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Neste espaço, gostaria de me deter em um desses tópicos vinculado ao direito à verdade e à justiça em casos de violência letal do Estado.
“Não tem mais onde furar “: as mães de vítimas da violência de Estado entre o tiro da polícia e o tiro do judiciário
por Lucía Eilbaum
No Brasil, o mês de maio tem diversas datas associadas à celebração da maternidade. Sem dúvida, a mais popular e comercialmente conhecida é o segundo domingo do mês, Dia das Mães. Menos conhecido é o fato do estado do Rio de Janeiro ter reconhecido e aprovado, através da Lei 7637, de 26 de junho de 2017, a “Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violências no Estado do Rio de Janeiro”, a ser celebrada entre os dias 12 e 19 de maio.
O reconhecimento responde especificamente à demanda de movimentos sociais de mães e familiares de vítimas da violência de Estado. Esses movimentos começaram a se mobilizar na década de 90 e tem como precursor, no Rio de Janeiro, o movimento de Mães de Acari, formado a partir do desaparecimento de 11 jovens por um grupo de extermínio. Em 2016, diversos coletivos organizaram o primeiro Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado, em São Paulo, puxado pelo movimento Mães de Maio por ocasião dos 10 anos dos Crimes de Maio; em 2006, entre 12 e 20 de maio, policiais e grupos paramilitares de extermínio executaram 505 pessoas, em sua maioria foram jovens negros periféricos e afro-indígenas.
No ano seguinte, o Encontro Nacional foi realizado no Rio de Janeiro, mobilizado pela Rede de Movimentos e Comunidades contra a Violência e a Rede de Mães e Familiares da Baixada Fluminense, Mães de Manguinhos, entre outros. Por ocasião desse encontro, foi entregue pelas mães e familiares uma enorme caneta simbólica a deputados do Estado do Rio de Janeiro exigindo a aprovação de uma série de propostas de reparação e memória, entre elas a inclusão no calendário oficial de uma semana que reconhecesse a luta de mães e familiares das vítimas de violência do Estado.
Nos anos que se seguiram, o mês de maio continuou sendo palco para a organização dos encontros nacionais, tendo o mais recente acontecido entre os dias 15 e 19 de maio do corrente ano em Recife (PE). Assim, ao mesmo tempo que o movimento foi ganhando força política, infelizmente, ano após ano, ele foi se ampliando para outros estados e para outras famílias que se tornam, diariamente, vítimas da violência de Estado.
Desde pelo menos 2018, o GEPADIM, Grupo de Pesquisa em Antropologia do Direito e das Moralidades, por mim coordenado e integrante do INCT-InEAC, acompanha e apoia esses movimentos. Atentas e interessadas nas formas de produção e classificação administrativa e judicial de mortes provocadas pelas forças de segurança, junto com a antropóloga Flavia Medeiros, atualmente professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e de toda a equipe do GEPADIM, em maio de 2018 organizamos, na Universidade Federal Fluminense (UFF), o Seminário “Nossas Vidas Importam: ativismos, violência institucional e direitos humanos. Diálogos Brasil – Argentina“. Com ele inauguramos uma parceria e diálogo permanentes com coletivos que integram a Rede Nacional de Mães e Familiares contra o Terrorismo de Estado e fomos compondo uma relação de confiança e interlocução, de acolhimento mútuo, de troca de experiências e saberes.
Em todos esses anos de trabalho, acompanhando os casos judiciais e administrativos das mortes produzidas pela violência letal do Estado, várias dimensões se destacam em torno da luta por “verdade, justiça, memória e reparação”. Neste espaço, gostaria de me deter em um desses tópicos vinculado ao direito à verdade e à justiça em casos de violência letal do Estado. Além de ser uma dimensão diretamente vinculada às pesquisas desenvolvidas no âmbito do INCT-InEAC, nos últimos meses o desenrolar judicial de alguns casos têm me chamado a atenção para as formas de tratamento institucional e judicial dos mesmos.
Lucas: “em legítima defesa”
No dia 10 de março deste ano, foi publicada a sentença judicial pelo assassinato, no dia 30 de dezembro de 2018, de Lucas Azevedo Albino, um jovem de 18 anos morador do Complexo da Pedreira, em Costa Barros, na zona Norte do Rio de Janeiro. A decisão do juiz absolveu os quatro policiais militares acusados de homicídio duplamente qualificado, em ação típica de grupo de extermínio.
No final do ano de 2018, Laura Azevedo Ramos, mãe de Lucas, e sua família se preparavam para viajar à Costa Verde para passar um dia de praia. Lucas foi buscar sua namorada, que morava a apenas duas ruas da casa deles. No trajeto, foi abordado por policiais e baleado no ombro. Os agentes o obrigaram a entrar na viatura enquanto ele pedia por sua mãe e afirmava não ser bandido. Lucas faleceu no caminho ao hospital, com um tiro na cabeça dado em curta distância de cima para baixo.
Laura reconstruiu os fatos, coletou provas, as levou diante do Ministério Público (MP) e ainda narrou sua saga investigativa, não isenta de ameaças por parte dos policiais, em depoimento em audiência. Com essas provas, em julho de 2021, o MP apresentou a denúncia contra os policiais. Posteriormente, também foi anexado ao processo, por parte do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH), um laudo pericial que demonstrou a versão já comprovada por Laura: Lucas entrou na viatura vivo com um tiro no ombro e foi retirado morto com um tiro na cabeça.
A sentença judicial ignorou o laudo e argumentou uma outra versão dos fatos. Sustentando que não haveria provas suficientes de autoria dos réus, alegou que Lucas bem poderia ter sido atingido, de cima para baixo, por tiros de traficantes, e não da polícia, considerando que “a região é sabidamente perigosa e palco de confrontos e domínio da criminalidade”. Na hipótese de os policiais terem disparado, o magistrado presumiu que teria sido em legítima defesa.
Laura não conheceu a sentença. Ela faleceu um ano antes, no dia 17 de março de 2023, em decorrência do agravamento de um câncer a partir do assassinato do Lucas.
Johnatha: “não houve intenção de matar”
Poucos dias antes da sentença absolutória no caso do assassinato do Lucas, nos dias 5 e 6 de março, foi realizado o Júri popular pela morte de Johnatha de Oliveira Lima, ocorrida em 14 de maio de 2014, quando tinha 19 anos. O caso repercutiu bastante nas mídias e o Júri contou com a presença numerosa de jornalistas, movimentos sociais, familiares de outras vítimas de violência de estado e pesquisadores. A repercussão é resultado da luta de mais de 10 anos que Ana Paula Oliveira, mãe do Johnatha, empreendeu desde o dia do seu assassinato.
Após dois dias de Júri, finalizadas as arguições e a réplica da acusação, no último minuto da tréplica, quando já não haveria mais direito a retomar a palavra, a defesa do réu incorporou uma nova hipótese para os jurados votarem: a tese do homicídio culposo, ou seja, que, ao atirar, o réu não teria tido intenção de matar. Por maioria, os jurados votaram essa tese, apesar das provas apresentadas pela acusação. O réu saiu em liberdade e o caso passou a ser competência da Justiça Militar do Rio de Janeiro.
O grito de dor e de indignação por Justiça da Ana Paula ecoou na sala de audiências. Os protestos de uma “Justiça racista” também replicaram na sala por parte da plateia. A sensação de impunidade atravessou os presentes. Desde a família do Johnatha, os amigos e vizinhos, até as outras mães e familiares que acompanharam o julgamento e que ainda demandam justiça.
Claudia: “erro de execução”
Nos jornais do dia 18 de março repercutiu a sentença, emitida em fevereiro, de uma vara do Tribunal do Júri do Rio de Janeiro de absolvição dos seis policiais militares envolvidos na acusação pelo homicídio de Cláudia Ferreira e pelo crime de fraude processual, por terem alterado a cena do crime, ao remover o corpo de Cláudia.
Cláudia Ferreira era uma mulher negra, moradora do Morro da Congonha, em Madureira, zona Norte do Rio de Janeiro. Era mãe de 4 filhos e cuidadora de outros 4 sobrinhos. Trabalhava como auxiliar de serviços em um hospital naval. No dia 16 de março de 2014, tinha saído para comprar pão. No percurso foi atingida por um disparo de arma de fogo no decorrer de um confronto entre os policiais e supostos traficantes.
Ao perceberem que os disparos tinham atingido Claudia, os policiais removeram o corpo e o colocaram no porta mala da viatura. O caso ganhou repercussão imediata porque um cinegrafista amador chegou a filmar o momento em que o corpo de Cláudia cai da viatura e é arrastado por 350 metros.
Dez anos depois, a decisão do juiz do Tribunal do Júri alegou não ser possível estabelecer a responsabilidade dos agentes, nem pela morte de Cláudia, nem pela alteração do local e consequente obstaculização da investigação. O trecho da sentença que foi divulgado indica que o magistrado entendeu que “os acusados agiram em legítima defesa para repelir injusta agressão provocada pelos criminosos, incorrendo em erro na execução, atingindo pessoa diversa da pretendida”. A morte da Cláudia foi entendida como um efeito colateral de uma ação de confronto “mal sucedida”. O alvo, nessa interpretação, seria outro. O fato do disparo ter atingido Claudia foi visto como um erro de percurso.
Tiro ao alvo: não tem mais onde furar
As três vítimas são pessoas negras, Lucas e Johnatha dois jovens; Claudia mãe e trabalhadora. Os três crimes aconteceram em territórios de comunidades e deflagraram na morte das vítimas em função de uma intervenção estatal oficial. Nos três casos houve alteração da cena do crime, impedindo a coleta imediata de provas. Trata-se de formas sistemáticas de produzir mortes por parte do Estado, em territórios pobres, periféricos, contra a população negra. Não são casos aleatórios nem dinâmicas imprevisíveis, ou erráticas.
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