foi tombado pelo INEPAC na década de 1980 com o objetivo de “garantir a posse da terra a quem de direito [... e] não permitir a devastação de nossas praias, costões, pontais e ilhas pela especulação imobiliária e turismo predatório”. Foi ressaltado no processo o tombamento da pescaria tradicional de Itaipu como patrimônio cultural imaterial da Cidade de Niterói em 2012.

Em 2017, lei estadual declarou como patrimônio cultural, histórico e imaterial do Estado do Rio de Janeiro, e considerou como de especial interesse social as comunidades quilombolas, caipiras, caboclas, de pescadores, vedando sua remoção ou remanejamento de seu local de origem.

No Plano Diretor da Cidade de Niterói, aprovado em 2018, o Quintal dos Pescadores de Itaipu foi integrado à Zona Especial de Interesse Social de Itaipu, política urbana que visa abrigar moradias de baixa renda.

Todo esse material, cinquenta anos de pesquisas, quatro gerações de pesquisadores, inúmeras políticas públicas, leis municipais e estaduais, nada foi suficiente para ter mais valor que o relato de alguém que “avistou”, em data incerta, uma obra e a interrompeu. De fato, o verbo é adequado, pois quem avistou estava do lado de fora do Quintal dos Pescadores, pois não exercia de fato a posse. A empresa de engenharia não poderia ter transferido uma posse que nunca deteve sobre o lote 12, onde nunca construiu por mais de vinte anos exatamente por estar na posse das famílias dos pescadores, como o Quintal dos Pescadores.

Mas... não se trata de testemunho, argumentos, pesquisas. Não se trata de valorar provas para definir direitos. O resultado da ação já estava determinado mesmo antes de seu início. Não por se dar valor a uma escritura de propriedade e a uma cláusula de transferência de posse. Não por colocar de um lado duas famílias de pescadores artesanais tradicionais e de outro uma loja maçônica. Esses elementos poderiam ser necessários, mas não suficientes.

O que torna esta disputa uma luta perdida desde o início em nosso judiciário é a certeza de que mesmo diante de muitos avanços normativos e institucionais, as descrições de Auguste Saint Hilaire e Márcia Menendes Motta, produzidas acerca de nosso judiciário do século XIX, mantém-se tristemente atuais, em especial, quando tratamos da permanência e acesso à terra por aqueles que sempre foram pilhados em seus direitos.

 

 

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