Desde o início do governo, o presidente Jair Bolsonaro adotou discursos voltados para a incitação do ódio e da violência no Brasil, com a defesa de aquisição ampla de armas de fogo pela população e utilização de força contra adversários políticos. Mas não se trata apenas de palavras. As políticas do governo Bolsonaro também têm promovido a crescente militarização e milicialização das cidades.
A expressão militarização das cidades, ou urbanização militar, está fundada na abordagem de Stephan Graham[1] e busca dar conta das transformações recentes nas sociedades urbanas, nas quais se percebe que os espaços – envolvendo desde a infraestrutura, os recursos naturais e a população –, tornam-se palco de conflitos militares. Dessa forma, a metáfora da guerra é cada vez mais acionada para descrever a condição das cidades, já em constante batalha contra as drogas, o crime, a insegurança, o terror, e tudo o mais que se constrói enquanto um inimigo a ser combatido.
Já a milicialização pode ser considerada como uma das expressões mais significativas da militarização no contexto periférico brasileiro. Caracteriza-se pelo controle de um grupo armado sobre um território, associado a um modelo de negócios que faz a intermediação de bens e serviços bastante diversificado, envolvendo a segurança púbica, a produção habitacional, serviços de gás, televisão, internet, entre outros. Trata-se, assim, de um fenômeno que opera nas fronteiras, muitas vezes indiscerníveis, entre o legal e o ilegal, o lícito e o ilícito, o formal e o informal, envolvendo aparatos e instituições do Estado.
As milícias, que já foram consideradas um fenômeno carioca, expandiram a atuação para outros territórios no Estado do Rio de Janeiro e também para outras unidades da federação. Expandiram ainda os ramos de negócios nos quais atuam. E, além disso, exportaram esse modelo, cada vez mais adotado por grupos armados que controlam territórios populares mundo afora.
Militarização e milicialização são dimensões do fenômeno dos ilegalismos que atravessam as cidades brasileiras. Neste artigo, destacamos alguns aspectos desse fenômeno, que merecem ser abordados na discussão dos impactos da inflexão ultraliberal sobre o direito à cidade.
O crescimento das mortes violentas intencionais e o padrão racial nas mortes decorrentes das intervenções policiais
A política federal de segurança pública tem aprofundado a criminalização da pobreza e o caráter racista do sistema de justiça criminal, como confirmam os dados dos Anuários Brasileiros de Segurança Pública, divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) a cada ano.
O ano de 2020 revelou um crescimento de 4% na taxa de mortes violentas intencionais no Brasil em relação a 2019, fazendo com que esta alcançasse a marca de 23,6 por 100 mil habitantes. Quem são as vítimas destas mortes violentas intencionais? Segundo as evidências dos dados compilados no Anuário, os homens, os negros e os jovens são as principais vítimas em todos os tipos de morte violenta intencional. Pretos e pardos foram 77,9% das vítimas desses homicídios, a maioria delas com idades entre 12 e 29 anos. É estarrecedor constatar que a violência é a principal causa de morte entre os jovens.
A gravidade desse quadro também se expressa nos dados relativos à violência policial. Segundo o Anuário, em 2020, os dados sobre morte em decorrência de intervenções policiais atingiram o seu maior número desde que esse indicador passou a ser monitorado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Os dados de 2020 reproduzem o padrão histórico dessas vítimas, constituídas majoritariamente por homens (98,4% das vítimas). Outro aspecto que deve ser destacado é a reprodução do padrão racista institucional das polícias, que vitimizam mais os negros do que os brancos. Em 2020, 78,9% das vítimas de ações policiais eram negras. Ou seja, negros e negras têm 2,8 vezes mais chances de morrer durante uma ação policial do que pessoas brancas.
Os números nos revelam, sem surpresas, um país que promove um crescente genocídio da população jovem negra e que vem ampliando seu cenário de violência social. É clara a contribuição dos discursos presidenciais no sentido de fortalecer essas práticas.
Operações militares em favelas e territórios populares estão se disseminando como um padrão de intervenção das polícias militares em vários Estados da federação, mas o caso do Rio de Janeiro aparece como o principal paradigma. Aqui, a violação de direitos fundamentais durante as intervenções policiais não é excepcional, sendo rotina nas favelas e periferias do Estado a invasão de domicílio, destruição de patrimônio, agressões físicas e verbais, assédio, mortes e execuções sumárias. Sempre posicionado dentre os Estados com maior percentual de mortes decorrentes de intervenção policial na relação com as mortes intencionais violentas, o impacto da atuação das polícias no Rio de Janeiro tem reflexos nacionais, ocupando especial espaço na mídia e nos debates acadêmicos e jurídicos.
Militarização e milicialização dos territórios e instituições públicas
A militarização é um traço estrutural da organização das polícias Militar e Civil, que operam com mecanismos seletivos, reproduzindo e promovendo desigualdades sociais e raciais. De fato, a militarização é um fenômeno de múltiplas dimensões, e é possível observá-lo também em sua dimensão político-institucional. Entre as eleições de 2014 e 2018, o número de representantes eleitos para o Legislativo oriundos das Forças Armadas, Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros, considerando as Assembleias Legislativas, a Câmara dos Deputados e o Senado, saltou de 18 para 73, segundo levantamento do portal G1, com base nos dados do TSE[2]. Isso significa que o número de policiais e militares eleitos foi quatro vezes maior do que nas eleições precedentes.
A militarização também se expressa na agenda política. Tomando a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) como referência, pode-se identificar a tramitação de diversos projetos de lei que buscam garantir a disseminação da militarização pela estrutura estatal, sobretudo na área da segurança. Ao mesmo tempo, e como parte desse processo de militarização, a diminuição do controle externo da atividade policial possibilita maior liberdade aos batalhões de Polícia Militar. Como resultado disso, as incursões em morros e favelas no Rio de Janeiro não atendem a nenhum planejamento amplo de Segurança Pública, se orientando tão somente pela vontade de ação de cada batalhão. O resultado é a discricionariedade das incursões policiais justificadas pelo “combate ao inimigo” incerto, sem localidade pré-definida e não dotado de direitos.
A ausência de ações coordenadas e informadas do Estado também interfere na disputa do controle territorial exercido por grupos armados, como facções e milícias. Mais precisamente, a ação da polícia pode fortalecer militarmente um grupo em detrimento de outro, intervindo, mesmo que não diretamente, no confronto existente.
Por sua vez, o Mapa dos Grupos Armados no Rio de Janeiro[3] revelou que os grupos milicianos atualmente controlam 56,8% do território da capital fluminense, exercendo controle sobre a vida de uma população de aproximadamente 2.178.620 pessoas (33,9% da população total). Ao mesmo tempo, são essas áreas que apresentam menor número de embates com as forças policiais. Ou seja, o que se revela é que a falta de uma estrutura coesa de segurança pública no Estado coopera para ações pouco transparentes daqueles que possuem poder de repressão e grande poderio bélico.
Apesar de não se apresentarem como um grupo homogêneo – diferenciando-se por suas ligações e influências políticas e institucionais –, as milícias são uma ameaça à democracia em todas as suas dimensões, pois são parte do próprio Estado. O cenário atual da política brasileira ainda conta com a presença massiva de membros do Exército Brasileiro em espaços decisórios. A militarização das instituições dentro do contexto de anomalia política que vivemos modela, justifica e fortalece a barbárie, pois a partir dela deriva o militarismo, uma anomalia que está no cerne do próprio processo de milicialização referido.
O que fazer?
O crescente processo de militarização e milicialização das cidades tem fortes impactos sobre as possibilidades de exercício do direito à cidade. Em primeiro lugar, podemos dizer que estamos diante de processos que bloqueiam ou dificultam a constituição de agentes e sujeitos coletivos que expressem a agenda do direito à cidade, afetando o exercício da cidadania e os ativismos nos territórios populares. Em segundo lugar, a militarização e milicialização também promovem fortes obstáculos às possibilidades de apropriação da cidade por parte dos moradores estigmatizados e criminalizados por suas ações. Por fim, estamos diante da difusão de padrões de coesão social fundados na intolerância, na violência e no controle armado que constituem em grave ameaça às liberdades individuais e coletivas, bem como às possibilidades de constituição de outras solidariedades fundadas no afeto, na democracia, na tolerância e na justiça social.
A partir de todo o exposto, é fundamental o fortalecimento das ações da sociedade civil, e mesmo de agentes públicos, em torno das denúncias e enfrentamentos de medidas que aprofundem o cenário crescente de militarização/milicialização experimentado em nosso país. Como pauta de ação, é fundamental:
Ampliar o debate social e institucional sobre a política nacional de inteligência e segurança pública;
Defender a elaboração de planos estaduais de redução da letalidade policial;
Debater e propor políticas e medidas visando a desmilitarização e ao maior controle das ações das polícias militar e civil;
Sustentar a defesa do fim das operações militares como dispositivo de rotina do policiamento nos territórios de favela;
Promover canais de controle social e de gestão democrática das políticas federal e estaduais de segurança pública;
Adotar políticas de restrição à comercialização e uso de armas letais; e
Promover e instituir mecanismos de gestão comunitária dos territórios populares para estimular padrões de solidariedade local fundados na tolerância, na paz, na democracia e na justiça social.
*Texto escrito por Daniel Hirata (UFF), Jordana Almeida (IPPUR/UFRJ), Lia de Mattos Rocha (UERJ), Maria Júlia Miranda (Defensoria Pública RJ), Orlando dos Santos Junior (INCT Observatório das Metrópoles, IPPUR/UFRJ), Tarcyla Fidalgo Ribeiro (INCT Observatório das Metrópoles, IPPUR/UFRJ), Utanaan Reis Barbosa Filho (INCT Observatório das Metrópoles, IPPUR/UFRJ), Priscila Coli (University of California Berkeley) e Lenin Pires (LAESP/UFF).
[1] Cf. GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar. São Paulo: Boitempo, 2016.
[2] Cf. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/08/numero-de-policiais-e-militares-no-legislativo-e-quatro-vezes-maior-do-que-o-de-2014.ghtml, acessado em julho de 2022.
[3] Ver https://geni.uff.br/2021/03/26/apresentacao-ao-mapa-dos-grupos-armados-do-rio-de-janeiro/