enfrdeites
Quarta, 27 Março 2019 00:30

Obstáculos culturais e jurídicos ao sucesso de políticas públicas inovadoras

Escrito por

O site do INCT/INEAC republica aqui o artigo do coordenador do Instituto, antropólogo Roberto Kant de Lima, publicado no blog do O GLOBO -  https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/obstaculos-culturais-e-juridicos-ao-sucesso-de-politicas-publicas-inovadoras.html . O artigo contou com a colaboração de Silvia Cavalcanti, Professora Titular do Departamento de Microbiologia e Parasitologia do Instituto Biomédico da UFF e de Daniel Simião, professor do Departamento de Antropologia da UnB.

Obstáculos culturais e jurídicos ao sucesso de políticas públicas inovadoras

Contextos empresariais e político-jurídico-administrativos em que se dão as interações entre as instituições de pesquisa, o mercado e o governo são complexos. Artigo de Roberto Kant de Lima, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, para o blog Ciência & Matemática, do jornal O Globo

Em muitos dos ambientes acadêmicos fala-se com frequência na necessidade e, mesmo, urgência, de que o conhecimento produzido nos institutos e universidades públicos mostre-se úteis à sociedade que em última instância os financia. O argumento é muitas vezes enunciado em tom crítico, como que instando pesquisadores a deixarem suas torres de marfim e interagirem com o mundo que os cerca de maneira a produzir resultados palpáveis em prol do desenvolvimento de nossa sociedade. Estatísticas são apresentadas mostrando, por exemplo, que ocupamos um 14o. lugar mundial em publicações de artigos, mas estamos extremamente defasados no que toca ao impacto que eles possam ter em termos de inovação.

Não há que negar que, tomado em abstrato, o argumento é irretorquível. Para que a sociedade tome os recursos empenhados na pesquisa científica como investimento e não como mera despesa, é indispensável que o retorno desse investimento seja visível. No entanto, quando se levam em considerações os contextos empresariais e político-jurídico-administrativos em que se dão as interações entre as instituições de pesquisa, o mercado e o governo a questão adquire densa complexidade.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o impacto aqui falado se refere ao alcance das pesquisas dentro do ambiente acadêmico internacional. Entretanto, muitas pesquisas feitas em nossos Institutos e Universidades tem como foco o Brasil, envolvendo peculiaridades que podem não ser de relevante interesse em outros países, mas cujo estudo é fundamental para a nossa sociedade.

Em segundo lugar, porque há diferenças palpáveis nos resultados de pesquisas básicas que resultam em produtos tecnológicos stricto senso com valor econômico para o mercado e aquelas que resultam em produtos passíveis de originar tecnologias sociais, passíveis de gerar formulações de políticas públicas voltadas para a inovação social. As inovações tecnológicas stricto sensu são protegidas através de patentes que geram lucros para seus detentores e costumam chegar mais rápido ao mercado; as inovações tecnológicas de cunho social só produzem efeitos quando incorporadas às instituições encarregadas de desenvolver as políticas públicas de sua competência e têm sucesso quando conseguem a adesão de seu público alvo e, portanto, dependem de muitos fatores alheios ao campo científico.

Em todos os casos, é bom lembrar que sem o conhecimento produzido durante o desenvolvimento da pesquisa básica, geralmente de longo prazo, é praticamente impossível gerar aplicações rentáveis tecnologicamente, mesmo que estas não tivessem estado entre os objetivos iniciais da pesquisa. Por outro lado, a implementação dessas duas formas de inovação precisa andar junta, pois apenas a inovação tecnológica jamais assegurará a implantação de ambientes públicos de civilidade e democracia Republicana necessários ao convívio social contemporâneo.

A questão se torna ainda mais complexa quando observamos as condições nas quais interagem os vários atores envolvidos no processo de traduzir a pesquisa básica em tecnologia de mercado ou de políticas públicas. No primeiro caso, em que interagem instituições de pesquisa, empresas e governo, abundam as contradições e os contraditórios nos sistemas de controle administrativos (como CGU, AGU, TCU, etc.) e judiciais (MP e Magistratura) na interpretação das regras que deveriam administrar e regular com clareza e consenso as relações entre os órgãos públicos e as empresas interessadas em servir-se de suas competências. A insegurança jurídica é de tal ordem que são frequentes as acusações e punições de dirigentes de órgãos de pesquisa e suas fundações de apoio, muitas vezes não diretamente envolvidos nos supostos casos de desvios (?!), dos quais o mais trágico é o caso do Reitor da UFSC. Essa insegurança reforça uma “aversão a riscos” por parte de extensos segmentos empresariais e acadêmicos, que se afastam da pesquisa e preferem usar e importar o conhecido do que explorar o desconhecido.

Quando se trata de tecnologias sociais, em que interagem basicamente instituições de pesquisa e governo, há que se levar em consideração a diversidade de orientações político-eleitorais que se sucedem nos governos municipais, estaduais e federal, bem como a inércia administrativa das instituições públicas e os interesses particulares dos agentes encarregados de implementar as ações institucionais, que em inúmeros casos impedem que políticas públicas destinadas a promover a adesão a essas inovações se difundam nos segmentos sociais a que se destinam.

Importante ressaltar que muitos estudos pensados em colaboração com a iniciativa privada e por ela parcial ou totalmente financiados tem gerado problemas na divulgação dos resultados. Isto porque resultados eventualmente desfavoráveis em relação, por exemplo, a novas vacinas, medicações, testes, etc., levam as indústrias a impedir sua divulgação, fato considerado antiético em grupos de pesquisa ligados aos órgãos públicos. Assim, colaborações são importantes, mas atendem segmentos específicos, não sendo apropriados para a maior parte dos estudos desenvolvidos com fins de gerar políticas públicas sem fins lucrativos.

Recentemente, por exemplo, temos acompanhado nas mídias com frequência essas distintas e, porque não dizer, contraditórias orientações em áreas como a segurança pública, a saúde pública, a educação pública e o meio ambiente. Embora haja há muito consenso científico sobre as políticas que precisam ser implementadas para que essas áreas se livrem do caos em que se encontram, os interesses, a opinião e, muitas vezes, os saberes práticos de autoridades político-administrativas que as governam se opõem a sua implementação, o que provoca o acirramento dos problemas e das tragédias que daí resultam.

Em qualquer dos casos, os obstáculos jurídico-administrativos destinados a regular as relações entre instituições de pesquisa, mercado e governo para implementar inovações atuam como mecanismos repressivos, de caráter inquisitorial e providos de uma suspeição sistemática dos gestores dos recursos público-privados. Parecem, assim, feitas para impedir, mais do que facilitar essas interações virtuosas. Tudo acontece como se as atividades das instituições de pesquisa se equiparassem às das demais empresas públicas voltadas para o mercado, que gerenciam amplos recursos em suposta sistemática promiscuidade com o campo político e empresarial. E, da mesma forma que se pretende “combater a corrupção” nesses casos através de medidas repressivas depois do fato ocorrido, não se dá valor devido à implementação de políticas públicas preventivas que possam evitar ou diminuir as oportunidades para que os fatos nocivos à sociedade ocorram, diminuindo, portanto os prejuízos sociais e econômicos por eles causados, como é o caso das políticas públicas das áreas de segurança pública, saúde pública, educação pública e meio ambiente, por exemplo.

Reduzir o problema da produção de um conhecimento “útil” à sociedade aos produtos das pesquisas no Brasil é também ignorar que a carreira dos professores e pesquisadores não se esgota na pesquisa, como se não estivessem todos empenhados, em seu dia a dia, na interação formativa com os futuros profissionais, de todas as carreiras, de nível superior, ou não, que os cursos de extensão, graduação, especialização e pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) qualificam diuturnamente nas instituições públicas brasileiras. Esses futuros profissionais, necessariamente, se beneficiam do aprendizado da realização da pesquisa e dos seus resultados, sendo também um retorno à sociedade a ser contabilizado.

Além disso, por último, mas não com menos relevância, inovações sociais no Brasil estão visceralmente ligadas à transformação de nossas concepções hierárquicas e excludentes, que não privilegiam políticas públicas universalistas que igualem todos os cidadãos em seu âmbito, beneficiando-os de maneira uniforme. Representações históricas sobre a necessidade de tutela do Estado sobre a Sociedade, mas principalmente sobre os segmentos menos aquinhoados em segurança, saúde e educação, legitimam tratamentos majoritariamente repressivos de controle social, reproduzindo ampliadamente a exclusão de sua participação no mercado, com os efeitos que são sobejamente conhecidos.

As dificuldades da implementação de inovações sociais e tecnológicas nesse contexto parecem, portanto, estar muito mais ligadas a um déficit de cidadania das elites dirigentes do que a uma hipossuficiência educacional da população ou ao descaso dos cientistas em formulá-las e promovê-las.

 

Ler 1367 vezes

Deixe um comentário

Certifique-se de preencher os campos indicados com (*). Não é permitido código HTML.