enfrdeites
Quinta, 09 Agosto 2018 01:25

"PCC não tem dono. É uma fraternidade do crime"

Escrito por

O site do INEAC reproduz aqui a entrevista com o sociólogo Gabriel Feltran, professor da Universidade Federal de São Carlos e diretor científico do CEM (Centro de Estudos da Metrópole) da Universidade de São Paulo, intitulada  "PCC não tem dono. É uma fraternidade do crime", publicado no site uol.com.br 

Nem uma empresa do crime ou apenas uma estrutura de caráter militar. Maior facção criminosa do país e presente em todos os estados, o PCC (Primeiro Comando da Capital) é uma fraternidade. Uma sociedade secreta cujo objetivo principal é o progresso de seus irmãos (membros) e voltada para a "luta violenta e silenciosa contra o sistema".

Esta é a visão do sociólogo Gabriel Feltran, professor da Universidade Federal de São Carlos. Ele é autor do livro recém-lançado "Irmãos --Uma História do PCC" (Companhia das Letras), no qual traça um panorama da trajetória do grupo criminoso fundado por oito detentos no Anexo da Casa de Custódia de Taubaté (SP), há quase 25 anos . A obra é baseada em uma pesquisa de campo feita nas últimas duas décadas pelo autor na periferia de São Paulo. 

"Oferecendo aos presidiários uma ordem previsível para a vida cotidiana, o PCC ganhou respeito e o consentimento ativo da massa prisional em São Paulo", escreve Feltran. E partir das prisões, a facção passou a exercer uma hegemonia nas ruas, atuando como uma espécie de "agência reguladora do crime".

Leia abaixo a entrevista por email que o sociólogo concedeu ao UOL:

UOL - Em seu livro, você afirma que o PCC é uma "fraternidade do crime" com aspectos semelhantes à maçonaria. Em sua visão, quais são as características que diferem o PCC de outras facções criminosas?

Gabriel Feltran -  O PCC não tem dono nem chefe, nem um general.

É uma sociedade secreta fraternal, com posições hierárquicas e despersonalizadas de autoridade, em geral chamadas de 'sintonias'.

Essa estrutura incorpora as funções militar e de mercado sem se confundir com elas. Fraternidades como a maçonaria nos dão uma metáfora mais simples para entender isso. O fato de um maçom ser empresário não faz da maçonaria uma empresa. O fato de ele ocupar a posição de venerável de uma loja não o autoriza a mandar em outro irmão. 

Há muitos empresários maçons, grandes e pequenos, de muitos ramos da economia, além de outros irmãos que não são empresários. Não há estrutura centralizada de mando, mas princípio de apoio mútuo entre irmãos. Ninguém divide o lucro da sua empresa com a maçonaria, mas ajuda a fortalecer a fraternidade e seus princípios de outras formas. Assim também no PCC. 

Não conheço outros grupos criminais que atuem assim; em geral, são redes étnicas, empresariais ou militares.

Por que usar metáforas como "empresa do crime" ou de uso militar é insuficiente para compreender o que é o PCC?

Há muitos empresários ligados ao PCC fazendo comércio local ou transnacional de drogas e armas, atuando também nos mercados de veículos, fazendas, hotéis, postos de gasolina, fronteiras, portos etc. 

O PCC pode realizar ações de tipo militar como resgates, execuções ou assaltos tão sofisticados quanto uma operação de guerra.   

Uma sintonia específica pode até atuar como uma empresa, sem dono, nos moldes de uma estatal. Outra pode ser focada em treinamento militar. Mas essas partes não são o todo da facção. Ninguém manda em ninguém, nem divide seus lucros com a irmandade. 

Qualquer irmão, rico ou pobre, preso ou na rua, tem os mesmos princípios a defender no mundo do crime e a mesma disciplina a considerar, ainda que saia do crime.

São fundamentalmente três. Em primeiro lugar a pujança da economia ilegal na América Latina, a partir dos anos 1980, quando os mercados de drogas e armas ganham escala global. Isso expande o crime em geral, não apenas o PCC. 

Em segundo lugar os equívocos das nossas políticas de segurança --de governos, judiciário e do debate público--, que focam na guerra contra pequenos operadores em vez da regulação desses mercados. Temos agido por instinto mais do que com inteligência nessa área. Punimos as pessoas enquanto incentivamos as facções, que ganham milhares, milhões de integrantes. Assim, saímos de 40 mil presos no início dos anos 1990 para 240 mil hoje no estado de São Paulo, com 1 milhão de ex-presidiários. Nos outros estados importou-se esse modelo, uma máquina de fazer bandido e desigualdade. No país, já são milhões de pessoas convivendo diretamente com o mundo do crime. 

Em terceiro lugar, a forma singular do PCC atuar como uma fraternidade que prioriza as alianças aos enfrentamentos entre os pobres, para fortalecer sua guerra contra "o sistema".

Por que você considera que no ano de 2002, quando Marcola obteve vitória sobre adversários Cesinha e Geleião, aconteceu uma "revolução" na história da facção?

Porque ela quebra o modelo piramidal de organização, com poder personalizado e estrutura de mando, para fortalecer a forma igualitarista da irmandade, com posições de poder despersonalizadas e sintonias independentes. Esse modo de agir é muito mais difícil de reprimir, equaciona política e economia na facção de modo totalmente diverso de outros grupos criminais, o que facilita demais a expansão do PCC nos últimos 15 anos. É uma passagem decisiva.

Você afirma que o PCC não tem uma estrutura de mando. Nesse sentido, qual é a posição ocupada por Marcola dentro da facção? Por que, em sua opinião, não existe a figura de chefe do PCC?

Existem pessoas que pela sua "caminhada" no crime, como se diz, têm o respeito dos outros bandidos. Mas elas não podem mandar em ninguém, pela própria lógica que as fez terem prestígio. Elas são referências para os outros ladrões e, ao mesmo tempo, ninguém é mais que ninguém nesse universo. Há outras formas de organizar uma coletividade que não a estrutura de mando, do poder personalizado, que nos é mais familiar. Para o bem ou para o mal, elas existem.

Mesmo que o número de membros do PCC seja reduzido em uma determinada prisão de São Paulo, as regras da facção são obedecidas pelos demais presos. O mesmo vale para pontos de drogas que não geridos por membros da facção. O que significa dizer que a "cadeia e a rua correm no ritmo do PCC"?

 

Não são regras sendo obedecidas. Para quem é da facção esse é o certo, o correto, mesmo que na vida errada. É diferente.

Uma cadeia que tem 1.300 presos pode ter apenas 50 irmãos batizados e ser considerada toda uma cadeia 'do PCC', porque os demais presos concordam, aceitam ou ao menos toleram o ritmo do PCC, a disciplina do comando um dia depois do outro dia.

Uma quebrada com 10 mil pessoas pode ser considerada "do PCC" mesmo que haja só meia dúzia de irmãos batizados ali. Muita gente que é do crime não é irmão batizado do PCC, mas, como se diz, corre com o comando. Porque considera que é mais certo assim, não porque é obrigado a isso. Queiramos ou não, é assim que tem funcionado.

Você afirma que nas favelas e nos bairros periféricos funcionam e coexistem três redes de influência muito poderosas: a do crime, a estatal e a religiosa. Como elas interagem?

Interagem no cotidiano, nas necessidades do dia a dia. Se uma pessoa tem um filho no crack, a igreja tem uma clínica de internação; é o que ela conhece, o pastor e os irmãos da igreja podem ajudar. Se um familiar teve problemas com a Justiça, um advogado conhecido pode auxiliar. Se ela teve sua moto roubada, é mais certeiro se reportar ao mundo do crime do que à polícia na tentativa de recuperá-la. 

São redes de poder que atuam ao mesmo tempo, não necessariamente uma contra a outra sempre. As três se expandem nas últimas décadas. Por isso há hoje religiosos, policiais, militantes e bandidos com influência política e negócios relevantes nas periferias.

A tese de que o PCC monopoliza o tráfico de drogas em São Paulo não se sustenta, em sua opinião. Por quê?

Por várias razões. Primeiro porque o PCC não é uma empresa. Depois porque todo o tráfico nas classes médias e elites não é regulado pela disciplina da facção. Também porque há muitos pontos de venda de droga nas periferias que não são operados por irmãos batizados no comando. Esse é um mercado enorme, transnacional, muito diversificado e difícil de monopolizar. Não quer dizer que empresários ligados ao PCC não tenham vontade de monopolizar redes de tráfico. Mas hegemonia política é uma coisa, monopólio econômico é outra.

Como definiria o impacto das ações da facção nas dimensões legais e ilegais em mercados como o de carros roubados?

 

O mercado de veículos é um ótimo exemplo da interface legal-ilegal. Há 500 mil veículos roubados no Brasil todos os anos, abastecendo os setores de autopeças, revenda, leilões, seguros e outros ramos regulares, oficiais e fortes da economia nacional. Claro que esses ramos trabalham majoritariamente com veículos legais. 

Ou seja, legal e ilegal se misturam e o dinheiro obtido com um carro roubado retorna como desenvolvimento econômico desses mercados; gera violência de um lado e emprego legal de outro. Da mesma forma, veículos são trocados nas fronteiras por armas e drogas, retroalimentando a economia ilegal que vira consumo, dinheiro, mas também novo ciclo de violência. 

Temos estudado essas interfaces com detalhe numa rede de pesquisa ampla, internacional. A presença das facções na regulação dessas economias é relevante.

O PCC assumiu o papel de institucionalizar um tipo de justiça que já ocorria nas favelas antes de sua existência. Como isso aconteceu e como a facção aplica essa justiça?

O PCC reforça e organiza uma forma de justiça popular cujos valores já existiam nas periferias muito antes dele. Uma justiça comunitária, sem mediação da lei oficial, alheia ao Estado. Antes da hegemonia do PCC em São Paulo havia muitos justiceiros, grupos de extermínio e linchamentos. Também eram formas de justiça popular.

O PCC age contra essas práticas ativamente, combate os justiceiros em cada quebrada e reivindica para si o monopólio da violência e da justiça popular. Isso é muito conhecido nas cadeias e favelas do estado de São Paulo. 

Quais são os erros cometidos pelo Estado brasileiro que permitiram que o PCC conquistasse uma hegemonia política sobre parte tão significativa da população?

As pessoas querem paz e justiça, vindas de onde vier. Os mais pobres também. Quando a gente anda por muitos anos nas favelas, isso é evidente. A justiça oficial não esclarece sequer os homicídios nas favelas. Se o fizer, será depois de sete, oito anos. Seu filho é assassinado, você sabe quem matou mas as autoridades não investigam. As facções o fazem. 

Outro exemplo: muitos jovens favelados são inempregáveis exceto no tráfico, que os acolhe e os permite ter renda. Às vezes são coisas até muito mais básicas: ter uma pasta de dente ou um sabonete na cadeia. O crime permite isso ao cara, porque nós não conseguimos ou não queremos permitir. 

Então não precisa ser de direita nem de esquerda para entender que as pessoas querem coisas básicas. Segurança é uma delas. Quando não tem de um lado, busca-se de outro. 
                                                                                                                                                           
Quais são hoje os objetivos do PCC? Considera que a facção pretende ter representantes parlamentares, por exemplo?

 

Os mesmos objetivos de sempre: progresso para os irmãos e suas famílias através do crime, do mundo do crime. Não do trabalho. Difícil de entender para nós, mas lógico para a minoria que vive esse universo. 

O resto, na visão da facção, são meios para isso. Conquistar mais mercados, mais portos, fronteiras e aeroportos, mais armas e tecnologia, mais redes internacionais para ações criminais é um meio para esse progresso. 

O PCC não é um partido político nem quer integrar nosso sistema político. Não acredita nisso, embora precise corromper agentes do Estado para favorecer suas ações. Não se admitem agentes penitenciários, policiais ou outras autoridades batizadas na facção. Isso não existe. De outro lado, bandidos no parlamento não seria uma novidade, no nosso caso.

Ler 2043 vezes

Deixe um comentário

Certifique-se de preencher os campos indicados com (*). Não é permitido código HTML.