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Claúdio Salles

Claúdio Salles

Acontece no próximo dia 7 de Março a palestra “Estudos Contemporâneos Sobre o Campo Penitenciário na Argentina e seu Impacto na Geração de Políticas Públicas” da Prof. Dr. Natalia Ojeda (EIDAES/UNSAM – CONICET, Argentina).

*O evento acontece na terça-feira, dia 07/03/23 às 10h, de forma híbrida: Presencialmente na sede do NEPEAC/LEMI, localizado na Rua José Clemente, 73, 9 andar, Centro, Niterói – RJ. E com transmissão simultânea, ao vivo, pelo canal do InEAC no YouTube: https://www.youtube.com/@InEAC

A palestra está no âmbito das atividades do projeto de pesquisa “Assimetrias Federativas em Tempos de COVID-19: Diagnósticos e Impactos da Recomendação 62 do Conselho Nacional de Justiça nos Estados do Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul” do Edital 12/2021 CAPES IMPACTOS DA PANDEMIA, articulado entre o PPGA/UFF, PPGJS/UFF, PPGCRim/PUCRS, PPGS/UFGD e PPGD/UVA.

 

Publicado no site https://www.jota.info/ , Disponibilizamos aqui  o artigo "Democracia e segurança pública: Segurança deixa de ser um direito quando é tratada como um assunto corporativo para a tutela",  escrito pelos pesquisadores Pedro Heitor Barros Geraldo (Professor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC-UFF), do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito) e Leticia Fonseca Paiva Delgado (Mestre em ciências sociais (UFJF) e doutora em sociologia e direito (UFF). Atualmente é secretária de Segurança Urbana e Cidadania de Juiz de Fora -MG)

Para ler confira abaixo ou acesse o link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/democracia-e-seguranca-publica-17022023

 

JUDICIÁRIO E SOCIEDADE

Democracia e segurança pública

Segurança deixa de ser um direito quando é tratada como um assunto corporativo para a tutela

 

LETÍCIA FONSECA PAIVA DELGADO
E
PEDRO HEITOR BARROS GERALDO

 

2023 traz consigo a expectativa de um trabalho incansável e comprometido do governo federal para construir e implementar agendas de políticas públicas capazes de garantir a plenitude e a concretude dos direitos sociais, a promoção da cidadania e do bem-estar social. Na segurança pública, esta expectativa vem ladeada de uma desconfiança sobre a existência de condições políticas, sociais e institucionais para a construção de uma agenda que se alinhe com os valores republicanos e democráticos.

Essa desconfiança não é despropositada e se justifica pelo fato de que embora a Constituição Federal de 1988 tenha avançado, e muito, na democratização do acesso a alguns direitos sociais, como saúde, assistência e educação, o debate na segurança pública pouco avançou e demonstrou uma baixíssima capacidade de romper com a vocação colonial, escravocrata, inquisitória e tutelar das instituições de segurança pública e justiça fundadas em concepções dogmático-repressivas amplamente difundidas nas faculdades de direito e a tradição militarista orientada para a eliminação do inimigo presentes nas formações das polícias militares.

No Brasil, historicamente, a segurança pública e seu aparato institucional foi orientada para a lógica do controle social e do uso da violência como método de ação para gestão dos inimigos, dos indesejáveis e dos marginalizados. A primazia do discurso repressivo-punitivo acabou por delegar às corporações policiais o monopólio sobre a legitimidade de dizer segurança pública no país, se demonstrou, sobretudo, incapaz de garantir a participação social no debate.


A Constituição Federal de 1988 foi também aplaudida pela institucionalização de espaços para o desenvolvimento de práticas capazes de transformar a participação em um valor da política brasileira e, por consequência, consagrar o direito da sociedade de articular com os órgãos do governo a formulação, implementação e acompanhamento das políticas públicas. Assim, a União, os estados e os municípios deveriam fomentar, institucionalizar e garantir a existência de espaços formais de participação social, com destaque para os conselhos de direitos e as conferências. Neste aspecto, comparativamente, temos o Sistema Único de Saúde (SUS), embora mais consolidado, quando do advento da Constituição Federal, o que acelerou os processos de universalização, descentralização, articulação e organização de uma estrutura participativa nos entes federados. Por esta razão, a sociedade desenvolveu uma cultura da participação nesta área.

No entanto, a Constituição não estabeleceu dispositivos e espaços de participação em diversos campos das políticas públicas. Os constituintes talharam a redação do artigo 144 da Constituição Federal sem prever a participação da sociedade como uma diretriz para orientar essas políticas.

A ausência de participação social na construção e fiscalização das políticas públicas de segurança tem, ainda, um efeito perverso: o de não reconhecer a segurança pública como um direito fundamental. Isto impede que os grupos vulnerabilizados, mais atingidos pelas variadas formas de violência, intervenham de forma deliberativa na construção das políticas de segurança. Desta forma, o direito à segurança pública se distribui desigualmente em nossa sociedade e se mostra incapaz de enfrentar de modo articulado a violência institucional em sua vocação tutelar.

Como exemplo, ao longo de 34 anos de vigência da Constituição Federal, foram realizadas 16 conferências nacionais na área da saúde. Na segurança pública, por sua vez, a primeira, e única, ocorreu no ano de 2009, durante a segunda gestão do presidente Lula. Em relação à existência de conselhos municipais, pesquisa feita pelo IBGE referente ao ano de 2018 aponta que, enquanto 99,9% dos municípios brasileiros possuíam conselho municipal de saúde, a existência de órgão colegiado na área de segurança não superou 15% dos municípios brasileiros.

Os sistemas de políticas públicas, como o SUS e o SUAS, são estruturas de governança capazes de estimular a cooperação interfederativa, a participação da sociedade civil na construção e controle das políticas, além de serem instrumentos para a garantia de que a descentralização – um dos principais motes da organização política e administrativa do país – alcance os municípios. Mas a segurança deixa de ser um direito quando é tratada como um assunto corporativo para a tutela.

Os municípios são atores centrais no processo de democratização da segurança pública. Pois enquanto um direito, a participação do poder local é valorizada ao mesmo tempo em que se reconhece o território como uma variável importante a ser considerada na implementação de políticas públicas de segurança. Sendo a cidade o lugar de convivência e experiência dos problemas relacionados à criminalidade, o município deve ser percebido como um espaço legítimo de definição de estratégias na área, podendo abrir espaços para a introdução de novos conceitos, novas práticas, construídas com maior participação dos interessados. É um processo cujo pressuposto básico é a interação do poder público com a sociedade e o reconhecimento de que, embora as normas sejam federais e as polícias, regra geral, estaduais, os problemas relacionados à violência têm feição local.

A experiência da construção da agenda de segurança pública em Juiz de Fora é exemplar em relação à mobilização de seus cidadãos na construção de uma agenda pública por meio da Conferência Municipal de Segurança Pública, institucionalização do seu Conselho, processos que culminaram na promulgação de uma lei municipal que instituiu o Plano Municipal de Segurança e no reforço da Secretaria de Segurança Urbana e Cidadania por todos esses instrumentos jurídicos-institucionais de maior legitimidade para a ação. O papel de políticos profissionais conscientes desta agenda se torna um instrumento estratégico e coletivamente relevante para organizar o campo de discussões que compõe a segurança pública (DELGADO, 2021).

Conhecer experiências como essas permite desenvolver um conhecimento sobre a participação, mas também para a participação dos cidadãos. A segurança pública é um campo com muitos saberes em competição, mas também com muita pesquisa científica sobre a segurança pública no país no campo das ciências sociais fomentado por instituições de ciência, tecnologia e inovação; e desenvolvido em cursos multidisciplinares como o Bacharelado e o Tecnólogo em Segurança Pública e Social da Universidade Federal Fluminense (KANT DE LIMA; GERALDO, 2022) e também fomentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública por meio de seus anuários e pesquisas, por exemplo.

Construir uma agenda de segurança pública substancialmente republicana e democrática é o maior desafio. E não há como fazê-lo sem valorizar o ponto de vista da sociedade sobre o papel e os limites de atuação das instituições de segurança pública. No entanto, em um campo tradicionalmente avesso à participação social é urgente compreendermos que o cidadão é o verdadeiro destinatário do direito à segurança e, portanto, não deve ser visto como causa do problema e sim como parte integrante da solução. Democratizar é urgente, principalmente a segurança pública.

DELGADO, L. F. P. Formação da agenda municipal em Segurança Pública: A emergência das políticas e dos dispositivos de Segurança Pública em Juiz de Fora. Tese de Doutorado – Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2021.

KANT DE LIMA, R.; GERALDO, P. H. B. Conflitos em formação: a experiência da convivência civil-militar no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social a distância da Universidade Federal Fluminense. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 16, n. 1, p. 30–49, 27 jan. 2022.

LETÍCIA FONSECA PAIVA DELGADO – Mestre em ciências sociais (UFJF) e doutora em sociologia e direito (UFF). Atualmente é secretária de Segurança Urbana e Cidadania de Juiz de Fora (MG)
PEDRO HEITOR BARROS GERALDO – Professor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC-UFF), do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito.

 

O site do INCT INEAC disponibiliza aqui o artigo O "OUTRO" REVERSO: ETNOGRAFIA, RELAÇÕES DE PODER E PROCESSOS DE PRODUÇÃO DA VERDADE do antropólogo Edilson Márcio Almeida da Silva (UFF), pesquisador vinculado ao INCT/INEAC e do sociólogo Emanuel Freitas da Silva, Universidade Estadual do Ceará (UECE). O artigo foi publicado na  Mediações - Revista de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina. 

Crítico da imagem do pesquisador de campo como um ser dotado de extraordinária empatia pelos nativos, Clifford Geertz afirmava que a relação entre o antropólogo e as pessoas que estuda é inevitavelmente assimétrica, uma vez que as duas partes chegam ao encontro com origens, expectativas e propósitos diferentes. Com base neste pressuposto, o artigo discute os mútuos esforços de apropriação utilitária que, eventualmente, etnógrafo e nativo empreendem entre si. Para tanto, retoma reminiscências de uma pesquisa realizada entre católicos carismáticos, apontando como seus representantes buscavam impor sentidos ao trabalho etnográfico e, consequentemente, exercer algum nível de controle sobre os seus resultados. Antes, porém, passa em revista marcos históricos da pesquisa etnográfica e discorre sobre as polêmicas técnicas de pesquisa empregadas pelo antropólogo Marcel Griaule a fim de obter controle absoluto sobre seus informantes durante o processo etnográfico de produção da verdade.  

 

Para ler acesse o link https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/mediacoes/article/view/46584 ou faça o download do PDF abaixo em anexo . 

 

Nesta segunda-feira, dia 06 de fevereiro, às 17h, dois membros do INCT/INEAC, os antropólogos Antonio Carlos de Souza Lima (UFRJ/PPGA-UFF/INCT-InEAC) e Paloma Monteiro (UFF/INCT-InEAC) são os convidados do programa Diálogos Conecta da TV 247, para discutir o tema O Futuro dos Povos Indígenas na Reconstrução Democrática no Brasil Pós-Bolsonarismo, com transmissão ao vivo no canal da TV 247 no Youtube: https://www.youtube.com/@brasil247 

O site do INCT INEAC disponibiliza aqui o artigo "As desigualdades brasileiras e seu contexto jurídico/judiciário: novos tempos?", de Roberto Kant de Lima e Bárbara Lupetti Baptista,  ambos pesquisadores vinculados ao INCT/INEAC . O artigo foi publicado nessa sexta 20 de abril no site BRASIL 247 .

Para ler acesse o link https://www.brasil247.com/ideias/as-desigualdades-brasileiras-e-seu-contexto-juridico-judiciario-novos-tempos ou leia abaixo.

 

As desigualdades brasileiras e seu contexto jurídico/judiciário: novos tempos?

Roberto Kant de Lima e Bárbara Lupetti Baptista, de InEAC, para o 247

 

 

 

Quarta, 18 Janeiro 2023 14:38

A PEDAGOGIA DA BADERNA

Disponibilizamos aqui no site o artigo "A PEDAGOGIA DA BADERNA", do sociólogo e Professor titular da Escola de Direito da PUCRS, Rodrigo Ghiringheli de Azevedo, também pesquisador vinculado ao INCT INEAC .

O texto foi originalmente publicado no endereço  https://fontesegura.forumseguranca.org.br/a-pedagogia-da-baderna/  do FONTE SEGURA -  abrigado no site do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, pois o Fonte é um dos vários produtos do FBSP, como o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, o Atlas da Violência (junto com o IPEA), a Revista Brasileira de Segurança Pública, o Monitor da Violência (junto com o G1), o Prêmio de Práticas Inovadoras, o Encontro do FBSP e as pesquisas sobre temas específicos.

 

A PEDAGOGIA DA BADERNA

NOS MARES AGITADOS PELA ASCENSÃO DO FASCISMO E PELA CRISE DOS IDEAIS CIVILIZATÓRIOS, NADA MAIS NECESSÁRIO DO QUE AMARRAR-NOS AOS MASTROS DA INSTITUCIONALIDADE DEMOCRÁTICA E AFIRMAR MAIS UMA VEZ: NÃO PASSARÃO!

RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO

Sociólogo, Professor da Escola de Direito da PUCRS, membro do INCT-InEAC e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

Se a posse para o terceiro mandato de Luis Inácio Lula da Silva representou simbolicamente o início de um processo de reconstrução nacional, pautado pela diversidade e a tentativa de enfrentamento das desigualdades estruturais que caracterizam o país, o domingo seguinte, o dia 8 de janeiro, foi a encenação do caos, da desordem e da destruição das instituições, da cultura e da democracia. Agora é preciso perguntar: quem fez isso, com qual propósito, em nome de qual objetivo, para que se possam apurar as responsabilidades políticas e as responsabilidades criminais do que ocorreu.

A construção do 8 de janeiro foi um processo que se deu ao longo não de dias ou de semanas, mas de anos. Figuras como Olavo de Carvalho, jornalistas obscuros e integrantes das castas mais altas da burocracia do Estado, como juízes, promotores e oficiais das Forças Armadas, cumpriram papel fundamental para a construção da narrativa iliberal [1], ganhando corações e mentes para a cruzada contra instituições que estariam corroídas pelos males da modernidade e vulneráveis à ameaça comunista.

Surgida no período dos governos Lula e Dilma, essa vertente ideológica se conecta, de um lado, com uma onda mundial de reacionarismo antimoderno, que leva ao poder autocratas interessados em minar as bases da democracia liberal, acabando com o equilíbrio entre os poderes, a liberdade de imprensa e a alternância no poder, com o apoio militante de economistas neoliberais. De outro, com vertentes tradicionais do pensamento político brasileiro, como o integralismo fascista e o positivismo militarista presente nas Forças Armadas desde sempre.

Por injunções históricas e senso de oportunidade aguçado, Jair Bolsonaro se tornou o representante deste movimento no Brasil, dando a ele características ainda mais sombrias, como a associação com milícias urbanas, policiais corruptos e violentos e produtores rurais e garimpeiros interessados no desmatamento e na rapina de áreas indígenas e de preservação ambiental. O que melhor representa a heterogeneidade destes apoios é a defesa do armamento da população civil, caminho para a dilapidação da ideia de comunidade e a afirmação de uma ideia de liberdade elevada a princípio absoluto e inegociável.

A transformação desse conjunto de questões em ideário e movimento se deu com a utilização das mídias sociais, com cursos online, produtoras de conteúdo audiovisual, comunicadores monetizados pela combinação de algoritmos com radicalização política, tudo potencializado com a constituição do famoso “gabinete do ódio”. Acrescente-se a tudo isso o papel da imensa rede de templos neopentecostais nos quais a militância política de extrema direita se tornou prioridade, demonizando a esquerda e consolidando a “agenda de costumes”, e já temos a conformação de um campo capaz de influenciar milhões de eleitores, e até de mobilizar alguns milhares para se manterem atuantes, mesmo após a derrota eleitoral, acampados em frente a quartéis amistosos e prontos para uma cruzada contra o Tribunal Eleitoral, o STF, o novo Presidente, o Congresso Nacional e a imprensa livre, todos “contaminados” pelos vírus da corrupção e do comunismo.

Bolsonaro apostou desde sempre na narrativa da fraude eleitoral, que permitiria virar a mesa em caso de derrota. Mas apostou também em ganhar a eleição, aparelhando o Estado (vide Polícia Rodoviária Federal), comprando votos (auxílio emergencial, redução do preço dos combustíveis, auxílios direcionados a caminhoneiros etc.), e disseminando mentiras e desinformação via redes sociais e aplicativos de mensagem.

O dia 8 de janeiro, que irá para a História como o dia da infâmia (ou a revolta dos manés) mostrou até onde pode chegar a radicalização e a barbárie. Sobressaíram entre os até agora fichados pela polícia homens e mulheres de meia-idade, parte deles com condenações criminais, militares reformados e policiais aposentados, trabalhadores autônomos de áreas rurais, pequenos empresários, etc.. Ou seja, representantes de um lumpenbolsonarismo com muito pouco a perder, e muito a ganhar em caso de uma sublevação bem-sucedida.

Se mais nenhuma alternativa teve qualquer viabilidade no processo eleitoral, apesar dos vários chamamentos por uma “Terceira Via”, e Lula se consolidou e venceu apesar de tudo, é porque era o único que podia contrapor às narrativas do ódio e do individualismo bolsonarista a narrativa de uma vida pública: o nordestino pobre que foge da miséria e faz a vida em São Paulo, ingressa na militância sindical e assume a liderança na construção do maior partido de esquerda da América Latina, chega por duas vezes à Presidência, com governos de coalizão marcados pelo crescimento econômico e a distribuição de renda, elege a sucessora, depois impedida por um golpe parlamentar, é acusado, julgado e condenado por um juiz parcial, vai preso sem provas e sem trânsito em julgado, fica um ano na prisão e é liberado pelo reconhecimento na nulidade do processo. As críticas e dificuldades das gestões petistas não foram suficientes para desmerecer uma trajetória como essa, e em torno dela se construiu a grande frente democrática, com partidos e sociedade civil, para enfrentar a deriva autoritária.

Necessário destacar o papel do Tribunal Superior Eleitoral, e especialmente de seu presidente, ministro Alexandre de Moraes, tanto na viabilização do processo eleitoral regular, derrubando a desinformação, sempre que identificada, a pedido dos partidos de oposição, monitorando e punindo as lideranças da desinformação nas redes,  garantindo uma resposta rápida e eficaz para a redução dos danos dos métodos ilícitos de campanha. E depois da eleição, viabilizando a posse dos eleitos e rechaçando a chicana de pedidos como o do PL, para a invalidação de milhares de urnas eletrônicas, sem qualquer prova ou critério. Fundamentando as decisões, a tese da democracia militante para o enfrentamento da ameaça autoritária.

Depois do 8 de janeiro, foi graças à intervenção federal na segurança do DF e às decisões do ministro Alexandre de Moraes que os baderneiros golpistas foram presos e passaram a responder processo criminal, entre os quais o ex-ministro da justiça de Bolsonaro, e então secretário de segurança do DF, o delegado de polícia federal Anderson Torres, que depois se veio a saber, graças ao deferimento do pedido de busca e apreensão da Polícia Federal, que guardava em sua casa a minuta da institucionalização do golpe, pronta para a assinatura do agora ex-presidente.

A resposta à tentativa de golpe de Estado, cada vez mais caracterizada, porque envolvia não apenas a destruição de prédios em Brasília, mas a inviabilização do governo eleito, envolve questões de curto, médio e longo prazo, e a ação dos três poderes e da sociedade civil. Mas há um caminho central em torno do qual a resposta terá que ser dada: instituições funcionando e cumprindo o seu papel, sistema de freios e contrapesos, autonomia dos mecanismos de controle, recomposição de protocolos e cadeias de comando nas polícias militares e nas Forças Armadas. Não teremos uma ampla reforma ou uma refundação das polícias ou do Exército, e sim uma concertação em torno de padrões profissionais e burocráticos de funcionamento em democracia. Não há outro caminho, apesar das ilusões voluntaristas que sempre surgem nesses contextos. Não serão alteradas mentalidades arraigadas. O que se espera é que condutas de sublevação e apoio à desordem dentro das forças de segurança e defesa sejam sancionadas, dentro da lei.

Para tanto, importante destacar o papel que vem cumprindo o ministro Flávio Dino, que, se de um lado foi iludido e sabotado pela Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal nos atos do dia 8 de janeiro, de outro agiu rapidamente para propor ao presidente a intervenção federal poucas horas depois do início da baderna, e desde então vem atuando com equilíbrio e moderação na condução da crise. A escolha política da manutenção da Justiça e Segurança Pública em uma mesma pasta ganhou maior solidez, como bem argumenta Fábio Sá e Silva em recente publicação, não por ser a melhor opção técnica, mas pela importância política de um ministério da Justiça robusto para a condução dos primeiros meses de governo em terreno minado pelo golpismo e a contaminação das polícias.

No momento em que as práticas de subversão da verdade permitem a um ex-presidente fomentar o golpe nas redes e declarar que nada tem a ver com isso na imprensa, em que a tradição de criminalização da vítima é atualizada por um governador de estado que insinua que o governo federal deixou de agir para evitar a baderna e utilizá-la em benefício próprio, em que “garantistas de ocasião” se apresentam em artigos na imprensa para oferecer seus serviços jurídicos aos golpistas ameaçados pela prisão e a responsabilização criminal, e em que as redes bolsonaristas se dividem entre o aplauso envergonhado à baderna e a culpabilização de “esquerdistas infiltrados”, é preciso renovar o compromisso democrático, com a defesa do devido processo contra os golpistas e da recomposição das relações institucionais entre as forças de segurança e defesa e o governo civil. Afinal, nos mares agitados pelo ascenso do fascismo e pela crise dos ideais civilizatórios, nada mais necessário do que amarrar-nos aos mastros da institucionalidade democrática e afirmar mais uma vez: não passarão!

[1] Democracia iliberal, democracia de baixa intensidade,  democratura ou democracia guiada, é um sistema de governo no qual, embora eleições ocorram, os mecanismos de controle sobre as atividades daqueles que exercem poder executivo são minados, por conta da falta de liberdades civis e da quebra do equilíbrio entre os Poderes. Em um discurso de 2014, após a reeleição, Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, descreveu o futuro do seu país como um “Estado iliberal”. Na sua interpretação, o “Estado iliberal” não rejeita os valores da democracia liberal, mas não os adota como elemento central da organização do Estado.

Foto de Marcelo Camargo/Agência Brasil

 

Disponibilizamos aqui em nosso site o artigo "Mercados Fragmentados em territórios armados: tendências na administração de conflitos na Região Metropolitana do Rio de Janeiro?" de autoria dos antropólogos Lenin Pires e Roberto Kant de Lima, ambos pesquisadores vinculados ao INCT/INEAC . O artigo foi publicado originalmente na Revista digital Avá 38. Junio de 2021 - https://www.ava.unam.edu.ar/ .

MERCADOS FRAGMENTADOS EM TERRITÓRIOS ARMADOS: TENDÊNCIAS NA ADMINISTRAÇÃO DE CONFLITOS NA REGIÃO METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO?

Lenin Pires & Roberto Kant de Lima

O presente artigo discute o entramado existente entre as disputas protagonizadas por agências estatais, paraestatais e organizações criminosas no domínio armado de determinados territórios. Nele se discute o papel da violência, em particular, aquelas patrocinadas por agências de segurança pública, na configuração de mercados ilegais e práticas de extorsão que ancoram variados ilegalizamos. Argumenta-se, com base em dados de etnografias, que em tais mercados se desenvolvem abrigando lógicas que se coadunam com o sistema de crenças excludentes que dá forma e é promovido pelo que chamaremos de “Direito brasileiro”. Palavras chave: Mercados Ilegais; Conflitos; Segurança Pública; Desigualdade Jurídica.

 

Para ler o artigo na íntegra faça download do arquivo PDF , abaixo em anexo . 

O site do INCT INEAC disponibiliza aqui o artigo NOTAS SOBRE JUSTIÇA, RECONHECIMENTO E SUBJETIVAÇÃO NO CONTEXTO DE JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL escrito por Miguel dos Santos Filho e Daniel Simião (INCT-INEAC), ambos da Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil . O artigo foi publicado originalmente na revista VIVÊNCIA , de antropologia.

RESUMO

Esse artigo se debruça sobre a adoção e a aplicação da Lei n. 11.340/06 (Lei Maria da Penha) para refletir sobre algumas tensões nas dinâmicas entre as partes em conflito e os agentes das instituições de justiça. Apontamos que essas tensões se relacionam ao funcionamento idiossincrático do sistema de justiça brasileiro e à sua dificuldade em perceber a construção relacional dos conflitos de violência doméstica. Sugerimos no texto as potencialidades que essas dinâmicas têm para a composição de processos de subjetivação das partes. Essa discussão é fruto de entrevistas e de uma revisão de etnografias que elencam diferentes aspectos e situações empíricas de Varas e Juizados, as quais analisamos a partir das categorias de reconhecimento, judicialização e subjetivação.

Para ler a íntegra do artigo faça o download do PDF abaixo em anexo . 

 

Disponibilizamos em nosso site o artigo UNIVERSIDADE DA POLÍCIA OU POLÍCIA DA UNIVERSIDADE? escrito pela pesquisadora Páris Borges Barbosa (Policial rodoviária federal, mestre e doutoranda do PPGSD/UFF;  pesquisadora do INCT/InEAC e da Fundação Perseu Abramo e ativista da RENOSP LGBTQIA+) . O artigo foi publicado no site Fonte Segura (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). https://fontesegura.forumseguranca.org.br/universidade-da-policia-ou-policia-da-universidade/?utm_campaign=Fonte+Segura+167&utm_content=Universidade+da+Pol%C3%ADcia+ou+Pol%C3%ADcia+da+Universidade%3F+-+Fonte+Segura+%281%29&utm_medium=email&utm_source=EmailMarketing&utm_term=Fonte+Segura+-+edi%C3%A7%C3%A3o+167+-+cadastrados

Confira o artigo abaixo:

UNIVERSIDADE DA POLÍCIA OU POLÍCIA DA UNIVERSIDADE?

CHAMO A ATENÇÃO PARA QUE NÃO LIMITEMOS A CRÍTICA DOS ACONTECIMENTOS RECENTES ENVOLVENDO A PRF A UMA “MÁ GESTÃO”. SEJA UMA GESTÃO INCOMPETENTE OU MESMO PERVERSA, ELA SOMENTE CONSEGUIRÁ CAPTURAR UMA INSTITUIÇÃO QUANDO NÃO HOUVER MECANISMOS ADEQUADOS PARA IMPEDIR ESSA CAPTURA

Em 2019, por meio de uma mera alteração de nomenclatura, o Decreto nº 9.662 transformou a Academia Nacional da Polícia Rodoviária Federal (ANPRF) na Universidade Corporativa da Polícia Rodoviária Federal, ou, simplesmente, UniPRF. A autoproclamada universidade foi festejada pela alta gestão da PRF como um avanço na qualidade da formação e aperfeiçoamento dos policiais. Mas assim como uma cadeira não deixa de ser uma cadeira apenas porque passamos a chamá-la de mesa, a UniPRF também não experimentou mudanças ontológicas, em sua essência, apenas por trocar o letreiro que ostenta na entrada do prédio em que está sediada. Talvez esta afirmação não seja precisa. Afinal, ao longo dos últimos quatro anos, houve sim mudanças importantes nos métodos de ensino utilizados para formar e aperfeiçoar os policiais, no caso, retrocessos importantes.

A criação de uma Universidade dentro da estrutura organizacional de uma força policial é uma manifestação de fenômeno apontado por Renato Sérgio de Lima, no qual se tenta “reivindicar o monopólio policial do ensino, da pesquisa e da discussão sobre segurança pública.” Policiais que veem com desprezo e desconfiança a produção científica de conhecimento a respeito de sua área de atuação profissional ambicionam poder diplomar seus próprios “cientistas” com títulos de Mestres e Doutores e assim disputar a autoridade sobre o debate acerca da segurança pública. Em discursos proferidos pelo Diretor Geral da PRF, Silvinei Vasques, é possível escutá-lo dizer que: “Precisamos combater o discurso ideológico sobre segurança pública que vem das Universidades”; e que “Quem entende de segurança pública é o policial!”. Seguindo esse raciocínio do Diretor Geral, ouvimos com frequência nas salas de aula da UniPRF instrutores se referirem a uma enorme gama de cientistas que estudam fenômenos relacionados a mercados ilícitos, a violência, as relações sociais e institucionais, a seletividade policial entre outros temas como “especialistas em segurança pública”, expressão enunciada sempre em tom de ojeriza e expressões faciais de repulsa.

O que se viu acontecer de fato após a criação da UniPRF foi uma militarização do ensino. No currículo pedagógico, disciplinas como “direitos humanos”, “relações humanas” e mesmo “ética” foram totalmente suprimidas ou substituídas por algumas poucas palestras ofertadas na modalidade de ensino a distância. A supressão desses conteúdos foi justificada com o argumento de que estariam presentes de forma transdisciplinar. Porém, é suficiente acompanhar algumas aulas para notar que o próprio vocabulário dos instrutores denuncia o oposto. Termos reificados como “bandido”, “mala” e “vagabundo” circulam livremente, ditos também por discentes sem que haja problematização por parte dos docentes. Por outro lado, a disciplina “Noções de Comando e Controle” chama a atenção para a forma como ensina os alunos a marcharem em forma e se manterem alinhados em posição de sentido. A justificativa dada para a existência dessa disciplina é a necessidade do aluno aprender a ter “postura de policial” e “voz de comando”, que seria uma forma de controlar as impressões que seu corpo transmite. Acredito porém que é nos momentos de convívio entre as aulas que o processo de militarização do ensino fica mais evidente. Várias vezes no dia, o curso inteiro entra em formação para receber informações da coordenação. Os alunos estão sempre meticulosamente uniformizados, inclusive nos cabelos, raspados com máquina nos homens e presos com redes e coques nas mulheres. O deslocamento das turmas entre os locais de aula é feito sempre correndo em formação de tropa, entoando versos que são cantados pelo “xerife” e repetidos em uníssono pelos demais sobre honra, bravura, força, superação, orgulho, patriotismo, fé e outros valores. Falhas e gafes em relação aos procedimentos marciais são “pagas” com flexões de braço.

Apesar de se autointitular “Universidade”, a UniPRF pode, com ressalvas, ser definida hoje como uma Escola de Governo. Faço ressalvas, pois não existe uma lei ou decreto próprio que assim a defina e portanto seu status é sujeito a questionamento. Para garantir o reconhecimento da UniPRF como um instituto de Ciência e Tecnologia, chegou-se a propor o envio de uma comitiva de policiais uniformizados e armados para a porta do CNPq. A fim de alcançar o almejado reconhecimento do MEC, e atender ao princípio da indissociabilidade do ensino da pesquisa e da extensão, foi criada na UniPRF uma Divisão de Pesquisa Desenvolvimento e Inovação (DPDI) no final do ano de 2020, da qual fui chefe substituta. A nova divisão de pesquisa seria a responsável por publicar uma revista científica semestral, organizar grupos de pesquisa, planejar eventos acadêmicos como congressos e seminários, firmar parcerias com universidades públicas para a realização de pesquisas de interesse mútuo, entre outras atribuições semelhantes a de uma Pró-Reitoria de Pesquisa tal qual em uma Universidade Pública. Não era possível, contudo, contornar as contradições irreconciliáveis entre o desejo de controlar o debate sobre segurança pública e ter no seio da própria instituição uma divisão dedicada à legítima produção científica. A equipe editorial da revista científica logo percebeu que seu papel era somente teatral e que as decisões editoriais seriam tomadas pela Direção Geral e pela Coordenação da UniPRF. Assim, artigos de cientistas renomados nas áreas da Antropologia e da Saúde foram rejeitados e a revista inteira foi cancelada antes de sua primeira edição. A intenção era publicar apenas artigos de policiais. Da mesma forma, foram cancelados convites para palestrantes externos, que iriam participar de seminário na UniPRF, na véspera do evento, causando prejuízos aos cofres públicos com passagens aéreas não utilizadas. Um dos episódios mais explícitos da cooptação do discurso científico na UniPRF se deu quando o Coordenador Geral, ao ponderar sobre a autorização para executar uma pesquisa referente à saúde mental dos alunos, indagou desconfiado à equipe da DPDI o que se pretendia descobrir com aquilo, ao qual não coube outra resposta: somente realizando a pesquisa para saber!

Em que pese todo o exposto, chamo a atenção para que não limitemos a crítica dos acontecimentos recentes envolvendo a PRF a uma “má gestão”. Seja uma gestão incompetente ou mesmo perversa, ela somente conseguirá capturar uma instituição quando não há mecanismos adequados para impedir essa captura. No caso da UniPRF, ficou evidente que o seu desenho institucional concentrou poderes nas mãos da alta gestão, permitindo que pessoas estranhas aos campos do ensino e da pesquisa tomassem decisões de cunho científico e pedagógico. Talvez um modo de impedir que algo assim aconteça novamente seria elaborar para a UniPRF um regimento interno que garanta sua autonomia didático-científica e crie um Conselho de Ensino responsável por estabelecer diretrizes pedagógicas, deixando para o Coordenador ou Diretor da UniPRF apenas a gestão administrativa burocrática. Seria interessante reservar assentos nesse Conselho de Ensino  para docentes e pesquisadores externos à PRF, indicados por instituições dedicadas ao estudo da segurança pública, como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

A distinção entre Instituição de Estado x Instituição de Governo vem sendo usada como chave de interpretação para explicar casos como o da PRF. Ao se declarar que a PRF é uma Instituição de Estado, espera-se que as suas práticas voltem às balizas republicanas. Contudo, assim como chamar uma cadeira de mesa não a torna uma mesa, a sedimentação de uma Instituição de Estado depende de mais do que a sua mera enunciação. Certamente serão necessárias modificações mais profundas do que aquelas advindas apenas da troca de gestores.

 

 

Republicamos aqui , do site Fonte Segura (Fórum Brasileiro de Segurança Pública) , o artigo SEGURANÇA PÚBLICA: DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA 2023, escrito pelo sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, professor da Escola de Direito da PUCRS, e pela também socióloga Fernanda Bestetti de Vasconcellos. Socióloga, Coordenadora do PPG em Segurança Cidadã da UFRGS, ambos pesquisadoras vinculados ao INCT/INEAC.

SEGURANÇA PÚBLICA: DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA 2023

A virada do ano e a mudança de governo no Brasil nos levam a indagar o que temos pela frente, em matéria de segurança pública. Para tanto, em primeiro lugar é necessário reconhecer que os desafios são imensos para retomar um caminho de consolidação democrática e reformas estruturais nas instituições policiais.

A conexão entre redes informáticas, teorias conspiratórias, negacionismo, militarismo e ideologias supremacistas reconfigurou as mentalidades ou representações sociais no interior das polícias civis e militares, atualizando e relegitimando discursos e práticas de exercício arbitrário do poder e uso excessivo da força contra determinados grupos e perfis de cidadãos.

Como pano de fundo dessas nem tão novas correntes reacionárias dentro e fora das polícias, parece estar disseminada uma concepção de mundo segundo a qual as sociedades humanas devem ser regidas pela “lei do mais forte”, garantindo a sobrevivência dos mais aptos e daqueles que demonstram alguma utilidade e subserviência frente aos poderosos. Privilégios são naturalizados, como decorrentes desta hierarquia social, que precisaria ser resgatada frente aos ideais igualitaristas da modernidade liberal, que no fim das contas levariam inexoravelmente a sociedades “comunistas”, com a perda da “liberdade” para afirmar a supremacia de alguns sobre os demais.

No contexto da crise climática global, estas correntes tradicionalistas e reacionárias sustentam um modelo “Arca de Noé 2.0”, no qual haveria lugar apenas para os mais aptos. Em situações como a de pandemia de covid-19, foi possível identificar essa vertente em governos como o do Brasil, que tentou levar adiante uma proposta de “imunidade de rebanho”, tratando as mortes pela doença como decorrentes de comorbidades e fraquezas individuais e naturais, que não deveriam ser lamentadas, mas aceitas como inevitáveis.

No âmbito da segurança pública, o tradicionalismo reacionário sustenta políticas armamentistas, considerando que a disseminação de armas de fogo seria o caminho para a garantia da defesa pessoal e da manutenção da liberdade frente a estados e instituições tendentes à imposição de limites e de regras coletivas. E às polícias caberia o papel de braços armados e empoderados do poder político, com liberdade para atuar (excludente de ilicitude) e investigar, de forma seletiva, os inimigos políticos do governo e os criminosos comuns. Garantiriam, assim, a manutenção de uma ordem social hierárquica e socialmente legitimada pela naturalização das desigualdades sociais.

Com base nessas “ideias-força”, constituiu-se no país, pela primeira vez desde os primeiros anos da ditadura militar, um amplo movimento em favor da desconstitucionalização do país e das instituições, que inclui empresários interessados em reduzir custos com seus empregados e com impostos, políticos corruptos relacionados com milícias urbanas e orçamentos secretos, militares e policiais desonestos, violentos ou ideologicamente convencidos de que o combate ao crime prescinde da garantia de direitos. Derrotados nas eleições presidenciais, permanecem mobilizados, tanto nas redes quanto nas portas dos quartéis, onde seguidores remunerados ou simplesmente desocupados permanecem desde a eleição, pedindo intervenção militar para impedir a posse do novo governo.

Este é o cenário em que ocorre a transição, dentro do qual se coloca a questão: como lidar com a emergência da extrema-direita no cenário político brasileiro, e seu potencial de desagregação institucional e dilapidação das conquistas de nossa recente construção democrática? Se de um lado o desafio é considerável, de outro abre uma janela de oportunidade para comprometer com a ordem democrática amplos setores da sociedade civil e das instituições, como se viu no próprio processo eleitoral.

Neste processo, foi possível perceber o compromisso com a democracia de setores importantes do empresariado (inclusive de empresas de comunicação), de setores do funcionalismo público, inclusive nas polícias e no Judiciário, que não se dobraram ao aparelhamento e à perseguição por motivos políticos, de cientistas e produtores culturais, comprometidos com a efetiva liberdade de expressão, sem negacionismo, crimes de opinião ou fake news.

Definida a estrutura de governo para a Justiça e a Segurança, serão mantidas em um único Ministério as questões que envolvem as relações institucionais do Executivo com os demais poderes, em especial o Judiciário, e com as polícias, em especial a Federal e a Rodoviária Federal, mas também a articulação com os governos estaduais para a coordenação de políticas nacionais de segurança pública. O recuo em relação à proposta de campanha, de recriação do Ministério da Segurança Pública, deu margem a críticas, em especial no sentido de que tiram de um tema cada vez mais central para a reconstrução democrática a devida centralidade na estrutura do governo. De outro lado, se justifica pela necessidade de reforçar a figura do novo ministro e o papel do Ministério na retomada de políticas de reconfiguração institucional, desde as necessárias reformas legais até o reforço de laços interinstitucionais necessários para a retomada do Sistema Único de Segurança Pública, criado pela Lei 13.675/2018, assim como a reafirmação da legalidade constitucional na gestão das relações entre justiça e polícias.

Pouco antes do segundo turno da eleição presidencial, alguns dos mais destacados pesquisadores da violência e da segurança pública no Brasil publicaram artigo¹ no qual procuram “situar, caracterizar e identificar possíveis explicações para a persistência da violência, em suas mais distintas modalidades, como problema social recorrente e desafio à consolidação da sociedade democrática e à promoção dos direitos humanos no Brasil.” Partindo de tradições teóricas e vínculos institucionais diversos, os autores são unânimes ao apontar  três questões fundamentais que se impõem nesse debate: a primeira diz respeito ao monopólio estatal legítimo da violência. A segunda aborda a administração da justiça criminal. E a terceira trata da formulação e implementação de políticas públicas de segurança, inclusive políticas de encarceramento e de punição. Articular estes três âmbitos, apontando caminhos para a pacificação social e a afirmação de direitos, entre os quais o direito à segurança, é o desafio que temos pela frente.

¹ ADORNO, Sérgio et al. Violência e Radicalização. In FAPESP 60 Anos: a Ciência no Desenvolvimento Nacional. ACIESP-FAPESP, 2022, p. 190-221.

 

 

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