Roberto Kant de Lima
Publicado na revista ISTO É
InEAC na Mídia
Lenin Pires
Publicado no Jornal O Globo
Reproduzimos aqui o artigo publicado pelo Blog Ciência & Matemática, do jornal O Globo, escrito pelo antropólogo Roberto Kant de Lima, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos
Gestão militar das escolas públicas no Brasil
Recentemente, o atual governo do estado do Rio de Janeiro propõe-se a transformar 100 (cem) instituições escolares de ensino médio em Colégios Militares e o Ministério da Educação, também na vigência do atual governo, criou uma subsecretaria de fomento às “escolas cívico-militares”, dedicada à militarização do ensino público e propõe-se a oferecer aos municípios a gestão militar de escolas municipais.
Ora, a República brasileira enfrenta há muito um dilema sério: somos uma sociedade composta por indivíduos livres, iguais perante a lei, merecedores da aplicação a todos das leis e regras de maneira uniforme? Ou somos uma sociedade hierarquizada, em que os direitos são desigualmente distribuídos entre os segmentos sociais, não somente em função da posição econômica que os mesmos ocupam, mas em função de sua posição social e familiar?
Este dilema tem impedido que a sociedade brasileira se normalize, isto é adote padrões de comportamento válidos e desejáveis para todos. Estes padrões, quando universalizados, colocam-se como opção de obediência a regras a serem seguidas, não por medo do castigo na ocasião de seu descumprimento, mas simplesmente porque ela asseguraria, em última análise, que os direitos dos que as obedeceram estão garantidos pela ordem vigente. Ou seja, os indivíduos iguais em direitos estão em potencial oposição por terem interesses distintos, o que gera situações de inevitável conflito; e quem segue as regras que se aplicam a todos de maneira uniforme vai ser protegido por tê-las obedecido, quando afrontado por um seu concidadão ou pelo Estado.
No limite, cria-se uma sociedade de “normais” – os que obedecem e têm garantias e de “desviantes” – os que não obedecem, porque não podem ou porque não querem. Essa é a lógica do nosso direito contemporâneo, disciplinar, advindo das revoluções liberais burguesas: o direito iguala formalmente os diferentes, para o mercado desigualá-los materialmente.
Já numa sociedade hierarquizada, formada por segmentos sociais juridicamente desiguais, mas complementares, o direito não se aplica de maneira uniforme a todos, pois seria injusto. O que se impõe é a ausência do conflito, para que o todo harmônico não seja perturbado por ele. O todo prevalece sobre as partes! Conflitos entre iguais são tolerados, mas jamais quando ocorrem entre desiguais, que deve ser energicamente reprimido, pois isso implica destruir a ordem do todo e o própria totalidade social, que se fragmentaria inevitavelmente.
Ora, nas sociedades liberais, individualistas e igualitárias, como se proclama a nossa em sua Constituição, a escola é sabidamente a agência de socialização universal por excelência, o lugar privilegiado para que os componentes mais jovens da sociedade sejam iniciados de maneira uniforme nesses processos seculares de aprendizado da civilidade, quer dizer, dos processos de administração de conflitos havidos no convívio entre cidadãos diferentes, mas iguais em direitos, para serem incluídos no mercado.
Entretanto, como se sabe, no Brasil, o ensino público fundamental e, em consequência também o das etapas subsequentes, nunca foi universal, isto é, para todos os brasileiros. Em artigo recente, Antonio Góis destrincha estatísticas, apresentando os progressos que temos feito nesta direção, mas conclui que embora tenhamos melhorado nossos índices de alfabetização e de socialização escolar, ainda muito precisa ser feito.
Precisamos de mais e melhores escolas? Claro que sim. Mas precisamos de escolas que socializem nossas crianças e nossos jovens para a convivência na sociedade civil ou na caserna?
Porque as duas formas de socialização são diferentes. Recentemente, tivemos na UFF uma experiência com alunos policiais-militares, que frequentam um curso de tecnólogo em segurança pública e social a distância, ministrado em convênio com o pool de Universidades públicas do Rio de Janeiro, a Fundação CECIERJ.
Pois bem, uma das dificuldades maiores que tínhamos e temos era que eles entendessem que, diante dos conflitos cotidianos que se estabeleciam normalmente entre professores e alunos, embora não houvesse nenhum comandante cuidando para que a ordem fosse mantida, a Universidade tinha regras claras, construídas por seus diversos Conselhos – que detém representações de todos os seus segmentos técnico-administrativos, professores e estudantes – e que são de adesão obrigatória àqueles que nela se matriculam. Como o curso é ministrado em 12 polos do Estado do RJ, sendo sediado em locais situados em escolas públicas, esta ordem universitária institucional não era empiricamente visível e eles frequentemente queriam dirigir-se ao ou falar com o Reitor – que eles pensavam ser o nosso comandante – para resolver suas queixas escolares e fazer valer seus supostos direitos.
É evidente que a ordem que se reproduz na caserna não se assemelha à ordem que se reproduz na sociedade civil. Na caserna e obedece-se a ordens emitidas por comandos fundados na antiguidade e na hierarquia. Em qualquer situação, sempre haverá precedência para quem comanda e conflitos entre desiguais são peremptoriamente reprimidos e, eventualmente, punidos. Exercícios rotineiros de “ordem unida” moldam corpo e espírito para atender ao pronto comando. No caso dos soldados e oficiais, acentua-se o abismo hierárquico pela existência da dupla entrada, uma para oficiais, outra para praças, com distintos regimes de disciplina institucional.
Adquire-se assim, um “espírito militar”, construído na concepção de que o todo é sempre maior e mais relevante que as partes, fundado na hierarquia e disciplina militar, estritamente repressivas na administração dos conflitos, talvez necessário e inestimável instrumento das Forças Armadas na defesa aguerrida da Pátria, mas certamente estranho ao convívio quotidiano civil do mercado. Agora mesmo, em função das mudanças que o governo atual tem anunciado para a Previdência Social, este ethos e essas diferenças entre os servidores civis e militares têm sido corretamente explicitadas.
Ocorre que esta socialização militar, diferentemente dos objetivos universais da educação pública, sabidamente não é para todos os membros da sociedade, estando dela excluídos aqueles que a ela não se adaptam, como demonstram etnografias já realizadas nesses ambientes, em que a disciplina militar sobrepõe-se à orientação pedagógica.
Confundem-se, assim, dois modelos de hieraquia e disciplina bastante distintos. A hierarquia e disciplina presentes nas escolas militares é estritamente destinada àqueles que as escolhem, fundada na absorção dos interesses individuais pelos interesses e objetivos corporativos, na obediência a ordens, na repressão dos conflitos e na consequente diferenciação e prevalência identitária dos militares sobre os “paisanos”, ou seja, a sociedade civil. Já a hierarquia e a disciplina da ordem civil, supostamente destinada a todos os membros da sociedade, é fundada no controle da liberdade individual e caracteriza-se pelo controle disciplinar exercido pela aderência a regras, pela tolerância com a diferença e com o aprendizado nos processos de administração de conflitos entre iguais, como já mencionado.
Nossas escolas públicas não atingem esse objetivos? Pelos dados disponíveis e pelas narrativas cotidianas a resposta é não. Mas o aprendizado desta ordem civil é o processo indispensável à construção de uma civilidade e de uma cidadania, dos direitos que podem se opor a todas as formas de opressão e que deveria ser vigente nas instituições escolares da sociedade civil, estatais, gratuitas, sejam de ensino obrigatório ou eletivo.
Entretanto, para consertar o que está errado na aparente desordem das escolas públicas periféricas resolve-se escolher o caminho do ensino da hierarquia e disciplina militares àqueles alunos que se adaptarem a elas, excluindo-se aqueles que não tiverem sucesso. Por outro lado, colégios privados continuarão a socializar os membros das elites que a elas tem acesso em práticas de civilidade muito distintas da ordem militar. Restarão assim, em breve, três segmentos desigualmente socializados/educados da população brasileira: os das escolas privadas, os das escolas públicas de gestão militar e os que não tiveram acesso ou não se adaptarem ao regime militar.
Ao invés de estimular aquilo que ainda não alcançamos, ao invés de investir em novas formas de aprendizado na administração de conflitos, como fizeram outras sociedades ocidentais que passaram por dificuldades semelhantes, estas propostas que tiveram e têm muitos encampadores podem causar um retrocesso ainda maior.
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Jornalista Claudio Salles
Bolsista Bruna Alvarenga
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