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Terça, 12 Março 2019 15:04

HOMENAGEM A MIO VACITE, MÚSICO E ATIVISTA CIGANO

Escrito por
MIO VACITE, MÚSICO E ATIVISTA CIGANO HORAHANO
(31/Jan/1941 - 11/Mar/2019)

Um dos homens mais íntegros que já conheci em toda minha vida era cigano. Ao confrontar lugares-comuns por onde passava, Mio Vacite era, antes de tudo, um humanista inconformado com as injustiças. Com ele aprendi na prática o significado da palavra convivência, e que as diferenças culturais existem sim e devem ser respeitadas, mas não devem se sobrepor aos valores universais. Era um grande defensor da liberdade e da vida, contra todas as formas de intolerância e preconceito. 

Carioca de origem sérvia e Rom do clã Horahano, assumiu o pioneirismo e protagonismo das mobilizações ciganas no país, ousando tirá-los da região de penumbra que muitos grupos preferem à visibilidade no espaço público, transitando em múltiplos planos sociais. Em meados da década de 1980, à frente do Centro de Estudos Ciganos - CEC, participou da demanda ao Paço Imperial para a fixação de uma placa de cobre no chamado "Adro dos Ciganos", buscando restituir um importante lugar de memória do grupo na cidade, destacando-se como um dos organizadores da I Semana de Cultura Cigana da América Latina na Casa de Rui Barbosa. Em 1993, fundou e passou a presidir a União Cigana do Brasil - UCB, obtendo projeção internacional como ativista quando a entidade foi reconhecida como representante brasileira da cultura cigana pela International Roma Federation (IRU), filiada à Organização das Nações Unidas - ONU. 

Sua dignidade, expressividade e elegância insubstituível em representar as culturas ciganas, valendo-se de seu notável talento musical e arguta capacidade de mobilização política, era sua marca personalíssima, buscando desfazer estereótipos e mistificações como orador de improviso, impiedoso contra as manipulações da identidade, a veleidade das pretensões políticas e as formas de entesouramento do poder. Como exímio violinista, encarnava bem o papel, conjugando sua estética e sua ética na luta pela visibilidade dos ciganos no Brasil, por via das artes, da música e da dança. Somava-se a essas qualidades seu raro senso de humor e sua fina capacidade de interagir, buscando tirar partido das representações positivas. 

Foi assim que o conheci, no Salão Negro do Ministério da Justiça, em 24 de maio de 2007, em apresentação do conjunto musical Mio Vacite e o Encanto Cigano na primeira celebração oficial do Dia Nacional do Cigano em Brasília, quando o Prof. Marco Antonio da Silva Mello e eu comparecemos à cerimônia, representando a Associação Brasileira de Antropologia - ABA durante a gestão dos Profs. Luís Roberto Cardoso de Oliveira e Roberto Kant de Lima. A pesquisa realizada por nós, do Laboratório de Etnografia Metropolitana - LeMetro/IFCS-UFRJ, sobre a presença cigana no Rio de Janeiro desde os tempos coloniais, com particular interesse sobre os Calon do bairro do Catumbi, todos eles oficiais de justiça conformando um instigante nicho profissional, passou a ter em Mio Vacite um interlocutor frequente e um delicado anfitrião em nossas numerosas visitas. Nosso grupo incluía a pesquisadora Mirian Alves de Souza, que dedicou sua formação acadêmica a esse tema e mais tarde estudaria o projeto identitário da União Cigana do Brasil, em comparação com o movimento Rom no Canadá. Entusiasta do diálogo profícuo entre ativistas e acadêmicos, Mio Vacite também participou das pesquisas da Profa. Ana Paula Mendes de Miranda no Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos - INCT-INEAC/UFF, por sua atuação efetiva como membro da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa - CCIR.

Com o passar do tempo, ultrapassando possíveis barreiras e mesmo os enquadramentos formais das pesquisas em curso, passei a desenvolver com ele uma relação de fina sintonia, admiração recíproca e confiança mútua. Como antropólogo convertido em grande amigo, pude estar, conviver e aprender com Mio Vacite nas mais diversas e numerosas ocasiões, em eventos e situações sociais de todos os tipos: programas de televisão, seminários acadêmicos na UFF, na UFRJ, na UERJ e no ISER, apresentações em centros culturais, festas ciganas em clubes no subúrbio, reuniões em ministérios, desfiles de escolas de samba, visitas a acampamentos pelo interior do Estado, encontros político-culturais sob lonas de circo. Muitas vezes levei colegas pesquisadores do Brasil e do exterior a seu encontro, dentre eles Marc Bordigoni (França), Greta Persico (Itália) e Sofiya Zahova (Bulgária e Islândia). Mio, por sua vez, me afiançava como colaborador a outros ativistas ciganos, como sua amiga Yáskara Guelpa, e fazia questão de minha presença em Brasília nos debates e reuniões sobre políticas públicas minoritárias para ciganos. E assim estive a seu lado também no momento extremo de dor, quando faleceu sua saudosa esposa Jaqueline Liz Vacite em 27 de agosto de 2015, sua incansável parceira de palcos, de mobilizações, de uma vida enfim. 

A súbita e triste partida desse querido interlocutor me coloca diante não só da dor da perda de uma longa amizade interrompida, mas diante dos limites da pesquisa antropológica para além de nossos desejos e possibilidades. Se por um lado, nos deixamos submeter ao tempo do outro, sem ver passar as horas na ante-sala das consultas espirituais realizadas na casa do anfitrião, enquanto engraxava seus sapatos e separava as partituras para o próximo espetáculo; por outro, temos que administrar nossas urgências, sempre correndo atrás do tempo, nessa implacável era da cronofagia em que tempo sempre nos falta. É triste constatar que não existe experiência antropológica de longa duração que não nos confronte com a presença dolorosa da morte daquele que mais ativamente contribuiu e apreendeu o significado de nossas pesquisas da perspectiva de dentro, deixando muitos fragmentos em nossa lembrança, fotografias e anotações dispersas, e a sensação de vazio diante de tudo aquilo que não tivemos tempo de ouvir e aprender.

Felipe Berocan Veiga
Chefe do Departamento de Antropologia da UFF
Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia - PPGA-UFF 
Pesquisador do Laboratório de Etnografia Metropolitana - LeMetro/IFCS-UFRJ e do INCT-InEAC/UFF.

Rio de Janeiro - RJ, 11 de março de 2019.

Foto: Felipe Berocan Veiga, 11/Mai/2009.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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