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Terça, 08 Maio 2018 14:58

Violência Policial: a linha tênue que nos separa do abismo

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O site do Ineac disponibiliza o artigo "Violência Policial: a linha tênue que nos separa do abismo", escrito pelo  sociólogo Rodrigo Azevedo (PUCRS), pesquisador vinculado ao INCT/INEAC, publicado no Correio Brasiliense no dia 5 de maio de 2018, no endereço http://blogs.correiobraziliense.com.br/segurancapublica/2018/05/05/violencia-policial-linha-tenue-que-nos-separa-do-abismo/

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é Graduado em Direito e Doutor em Sociologia pela UFRGS. Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É líder do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (Gpesc) e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É pesquisador associado e membro do Comitê Gestor do Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-Ineac), e pesquisador do CNPq.

Violência Policial: a linha tênue que nos separa do abismo

Domingo de sol, peguei o carro e fui com a família almoçar em um restaurante da Zona Sul de Porto Alegre onde costumamos ir. Chegando lá, passamos em frente a um posto da Brigada Militar, que fica na esquina de uma movimentada avenida. Na rua lateral, um homem, negro e maltrapilho, esbravejava e sacudia a grade de ferro do posto da BM. Passando de carro não dava para entender direito o que dizia. mas em seguida ficamos sabendo que reclamava dos policiais por não lhe terem prestado atendimento, tendo sido vítima de um furto perto dali.
Assim que estacionei o carro, uns 20 metros à frente, percebi que uma viatura policial se aproximava em alta velocidade e com a sirene ligada. A viatura parou em frente ao posto, logo atrás de mim, e dois policiais muito jovens, um homem e uma mulher, desceram correndo, de cassetete em punho. Ao se aproximarem do sujeito, ao invés de interpelá-lo, partiram direto para a agressão. Enquanto o policial espancava as costas, a colega batia com o cassetete em suas pernas, fazendo-o cambalear e cair de joelhos na calçada. O homem já estava rendido, e as agressões continuavam.
Ao descer do carro e presenciar a cena a poucos metros de distância, não tinha como me manter indiferente ao que acontecia. Avancei em direção aos policiais e simplesmente gritei: “O que é isso? Não batam nele! Que tipo de abordagem é essa?” Imediatamente os dois policiais parece que caíram em si, e pararam de espancar o coitado. Ao perceberem uma reação ao que faziam, enquanto os comerciantes e transeuntes à volta já se aglomeravam e assistiam indiferentes (afinal, era um pobre coitado, e estava causando problema), os policiais talvez tenham se dado conta de que estavam diante de um ser humano, que não oferecia risco algum, e que não havia justificativa para uma abordagem violenta como aquela. Mas naqueles poucos instantes foi possível perceber como pode operar a desumanização e a onipotência de uma corporação policial, na mentalidade e nas práticas de seus integrantes.
Herdeiras de uma cultura inquisitorial e burocrática, e estruturadas muito mais para a manutenção da “ordem pública” do que para a prestação de serviços de segurança, as polícias civis e militares ostentam um histórico nada edificante na relação com o seu público, os ditos cidadãos. Seja quando necessitam do atendimento no “balcão” da delegacia para um registro de ocorrência, ou quando se deparam com uma abordagem policial de rotina, a regra é uma grande desconfiança da sociedade para com suas polícias, seja pela falta de estrutura para dar conta da demanda, ou pela imprevisibilidade da ação de policiais muitas vezes mal preparados e ao mesmo tempo “empoderados” para lidarem com um público que é visto mais como um problema do que como o destinatário final de um serviço. Fato é que nestes 30 anos que nos separam da volta à democracia, com a Constituição Cidadã, ainda não fomos capazes de reestruturar as polícias e colocá-las de fato a serviço da cidadania.
O déficit democrático, neste sentido, é imenso. Em uma sociedade marcada por conflitos de toda ordem, que colocam muitas vezes frente a frente indivíduos incapazes de tratar civilizadamente suas diferenças, as polícias são o braço mais próximo e mais presente do Estado em vários contextos, e poderiam cumprir um papel fundamental para a administração de conflitos de forma a reduzir o recurso à violência. É o que se esperava, por exemplo, com o programa das Unidades de Polícia Pacificadora, no Rio de Janeiro. Pesquisas mostraram, no entanto, que no imaginário dos policiais que atuavam nas UPPs, era considerado mais interessante ir para o confronto armado com traficantes do que ser um canal de pacificação e diálogo, nos moldes de um policiamento comunitário, no interior da favela.
Nestas três décadas de democracia, algumas iniciativas foram tomadas para mudar este quadro. O investimento em formação, por exemplo, gerou experiências importantes, e contribuiu para a qualificação e a reciclagem dos policiais para atuarem em democracia. Mas o currículo oferecido pelos cursos de formação continuou convivendo com o famoso currículo oculto, aprendido com os colegas antigos na rua, e orientador das práticas que se reproduzem ao longo do tempo.
Se o quadro geral já não era nada animador, a crise política que se abateu sobre o país nos últimos anos acabou por soterrar qualquer perspectiva de uma mudança mais ampla das estruturas e das práticas policiais. A ideia corrente é a de que, se uma maioria parlamentar toma para si o poder de encurtar um mandato presidencial por “pedalada fiscal”, e se o próprio Poder Judiciário se curva a lógica do pragmatismo para o combate ao crime, deixando de lado normas explícitas da Constituição e do Processo Penal, o jogo virou. Tem se tornado lugar comum ouvir secretários de segurança justificando a violência e a exclusividade dos direitos humanos para “humanos direitos”, jogando para a torcida em uma sociedade amedrontada e refém da violência, justamente pela incapacidade dos gestores oferecerem respostas efetivas e eficazes, e não o discurso populista.
Os números da violência policial, embora muitas vezes subnotificados, comprovam esta deriva democrática. Enquanto em 2009 o número de mortes em decorrência de intervenção policial no Brasil foi de 2.177, em 2016 foram 4.224 mortes, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. No Rio Grande do Sul, dados colhidos pelo Centro de Referência em Direitos Humanos da Defensoria pública mostram que o número de denúncias de violência praticada pelas polícias em Porto Alegre saltou de 73 casos em 2013 para 234 casos em 2016, e quase o dobro disso em 2017.
Para quem acompanha e milita por uma conversão democrática das instituições policiais, o que se ouve agora é que “esse pessoal dos Direitos Humanos” vai ter o que merece, e o combate ao crime legitima ações contra a lei das próprias instituições policiais, chanceladas depois pelo Ministério Público e pelo próprio Poder Judiciário. Como já alertou uma vez Pedro Aleixo, quando exercia a vice-presidência do país no governo Costa e Silva, sobre as consequências do AI5, “Presidente, o problema de uma lei assim não é o senhor, nem os que com o senhor governam o país; o problema é o guarda da esquina”.
O mesmo poderia ser dito agora, quando se fragilizam regras constitucionais, o Poder contra-majoritário se curva aos ditames da “opinião pública” e os responsáveis pela segurança pública legitimam discursivamente a violência policial. Em algum momento será preciso recolocar o guizo no gato, caso contrário continuaremos marchando celeremente para novos recordes de violência policial, e para a consolidação de um Estado de Polícia, no qual o indivíduo é como o personagem Josef K., em O Processo, um mero detalhe frente ao funcionamento das engrenagens repressivas, que assumem uma racionalidade própria e alheia ao interesse público. E onde qualquer um pode ser a próxima vítima.

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