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Quinta, 13 Agosto 2020 23:05

ARTIGO: O desafio de garantir direitos e os limites da judicialização da violência doméstica

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O artigo "O desafio de garantir direitos e os limites da judicialização da violência doméstica", do antropólogo Daniel Schroeter Simião, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisador do INCT/InEAC – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, foi publicado segunda-feira (03/08/2020) no blog Ciência & Matemática.

O artigo pode ser lido abaixo ou no link https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/o-desafio-de-garantir-direitos-e-os-limites-da-judicializacao-da-violencia-domestica.html.


O desafio de garantir direitos e os limites da judicialização da violência doméstica

03/08/2020 • 09:00

Daniel Schroeter Simião, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília e pesquisador do INCT/InEAC – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos

 

Quando se fala em garantir direitos, é normal pensar que o melhor caminho seja uma lei e políticas que facilitem o acesso ao sistema de justiça. Afinal, em uma democracia, o sistema judiciário é o garantidor do cumprimento da lei e da efetivação dos direitos. Essa percepção tem orientado, nas últimas décadas, uma importante pauta política para reconhecimento de novos sujeitos de direito – mulheres, crianças e adolescentes, povos tradicionais, LGBT+, etc. As pesquisas empíricas sobre garantia de direitos e funcionamento da justiça no Brasil, contudo, indicam que o cenário pode ser bem mais complexo do que a percepção comum sugere.

A judicialização, como se costuma chamar o recurso à via judicial para garantia de direitos, pode ser uma faca de dois gumes. Isso tem a ver com ao menos dois fatores: as limitações da lógica judicial para lidar com conflitos relacionais e a natureza própria da relação entre lei e direito no Brasil. Um bom exemplo para se entender o que está em causa nessa afirmação é o enfrentamento à violência doméstica, um problema grave e que afeta o direito de milhões de mulheres a uma vida sem violência.

 

No Brasil, as políticas de enfrentamento à violência doméstica remontam aos anos 1980, com a criação das delegacias de polícia especializadas. Nos anos 1990, com a criação dos juizados especiais criminais, a forma como os casos de violência doméstica vieram a ser aí encaminhados passou a ser duramente criticada por pesquisas que demonstraram haver uma banalização da dor e do sofrimento de mulheres agredidas, seja pela redução do processo à aplicação de uma pena pecuniária, seja pela fragilização da posição da mulher que, retornada a casa, passava a ser novamente alvo de agressões ainda mais intensas [1].

 

Tais críticas contribuíram para desacreditar formas de mediação associadas à ideia de justiça restaurativa nos casos de violência doméstica, resultando no movimento que permitiu a criação, em 2006, de uma legislação específica para prevenção e redução da violência doméstica (a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha) que proibiu a utilização dos procedimentos da lei 9.099/95 para tais casos e instituiu, ao lado de todo um aparelho de apoio psicossocial às vítimas, um agravamento do tratamento dado ao agressor bem como previu a criação dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher. A lei refletia, portanto, a ideia de que se poderia impor um maior controle sobre as práticas policiais e judiciais, mantendo-se a opção pela judicialização como um caminho eficaz para a garantia de direitos.

 

Direitos individuais e a dimensão relacional dos conflitos

 

Embora a Lei Maria da Penha seja bastante completa e abranja várias dimensões no atendimento às vítimas, é o seu componente relativo à polícia e ao judiciário que costuma se destacar. E aqui as coisas começam a se complicar em especial em razão da limitação intrínseca da lógica judicial para lidar com conflitos complexos.

 

O direito liberal moderno pressupõe que o mundo seja feito de indivíduos, iguais entre si e que vivem relações contratuais. Ele tem, pois, poucos mecanismos para lidar com as situações de assimetria vividas no mundo. Para que um conflito entre no sistema judicial ele precisa ser reduzido aos termos de que esse sistema dispõe, traduzido nas categorias previstas em lei, coisa que começa já na delegacia de polícia quando longas e complexas histórias são “tipificadas” pelo delegado em uma categoria restrita de tipo penal. O poder para inscrever um caso está na mão da autoridade policial, e é o processo administrativo do inquérito, e não a história vivida, que seguirá ao judiciário e dará base para as ações de juiz e ministério público.

 

Os conflitos interpessoais, em especial os familiares, cruzam um complexo de relações presentes e passadas que tende a desaparecer de cena quando a situação vivida é traduzida para os termos legais de uma lide. A tradução de um conjunto de relações no idioma jurídico invisibiliza esse complexo relacional, tornando difícil qualquer esforço de elaboração simbólica do conflito, e, mais ainda, de elucidação terapêutica da situação. Isso dificulta uma administração satisfatória do conflito do ponto de vista das partes e, frequentemente, inviabiliza qualquer expectativa de reparação [2].

 

Pesquisas apontam a importância das redes relacionais nos casos de violência doméstica, inclusive como elemento para o registro das queixas, como em um caso em que a vítima fez o registro por pressão de seu ex-companheiro, que havia sido denunciado por ela anos antes e agora não aceitava que ela não denunciasse o atual. Também não é raro que a denunciante passe a sofrer pressão da família do agressor (muitas vezes da própria sogra) para não realizar a denúncia. Elementos como esses dificilmente entram no processo judicial, o que tende a produzir resultados desfavoráveis às próprias denunciantes, ao ponto de ouvirmos desabafos como: “a justiça só piorou a situação”, “vai para Igreja e ora. Porque se for para a justiça não vai dar em nada”, e “Depois que eu vi que a justiça não ia fazer nada por mim eu fui para a Igreja. Fui procurar ajuda em Deus” [3].

 

Uma linguagem própria

 

No campo de um conflito judicializado, as chances de sucesso de uma demanda qualquer dependem, em grande medida, da capacidade do sujeito em traduzir sua situação em uma linguagem adequada ao campo jurídico. Nos casos de violência doméstica, essa característica pode criar situações bastante desfavoráveis à vítima, uma vez que, especialmente no caso de mulheres pobres e com pouca instrução, a reclamante tem poucas condições de dominar a lógica pela qual seu caso será processado.

Essa característica do processo judicial gera casos como o de uma mulher no Distrito Federal, agredida pelo marido, que se viu envolvida em dois processos distintos, um no juizado especial de violência doméstica, como vítima, e outro, movido pelo marido junto à vara de família, em que era acusada de agredir os filhos. O marido soube, melhor do que ela, mobilizar elementos judiciais para dar força a seu processo, o que resultou no afastamento da mulher do lar. Paralelamente, utilizou os mesmos elementos e a decisão da vara de família para conseguir o arquivamento do caso de violência doméstica [4].

 

O juiz e a lei

 

Conhecer a linguagem certa, contudo, não é garantia de uma solução justa. Nosso processo judicial está grandemente centrado nas mãos do juiz, que decide primordialmente com base em suas convicções pessoais, resultando em decisões muitas vezes marcadas por preconceitos de várias ordens, como se viu na sentença de um juiz de Minas Gerais que, em 2010, criticava, nos autos, a Lei Maria da Penha referindo-se a ela como um “conjunto de regras diabólicas” e afirmando que a “desgraça humana” teria começado por causa da mulher.

 

Alguns analistas interpretam isso como reflexo de uma sociedade machista e patriarcal. Certamente isso é um ingrediente da equação, mas o problema tem raízes mais específicas na forma como os juízes naturalizam seu poder de interpretar a lei. Pesquisas do InEAC evidenciam essa autorrepresentação da discricionariedade do magistrado que se torna mesmo arbitrária e, muitas vezes, idiossincrática, tornando impossível prever o resultado de casos idênticos submetidos a distintos juízos. Na prática, o juiz é quem define o que a lei diz, esvaziando boa parte das intenções da lei [5].

 

Em uma variação desse princípio, há casos em que, compartilhando uma mesma visão de mundo, juiz, promotor e até mesmo o defensor público acertam decisões para acelerar processos, fazendo um julgamento acerca das pessoas, e não dos casos, reforçando uma postura refratária a compreensão alargada do problema [6].

 

Em tese, a Lei Maria da Penha prevê que os juizados especiais de violência doméstica comportem espaços de escuta da história vivida, estabelecendo o atendimento à vítima por equipe multidisciplinar e o encaminhamento do agressor a grupos reflexivos. Contudo, as pesquisas indicam haver, nessas práticas, um choque entre a lógica judicial, que reduz o conflito à lide, e uma lógica terapêutica, das equipes psicossociais, que busca expandir as narrativas [7]. São como mundos que não se comunicam, e muitas vezes, sabotam um ao outro [8].

 

Deus nos acuda?

 

Mas, então, o que podemos esperar da judicialização e, mais importante, por que meios esperar a garantia de direitos? Não temos resposta. As pesquisas, contudo, sugerem a importância de se compreender como as práticas judiciais realmente funcionam, para além do que diz a norma legal. Entendendo-as, pode-se buscar melhores estratégias para sua transformação, de modo que pessoas em situação vulnerável não saíam desse processo perdendo a fé nos mecanismos de garantia de direitos e buscando ajuda, unicamente, fora das soluções humanas.

 

[1] Ver, por exemplo: Rodrigo Azevedo. Juizados Especiais Criminais: Uma abordagem sociológica sobre a informalização da justiça penal no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 16 nº 47, 2001. Ver também: Guita Debert & Marcella B. Oliveira. Os modelos conciliatórios de solução de conflitos e a “violência doméstica”. Cadernos Pagu, 29, jul-dez. 2007.

 

 

[2] Luís Roberto Cardoso de Oliveira. A dimensão simbólica dos direitos e a análise de conflitos. Revista de Antropologia volume 53(2): 451-473. 2010. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/36432

 

[3] Krislane de Andrade Matias. Um novo tratamento judicial para a Lei Maria da Penha? Uma etnografia da equipe multidisciplinar do Fórum do Núcleo Bandeirante - DF. 2013. Disponível em: https://bdm.unb.br/handle/10483/5139

 

[4] Ranna Mirthes Sousa Correa. Lei Maria da Penha e a Judicialização da violência doméstica contra a mulher nos Juizados do Distrito Federal: um estudo de caso na Estrutural. 2012. Disponível em: https://bdm..unb.br/handle/10483/3416

 

[5] Ver: Regina Lúcia Teixeira Mendes. Do Princípio do Livre Convencimento Motivado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012.

 

[6] Daniel S. Simião & Luís R. Cardoso de Oliveira. Judicialização e estratégias de controle da violência doméstica: a suspensão condicional do processo no Distrito Federal entre 2010 e 2011. Sociedade e Estado, v. 31, p. 845-874. 2016. Disponível em:

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922016000300845&lng=en&nrm=iso&tlng=pt

 

[7] Daniel S. Simião. Reparação, justiça e violência doméstica: perspectivas para reflexão e ação. Vivência: Revista de Antropologia, v. 46: 53-74. 2015. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/vivencia/article/view/8773/6258

 

[8] Marco Martinez Moreno. Civilizar a Cultura: Questões de modernização e a afirmação da dignidade entre homens acusados de violência doméstica e familiar contra a mulher. 2018. Disponível em:

http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/32525/1/2018_MarcoJuli%C3%A1nMart%C3%ADnez-Moreno.pdf

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