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O site do INCT-INEAC reproduz aqui o artigo INTOLERÂNCIA RELIGIOSA OU GENOCÍDIO DO POVO PRETO, escrito pelas antropólogas Ana Paula Miranda (Professora de Antropologia UFF/ Pesquisadora INEAC), Roberta de Mello Corrêa (Pesquisadora INEAC/Bolsista CAPES), Rosiane Rodrigues de Almeida (Pesquisadora INEAC/Bolsista CAPES) e publicado no Blog Ciência e Matemática: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/intolerancia-religiosa-ou-genocidio-do-povo-preto.html
Intolerância religiosa ou genocídio do povo preto?
Em 1989 foi protocolado o primeiro dossiê de ataques a terreiros na sede Ministério Público Federal, em Brasília, intitulado “A guerra santa fabricada”, pelo Instituto de Pesquisa e Estudos da Língua e Cultura Yorubá (IPELCY), hoje extinto. O documento consistia num conjunto de reportagens publicadas que informavam invasões, incêndios e depredações aos terreiros da região metropolitana do Rio de Janeiro, perpetrados por neopentecostais.
No final da década dos 2000 surgiu no Rio de Janeiro a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), criada por afrorreligiosos, que se uniram para reagir aos fatos noticiados pelo jornal Extra, que denunciava que traficantes do morro do Dendê, na Ilha do Governador, estariam proibindo adeptos de realizarem seus cultos e circularem pela favela com colares rituais (fios de conta) e estenderem roupas brancas em varais.
Acompanhamos todo o processo de criação da CCIR (Comissão de Combate à Intolerância Religiosa) e o esforço de produzir a primeira Caminhada pela Liberdade Religiosa, em Copacabana, em setembro de 2008. A realização de nossas pesquisas etnográficas resultou primeiramente na produção do II Relatório da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa sobre casos registrados na polícia e seus desdobramentos na justiça. Seguimos realizando as pesquisas sobre os processos de mobilização dos afrorreligiosos e o tratamento estatal às suas demandas, com destaque para análise de como as delegacias tratam as denúncias de vitimização dos adeptos de matrizes afro-brasileira, bem como acerca das ações judiciais nas varas criminais e pelos mediadores do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, evidenciando o esforço de mobilização da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa na luta pela criminação da intolerância religiosa a partir de sua tipificação segundo a Lei Caó (7.716/89). A tipificação da discriminação como um crime inafiançável, punível com pena de prisão de até cinco anos, era um desejo dos religiosos que colocavam em xeque as resistências dos diferentes agentes a tratar os casos como um crime de “maior potencial ofensivo”, já que eram sempre tratados como crimes de “menor potencial ofensivo”, o que resultava em quase nenhuma condenação dos agressores identificados.
Consideramos, na ocasião, que o “ressurgimento” de casos públicos de intolerância religiosa associados às religiões de matriz afro-brasileira estavam relacionados aos ataques de grupos neopentecostais aos cultos de matriz afro, que resultaram num cenário de mobilizações e manifestações políticas, em nível nacional, de defesa de reconhecimento e isonomia de direitos do povo de santo aos demais grupos de matriz cristã no que se refere às disputas pela presença no espaço e na esfera públicos. No entanto, diante da constatação do recrudescimento da violência contra os terreiros, já se tornava perceptível a “insuficiência” do termo intolerância religiosa para classificar os casos envolvendo os ataques dos neopentecostais aos terreiros no país.
Um divisor de águas foi o caso de Mãe Carmem de Oxum, ocorrido em setembro de 2017. Na ocasião foi divulgado um vídeo, atribuído a traficantes da Baixada Fluminense que viralizou nas redes sociais. A religiosa foi abordada por homens armados de pistolas, barras de ferro e cassetete (chamado de “Diálogo”), aos gritos de que a matariam na próxima vez e foi coagida a destruir seus objetos litúrgicos. O caso representa uma mudança de cenário dos conflitos de natureza religiosa e explicita o aumento da violência envolvendo os mesmos. Desde então, nas redes sociais têm circulado relatos de líderes religiosos que foram forçados, sob a presença de armamento pesado, a quebrar seus objetos de culto e deixar o próprio terreiro. Alguns dos casos chegaram a alcançar as mídias, sem que, no entanto, se tenha conhecimento do resultado dessas denúncias no que diz respeito à punição dos agressores.
Se antes era comum o relato de situações envolvendo relações de proximidade (vizinhos, parentes, colegas de trabalho), daquele momento em diante, os “algozes” passaram a ser traficantes e/ou milicianos, bem como os pastores de igrejas neopentecostais. Os fatos que obtiveram destaque na mídia, incluem desde assassinatos até emboscadas com tiros dirigidos ao carro de uma das vítimas. Este cenário sinaliza para um agravamento dos conflitos, fazendo com que o termo “intolerância religiosa” seja relativizado, inclusive pelo Ministério Público Federal (MPF) que, em 2018, publicou uma nota técnica classificando os casos ora como “crimes de ódio” e “racismo religioso”, ora como “atos terroristas” ou “genocídio”.
O caso é revelador de um novo cenário. O avanço de disputas que utilizam os confrontos religiosos como ‘cortina de fumaça’ para a dominação dos territórios em que a presença estatal não garante nem a mobilidade, muito menos a segurança da população. Na atualidade, os terreiros dos adeptos das tradições de matrizes afro se transformaram em obstáculos à expansão das redes criminosas, que exercem controle territorial armado e atuam em atividades econômicas ilícitas e irregulares na localidade, por meio da coação violenta como principal recurso de manutenção e reprodução de suas práticas.
A recente prisão de um grupo intitulado “Bonde de Jesus” é reveladora dos efeitos da penetração de evangélicos neopentecostais no sistema carcerário, num fenômeno que tem sido chamado de “narcopentecostalismo” no Rio de Janeiro. Mas a pressão a que são submetidos os religiosos para não denunciar as violências sofridas ocorre também em áreas dominadas por milicianos.
Apesar dos esforços dos poderes públicos, em especial, da Defensoria Pública e do Ministério Público, os religiosos não sentem segurança em denunciar as agressões, porque têm medo de sofrer represálias. Para os afrorreligiosos nem mesmo a criação da delegacia especializada para o Combate aos Crimes Raciais e de Intolerância no Estado do Rio de Janeiro (DECRADI) serviu para impedir o crescimento dos casos, de modo que já se fala na criação de uma nova legislação para enquadrar como ato de terrorismo o ataque às instituições religiosas.
As pesquisas indicam que este quadro de agravamento da violência não está restrito ao Rio, tendo sido percebido em outros estados, como o Pará e Amazonas – que registram número considerável de mortes de afrorreligiosos – assim como Alagoas, Bahia, Pernambuco, São Paulo, Sergipe e Rio Grande do Sul. O fenômeno dos ataques, que antes parecia restrito a uma disputa no campo das religiões, tem se apresentado como um “problema de segurança pública”, segundo os religiosos, que precisa ser enfrentado em outros termos. A destruição dos terreiros coloca em risco não só a afrorreligiosidade, mas todo um modo de vida e valores, relacionados à natureza e ao cuidado ao outro, que se reproduzem no espaço dos terreiros. Por essa razão os ataques têm sido considerados um novo “genocídio do povo preto” em terras brasileiras, numa clara violação da proteção constitucional do exercício dos direitos culturais oriundos da diversidade étnica e da liberdade de crença.
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EQUIPE DE COMUNICAÇÃO DO INEAC
Jornalista Claudio Salles
Bolsista Bruna Alvarenga
ineacmidia@gmail.com