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O site do INCT INEAC reproduz aqui artigo do coordenador do Instituto, antropólogo Roberto Kant de Lima, intitulado "Igualdade jurídica e respeito às diferenças no Brasil: entre a pirâmide e o paralelepípedo"
publicado hoje, dia 21 de janeiro de 2019, no Blog do jornal O Globo: //blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/igualdade-juridica-e-respeito-diferencas-no-brasil-entre-piramide-e-o-paralelepipedo.html
Artigo de Roberto Kant de Lima, coordenador do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), para o blog Ciência & Matemática do jornal O Globo
Em função de medidas anunciadas pelo governo brasileiro recentemente empossado, tem-se discutido com intensidade a questão do respeito às diferenças, associada a certos avanços em governos anteriores em conformidade com aqueles de regimes republicanos e democráticos contemporâneos. Tais avanços estariam sendo desafiados por rejeições a institutos jurídicos e a políticas públicas associadas à proteção de diferenças encontráveis em vários segmentos da sociedade brasileira. Exemplos seriam os direitos de populações indígenas, quilombolas e populações tradicionais de se reproduzirem social e economicamente em seus próprios termos, resguardando suas identidades; assim como de outros segmentos, como a comunidade LGBT e os adeptos de religiões afro-brasileiras, de terem reconhecidos seu direito de expressarem publicamente suas identidades e credos, em igualdade de condições com os demais segmentos da população brasileira.
Pesquisas do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, coordenado por mim, mostram a ambiguidade do campo jurídico-político brasileiro no que se refere ao reconhecimento de direitos iguais a segmentos diferenciados de nossa sociedade. Para entender melhor essas ambiguidades, é necessário ter em mente que, do ponto de vista do direito, no Ocidente ainda vigem dois conceitos de igualdade: aquele que atribui direitos iguais aos semelhantes e, portanto, atribui direitos desiguais aos diferentes; e aquele que atribui direitos iguais aos diferentes, em função de suas diferenças, para que todos os membros da sociedade possam ter um mesmo mínimo comum de direitos.
Normalmente se concebe que o direito de igualdade restrito aos semelhantes é próprio dos regimes aristocráticos, ou monárquicos, em que cada segmento social tem seus próprios privilégios, sendo uns diferentes dos outros e organizados de maneira hierárquica. Essa desigualdade costumava encontrar sua justificação na própria natureza das pessoas ou na vontade divina. Teoricamente assemelhado a uma pirâmide, esse modelo jurídico teria dado lugar a um outro modelo jurídico nas democracias ocidentais, assemelhado a um paralelepípedo, que atribuiria um mínimo de direitos iguais aos segmentos diferentes da sociedade, em função dessa diferença. Enquanto o modelo da pirâmide impede os segmentos desiguais de se misturarem uns aos outros e impõe a harmonia e a complementaridade entre eles, o modelo do paralelepípedo a todos iguala juridicamente na base, para que se desigualem no mercado em suas trajetórias individuais, que serão fruto de suas escolhas, sempre conflitantes e em oposição e eventual conflito com os interesses alheios.
Essa mudança na concepção de igualdade jurídica provoca uma transformação no status e no contrato entre o Estado e os membros da sociedade (de súditos para cidadãos) e se constrói e dissemina no seio das revoluções liberais do final do século XVIII, instituindo-se o conceito de cidadania para definir um feixe mínimo de direitos universais atribuídos aos diferentes segmentos contidos no Estado-Nação.
Ora, no Brasil esse movimento no campo jurídico não se realizou de maneira análoga às de outras repúblicas europeias e americanas. Como se sabe, nossa transformação em Estado ocorreu nos quadros jurídicos de um Império Brasileiro, que desigualava segmentos nobres e plebeus da população brasileira. Ainda mais grave, havia segmentos significativos dessa população que não eram pessoas físicas dotadas de direitos, mas como escravos, semoventes, análogos juridicamente aos animais. Não foi por acaso que, embora houvesse desde a década de 1830 os Códigos – Penal e Processual Penal – que se aplicavam a toda a população brasileira, só se conseguiu editar um Código Civil Brasileiro – regulando as relações contratuais civis no Brasil – em 1916, 28 anos depois da Abolição da Escravatura e 27 anos após a Proclamação da República.
É também dessa época, dos anos 1920 do início da República, que surge uma expressão jurídica, extraída do discurso de um jurista liberal, que bem representa essa ambiguidade: segundo essa expressão, que se tornou um mantra nas questões até hoje envolvendo a igualdade jurídica no Brasil, “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”. Ou seja, a regra da igualdade jurídica pressupõe a desigualdade jurídica, uma sociedade em que os diversos segmentos são dotados de privilégios desiguais, a serem distribuídos pelo Estado – ou por seus funcionários – entre os diferentes grupos complementares que compõem a sociedade.
Essa ambiguidade de modelos jurídicos ainda se reflete nos atuais diplomas legais, onde, por exemplo, as Constituições republicanas do Brasil sempre estabeleceram que “todos são iguais perante a lei”, mas a legislação ordinária reserva inúmeros privilégios a diferentes segmentos da população – em função de seus cargos públicos, ocupações profissionais, etc. –, como têm ficado transparente dos tratamentos judiciais penais desiguais que se têm dado a réus da operação Lava-Jato, com implicações críticas para o desfecho mais ou menos favorável de seus julgamentos.
Nesse contexto ambíguo, em que um modelo piramidal se encontra juridicamente engastalhado em um modelo de paralelepípedo, ora se pode afirmar que segmentos minoritários da população têm direitos iguais aos demais segmentos; ora se pode considerar que segmentos semelhantes têm direitos iguais, mas segmentos diferentes têm direitos desiguais, em função exatamente de sua diferença, que deve ser anulada para que se transformem em semelhantes. Como não há clareza sobre como o regime jurídico republicano igualitário deve se atualizar em nossa sociedade hierarquizada, todos os dois pontos de vista estarão arguindo sua fidelidade a concepções juridicamente válidas de igualdade.
Essa ambiguidade, portanto, turva a distinção jurídica e política entre políticas supostamente de cunho liberal, próximas do paralelepípedo e que deveriam ser favoráveis ao reconhecimento das diferenças, e aquelas próximas da pirâmide, que não as reconhecem, por estarem vinculadas a concepções aristocráticas de igualdade. Mais ainda, essa falta de transparência impede a expressão clara dos argumentos contrários, pois os mesmos, aparentemente discutindo a partir de um campo consensual comum sobre a igualdade jurídica, partem, ao contrário, de definições e pressupostos diferentes que, em outros contextos internacionais já foram devidamente esclarecidos, mesmo onde e quando os resultados desse debate não tenham sido plenamente acordados.
Assista também no canal do youtube do INCT Ineac o vídeo gravado pelo professor Roberto Kant de Lima tratando desse mesmo assunto. https://www.youtube.com/watch?v=lx6ZF-oPyTY
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Jornalista Claudio Salles
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