enfrdeites
Claúdio Salles

Claúdio Salles

A professora Thaiane Moreira de Oliveira vem, há alguns anos, se dedicando a pesquisar o papel da ciência no combate à desinformação. O que ela não esperava era que um evento tão dramático como a pandemia mundial da Covid-19 fosse promover um cenário tão intenso para sua pesquisa. Nos últimos meses, seu trabalho passou a ocupar a linha de frente entre os estudos que vêm contribuindo para informar a população sobre o coronavírus, combater as fake news na ciência e divulgar fontes confiáveis e legítimas de informação científica.

Doutora em Comunicação Social e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), a pesquisadora lembra que o movimento anticiência não é novo e vem à tona de tempos em tempos, tendo recrudescido nos últimos anos. Ela destaca que em vários países, lideranças antes desprezadas e marginalizadas por suas ideias, hoje estão ocupando cargos no alto escalão dos governos e liderando as tomadas de decisões. Segundo Thaiane, de uns três anos para cá a disputa pela informação se acirrou, e a ciência tem sido o principal alvo dos ataques. Nos últimos meses, justamente num momento em que a população depende de informações confiáveis para se prevenir da Covid-19, o movimento anticiência divulga notícias falsas que pode colocar em risco a saúde da população. “Diversos líderes que negam o conhecimento científico e propagam teorias da conspiração globais estão colaborando para o avanço da insensatez e da desinformação", sublinha.

Seu projeto intitulado As disputas na disseminação de Fake Sciences: Plataforma de Educação e Divulgação para enfrentamento da desinformação científica foi contemplado no edital de Auxílio ao Pesquisador Recém-Contratado – (ARC) da FAPERJ. Ao longo da quarentena imposta a países de todos os continentes, as notícias falsas já provocaram pânico e aglomerações decorrentes de movimentos inesperados de pessoas em busca de formar estoques de produtos de higiene – como álcool em gel –, alimentos e remédios para garantir períodos de isolamento. Ela recorda um dos exemplos mais recentes, envolvendo o medicamento “cloroquina”, recomendado para tratar a Covid-19 sem a devida validação científica, que desapareceu das prateleiras das farmácias e cujos efeitos colaterais vêm fazendo mais vítimas do que recuperados pelo mundo.

A pesquisadora também aponta que em momentos críticos como o que estamos enfrentando com políticas de quarentena, a crise da democracia tem se acentuado. Ressalta que o reconhecimento de autoridades, entre elas a científica, era uma característica de um modelo de democracia vigente. “Hoje, diante de um momento em que os direitos mais básicos estão sendo retirados como medidas eficazes de prevenção de crescimento do contágio e do colapso do sistema de saúde, governos de diferentes partes do mundo estão aproveitando para instaurar regimes autoritários e violar os direitos dos cidadãos”, alerta a cientista. Como exemplo, ela cita episódio ocorrido recentemente, após a demissão do ministro da Justiça e do diretor da Polícia Federal (PF), em que um ministro do Supremo Tribunal Federal determinou a manutenção dos delegados da PF envolvidos no inquérito de apuração das fake news contra integrantes daquela corte e da realização de “atos contra a democracia”.

 

Paula Guatimosim

A pesquisa mostra que, na disputa pela informação, a ciência
tem sido o principal alvo dos ataques 
(Imagem: Divulgação)

 

Quinta, 30 Abril 2020 16:20

Direitos humanos e covid-19

Nessa quinta-feira, 30 de abril, às 18h a pesquisadora do INCT/INEAC, Jacqueline Sinhoretto, Professora da UFSCAR e coordenadora do GEVAC, Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos, participará, pelas redes sociais, do programa PSOL COTIA DEBATE , desenvolvendo o tema:  Direitos humanos e covid-19. A transmissão acontecerá ao vivo pelo facebook : https://www.facebook.com/psoldecotia .
 
 
 
 
 
 

A CIDADANIA VERTICAL NO BRASIL E O COVID-19, esse é o tema do programa PARA SUA CIÊNCIA apresentado pela pesquisadora Izabel Nuñez (INCT/INEAC) e que será transmitido ao vivo pelas redes sociais, nessa quinta-feira, 30 de abril de 2020, às 21h pelo Instagram (@inctineac). O programa traz como convidado especial o sociólogo Marcelo da Silveira Campos, que é  Pós-Doutorando e Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC/UFF/FAPERJ) e  doutor em Sociologia (2015) pela USP.

Domingo, 26 Abril 2020 17:48

A demissão de Sérgio Moro

O site do INCT InEAC reproduz aqui o artigo publicado no SUL 21 (https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/04/a-demissao-de-sergio-moro-por-rodrigo-ghiringhelli-de-azevedo/) do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo,  professor da Escola de Direito da PUCRS e pesquisador vinculado ao INCT/INEAC. 

Confira abaixo a íntegra do artigo:

A demissão de Sérgio Moro (por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo)

Primeiro com os governadores, especialmente Dória, Leite e Witzel, depois com Mandetta, e por fim e estrondosamente com Sérgio Moro, o que se verifica é uma divisão importante no bloco de poder que se constituiu com a eleição de Bolsonaro.

A partir de agora, fica de um lado o bolsonarismo raiz, cada vez mais sustentado pelas bases das igrejas neopentecostais e pelos setores sociais mais vinculados ao aparato de controle punitivo e repressivo, desde as polícias e setores das Forças Armadas, até as milícias e as comunidades que controlam em determinadas regiões do Brasil. E de outro lado, alguns setores da alta burocracia estatal (juízes, promotores, carreiras diplomáticas), do empresariado (incluindo empresas de mídia) e do agronegócio, e aquilo que sobrou da classe média urbana, que começam a se dar conta de que o custo de ter colocado Bolsonaro na Presidência da República é muito alto.

Este é um fenômeno da maior importância. Primeiro, porque permite que a dinâmica das próximas eleições municipais seja pautada por posicionamentos diante da pandemia e a sua gestão pelos municípios, desde as questões sanitárias até as de retomada do desenvolvimento econômico e de geração de emprego e renda. E segundo, porque com isso retira o debate político do âmbito de temas ligados à corrupção ou a escolhas morais, ou em torno de um debate anacrônico entre capitalismo e comunismo, e coloca o foco na capacidade de gestão e na visão sobre as relações entre Estado e sociedade, em um momento em que no mundo todo se reconhece a necessidade de substituir o ideário neoliberal de enxugamento do Estado e liberalização econômica, por políticas estatais que garantam tanto o desenvolvimento econômico como o bom funcionamento dos sistemas de saúde, educação e segurança pública. Importante reconhecer, neste sentido, que lideranças importantes do PSDB, como os governadores Dória e Leite, e o prefeito Nelson Marchezan, tiveram destaque pela rápida adesão à necessidade do isolamento social, atendendo as recomendações da OMS e da melhor ciência médica, e com isso cresceram na crise.

Para que a ruptura do bloco político que dava sustentação a Bolsonaro produza os resultados esperados no sistema político, é preciso que se superem determinadas pautas da esquerda, como a prisão do Lula ou o impeachment de Dilma. As críticas à operação Lava-Jato foram feitas, e no debate jurídico-processual todos sabem que houve atropelos evidentes a direitos e garantias de acusados, de forma seletiva, o que levou inclusive à aprovação pelo Congresso e posterior sanção presidencial da figura do juiz de garantias. O que não impede também que se reconheça o mérito dessa e de outras operações da Polícia Federal no desvelamento das formas de corrupção e desvio do dinheiro público, tradicionais no Estado brasileiro. Da mesma forma, é sabido que Dilma reforçou a lógica de funcionamento republicano das instituições policiais, e pagou o preço por isso com a perda de sustentação no Congresso (além de problemas de gestão e do esgotamento do projeto lulista para dar resposta às novas tensões sociais que emergiram em 2013).

É preciso avançar, reconhecer que o novo bloco de poder que se articula, parte de forte base empresarial, angaria adeptos entre quadros da administração pública preocupados com a boa gestão da máquina pública, e abertos neste sentido à pauta de uma reforma do Estado, e a amplos setores das sobreviventes classes médias urbanas, que se decepcionaram com a face obscura e com a crise de ideias das gestões petistas, mas que, se um dia o fizeram, não estão mais dispostos a hipotecar seu voto a um presidente miliciano.

Sobre o que sobrou no governo, além do núcleo olavista dos filhos do capitão e seus amigos (Araújo, Weintraub, Damares, Salles), foram o Posto Ipiranga, bastante desprestigiado e deixado de lado pelo novo PAC, mas ainda como avalista do país para investidores internacionais, e os militares, que atuam como grupo e dispõem de um espaço no governo federal que não mais tinham desfrutado desde o final da ditadura militar. Entre a militância bolsonarista, que tem produzido núcleos cada vez mais adeptos de táticas fascistas de ação direta, como a intimidação da mídia ou de qualquer um que se oponha ao mito, a defecção da figura do juiz herói é um golpe duro.

Dito isso, a melhor forma de enfrentar esse triste episódio da política brasileira, da configuração de um governo com viés fascistizante, é a partir de agora centrar a agenda política no #forabolsonaro, diante do conjunto de atos que configuram motivo suficiente para um processo de impeachment por crime de responsabilidade, mas também pelo conjunto da obra, como já foi argumentado contra outra governante, especialmente pela forma como tratou da pandemia. Todos os democratas, de liberais a coletivistas, e todos os interessados no desenvolvimento do país e dos necessários instrumentos institucionais para que isso ocorra, terão, obviamente diferenças sobre como enfrentar um conjunto de questões, mas poderão a partir de agora restabelecer um espaço de debate público no Brasil que há muito se perdeu, que nos permita encontrar, democraticamente, as soluções tão necessárias para os vários problemas que temos que enfrentar como Nação, e de esvaziar o discurso populista e o fanatismo político que tem marcado a política brasileira no último período.

 

Com o tema "Homicídios e fluxo do sistema de justiça criminal brasileiro" o NEVIDH EM PAUTA, apresentado por Letícia Paiva Delgado (NEVID-UFJF E NSD-UFF) trás como convidado especial,   nessa sexta, dia 24 de abril ,  o pesquisador Michel Lobo (INCT/INEAC). Acompanhe a live pelo instagram, às 18 horas, no endereço @nevidh.ufjf 

 

 

 Está aberto até o dia 04/05/2020, , o prazo para submissão de resumos para o Simpósio de Pesquisa Pós-Graduada (SPG) 43 - "Rituais judiciários, profissões jurídicas, sistema de justiça e pesquisa empírica no e/ou do direito em diálogo com a antropologia e a sociologia", que acontecerá no 44º Encontro Anual da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), marcado para 8 a 11 de setembro de 2020, na UFABC em São Bernardo do Campo, SP.

O Simpósio de Pesquisa Pós-Graduada (SPG) 43 - "Rituais judiciários, profissões jurídicas, sistema de justiça e pesquisa empírica no e/ou do direito em diálogo com a antropologia e a sociologia" é coordenado pelos pesquisadores do INCT/INEAC Michel Lobo e Fabio Medina .

Outros detalhes acessem o site : https://www.anpocs2020.sinteseeventos.com.br/trabalho/view?ID_TRABALHO=2339

 

 

 

Publicamos aqui no site do INCT/INEAC o artigo VELHA ORDEM:  A cidadania vertical no Brasil e o coronavírus ,  publicado no LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL ( https://diplomatique.org.br/a-cidadania-vertical-no-brasil-e-o-coronavirus/) e escrito pelo pesquisador do INCT-InEAC/UFF Marcelo da Silveira Campos é doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD e professor convidado da Faculdade de Medicina da USP. Confira abaixo .

 

VELHA ORDEM

A cidadania vertical no Brasil e o coronavírus

por Marcelo da Silveira Campos
17 de Abril de 2020
 

Isolamento parcial, ou vertical como vem sendo denominado, consiste essencialmente em retirar das relações sociais somente os grupos mais suscetíveis à mortalidade pela Covid-19 como, por exemplo, as pessoas acima de 60 anos e portadores de condições de risco como hipertensão, diabetes, doenças respiratórias. A defesa do atual presidente Bolsonaro por essa medida, na base do discurso bolsonarista, toma como justificativa a “volta ao trabalho” em massa. É precisamente isso que fez insuflar as pequenas (ainda bem) carreatas em 12 de abril a favor da “volta ao trabalho” ou ainda o encontro o “corpo a corpo” do presidente, em Goiânia, com alguns apoiadores um dia antes. Entretanto, em constantes reuniões e pronunciamentos no Planalto, diga-se muitas vezes contrárias às diretrizes do próprio Ministro da Saúde – demitido, aliás, pela defesa do isolamento horizontal – e da Organização Mundial da Saúde, as autoridades federais admitem que não há qualquer estudo para justificar tal orientação e que o pico da Covid (hoje com mais de 30 mil casos confirmados e oficialmente registrados) será em maio. No dia 14, novamente, o presidente distorceu a declaração do diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, ao questionar a quarentena e dizer que ele está certo na condução da crise. 

Sabemos bem, diariamente desse contexto particular, lamentável e muito específico do Brasil: o país deve ser um dos poucos mantém um chefe de Estado dizendo para pessoas “irem trabalhar” concomitantemente com o número de casos aumentando vertiginosamente dia após dia . Entretanto, o que quero chamar a atenção para reflexão é que a ideia do isolamento vertical, contudo, não é (nem nunca foi) nova no Brasil. Especialmente, quando nós relacionamos essa proposta de isolamento ao que denomino neste texto como cidadania vertical no Brasil. Em termos sucintos, podemos dizer que a cidadania é vertical no Brasil porque ela, desde sempre, é uma cidadania fundamentalmente hierarquizada: os grupos privilegiados, que constituem uma pequena parcela da população, possuem a maioria dos recursos sociais, jurídicos, econômicos e simbólicos para exercer a diferenciação e reproduzir a desigualdade no espaço público e no espaço privado; por outro lado, a maioria da população – as classes menos privilegiadas que compõem fundamentalmente o mercado de trabalho dos serviços domésticos, trabalhadores da indústria de bens e serviços, trabalhadores do mercado informal e os profissionais da saúde que atuam na ponta das redes de assistência em saúde e social – não detém os mesmos recursos sociais, jurídicos e econômicos para exercer os direitos no espaço público e privado, ou seja, para ser e exercer uma cidadania horizontal. 

 

Ora, como se sabe é a composição do nosso mercado de trabalho durante o século XIX, constituído basicamente pela escravidão massiva de negras e negros, que fez uma cidade como a do Rio de Janeiro ter aproximadamente 50% da população formada por escravos. É do mesmo século XIX que uma das primeiras obras consideradas sociológicas no país – Os sertões de Euclides da Cunha – descreve como, na recém-república, a forma como Canudos atraiu centenas de nordestinos pobres despertando a ira dos grandes fazendeiros e da elite política localista: morreram mais de 15 mil pessoas no país sendo a grande maioria, os pobres e pardos.   

 

Chamo a atenção para esses dois pontos porque, no meu entender, eles estão articulados na reação sociopolítica à Covid-19; e constituem, hoje, o maior risco para o alastramento da doença em nosso território e um novo genocídio da população pobre e periférica do país. Em outras palavras: a defesa política do isolamento vertical (e os seus defensores) representam o maior risco à nossa democracia, bem como, representam a continuidade e reprodução do que proponho aqui como uma cidadania vertical. 

Logo, como consequência, os trabalhadores das classes médias altas e altas continuarão em seus isolamentos horizontais, trabalhando no chamado home office, e tomando as medidas de não exposição pública necessárias para todas e todos. Em contrapartida, o isolamento vertical atingirá majoritariamente os moradores das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras, os trabalhadores da saúde que dedicam suas vidas ao trabalho na ponta da saúde pública e assistência social, os empregados domésticos, os 12 milhões de desempregados e, evidentemente, os encarcerados nas masmorras superlotadas de todos os nossos estados. Estes sim estarão expondo – novamente, aliás – suas vidas ao isolamento vertical. E, mais uma vez, retomará a cidadania vertical no país. 

 

Nas comunidades do Rio de Janeiro, por exemplo, pelo menos sete mortes (notificadas oficialmente) foram registradas em cinco favelas: Rocinha, Vigário Geral, Maré, Manguinhos e Cidade de Deus. É nesse contexto que agora ocorrem as medidas de “higienização” nas comunidades, novamente, onde são alvos privilegiados (como já os são cotidianamente nas operações policiais e sistema prisional) as populações e classes “mais perigosas”: corpos negros, pobres e periféricos. Há, nesse ponto, ainda uma associação entre perigo e a “volta ao trabalho”: se rearticula um discurso de “isolamento” para as comunidades e favelas – “é lá que está o perigo” – ao mesmo tempo que sabe-se que neste momento lá está a maior dificuldade de acesso à renda, educação, saúde e posição home office no mercado de trabalho. Que evidentemente será desigualmente distribuída por raça, gênero e posição social.  

 

Os dados oficiais da pandemia divulgados nesta semana à pedido da Coalização Negra por Direitos (e mais 150 entidades) revelam justamente, com base no último boletim epidemiológico, o que nós sempre soubemos: o coronavírus é muito mais letal entre nós negros, como aponta Tay Cabral. O percentual de óbitos de negros e negras é 32,9% maior que o de pessoas negras hospitalizadas (23,1%). E o mais importante é que 67% dos brasileiros negros dependem integralmente do SUS. Ou seja, não possuem recursos materiais, simbólicos e privados para o tratamento da Covid-19. O Cadúnico (cadastro necessário para os acessos aos programas sociais e rendas mínimas) tem 71,5% de negros, com renda média de R$ 285 por mês. Quando correlacionamos gênero, classe e raça no Brasil, iremos observar que 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza. 

Lembre-se da “divisão sexual do trabalho” relacionada à distribuição diferencial de homens e mulheres no mercado de trabalho e nas profissões associadas prioritariamente à divisão desigual do trabalho doméstico entre os sexos. São desigualdades sistemáticas e reproduzidas a partir de hierarquizações associadas, especialmente, ao trabalho informal e às trabalhadoras da saúde. O isolamento horizontal, logo, é uma medida somente posta para os mais ricos e com capital cultural em todos os países do globo. Entretanto, a especificidade da cidadania vertical no Brasil é que a defesa explícita do isolamento vertical pode vir a ser enunciada pelo Poder Executivo porque para uma parcela da população brasileira o direito à vida, à saúde, à integridade física do corpo – os chamados direitos civis e sociais – só podem ser aceitos e legitimados para uma pequena parcela privilegiada. Que, evidentemente, estará menos exposta ao coronavírus.

 

Afinal de contas, essa é a história de nossa composição do mercado de trabalho formal após a escravidão nos grandes centros urbanos. Essa também é a nossa história – que só começou a mudar poucos anos atrás – com a educação superior, com os cursos de medicina e direito instaurados em poucas capitais para que voltado para as classes altas, compostas de homens brancos. Que constituíam, ao mesmo tempo, a elite política, jurídica e econômica de nosso país. Aliás, essa é também a história dos nossos direitos humanos, onde, os presos oriundos das classes médias e altas intelectualizadas compunham as motivações para as grandes campanhas para a defesa dos direitos humanos. Enquanto os chamados “presos comuns” – vejam que apenas no Brasil essa expressão pode ser verbalizada – ocupavam e morriam nas masmorras brasileiras.

Ora, a defesa do isolamento horizontal, portanto, igualmente distribuído para os diferentes grupos, setores e classes sociais da população – com todos submetidos à mesma medida de quarentena – é algo mais do que necessário. É uma afirmação de cidadania universalizante no Brasil. 

 

Mas infelizmente inconcebível para boa parte dos setores privilegiados. Trocando em miúdos como nos ensina a canção do Chico: o isolamento horizontal está relacionado fundamentalmente a uma concepção prática no espaço social – público e privado – de exercício de uma cidadania plena (parafraseando Parsons no sempre necessário texto sobre a “Cidadania plena para um americano negro”) para todas e todos. O que em nossa história republicana continua a ser tarefa urgente a ser construída e reconstruída cotidianamente: uma cidadania plena para os brasileiros, especialmente, para os negros e negras, os periféricos, as empregadas domésticas, as trabalhadoras da saúde que não querem mais nada de vertical. E sim horizontalidade.      

1  HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad. Pesqui.,  São Paulo , v. 37, n. 132, p. 595-609, Dec. 2007.

2 Parafraseando Parsons no sempre necessário texto sobre a cidadania plena, nos EUA, para os negros.  PARSONS, Talcott. ([1965] 1993), “Cidadania plena para o americano negro? Um problema sociológico”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 8, n. 22, p. 32-61.

Marcelo da Silveira Campos é doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD e professor convidado da Faculdade de Medicina da USP. Pesquisador do INCT-InEAC/UFF. 

* Uma versão sucinta deste texto foi publicada no Boletim “Cientistas Sociais e o Coronavírus” publicados em uma ação conjunta da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Anpocs), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM).

 

Publicamos aqui o artigo da antropóloga Jacqueline Muniz, pesquisadora vinculada ao INCT/INEAC, intitulado A VONTADE DE PODER DA SANTÍSSIMA TRINDADE BOLSONARIANA NA CRUZADA CONTRA OS MENSAGEIROS DO COVID-19.


Há um cálculo na jogada da Santíssima Trindade (Pai, Filho e as Fakenews). A retórica libertária antissistema-"não tô nem aí"-substitui a condução política "impura" do Estado por um comando missionário "puro" da nação. Em vez de agir como governante, age intencionalmente como um mártir destemido, independente e visionário, o ELEITO, que vive o RITO do sacrifício público das desmoralizações, xingamentos e panelaços dos eleitores para se fazer MITO.
"Ser (do) contra" o seu próprio governo é uma tática para obter um poder virtuoso acima da política corruptora da "boa ordem, da boa moral, dos bons costumes". Um jogo do ganha ou ganha de qualquer modo. Ele é a unidade na revolta: um artilheiro solitário do exército "contra tudo que tá aí", contra si mesmo se preciso manipular for. Um artilheiro, com a língua feito mira giratória, que precisa ser perseguido por todos e injustiçado pelos seus. É assim que ele ganha novas adesões. Apresenta-se como a Grande Vítima que serve de saco de pancadas no lugar do povo simples, ordeiro e trabalhador porque é o seu Grande Irmão: aquele que apanha no seu lugar para te defender e, com isso, ter o privilégio de ser sempre o primeiro a bater em você.
Ele é o combatente que, ao sobreviver a agonia de ser traído por dentro, tem a missão heroica de denunciar tudo, todos, ele mesmo. Ele, o (des)político (des)comprometido que faz e desfaz o que não fez para despolitizar o rebanho, provocando um estado de susto que alerta suas ovelhas contra as tramoias dos outros, as raposas da política. Os outros tem ideologia, ele tem a verdade revelada.
A unidade é ele, o profeta que cura o rebanho e o chefe tribal que leva a Terra sem Males. A unidade do pensamento único, totalitário-afetivo que faz crer que os ELEITORES são especiais porque foram por ele ELEITOS quando aceitaram o chamado da cruzada moral libertadora em seus corações. Foram escolhidos para viverem a sina do rebanho imunizado que reconhece a sua desigualdade como "natural" e aceita as perdas de direitos como o preço a ser pago para seguir glorioso na sanha da travessia fantasiosa para a terra prometida. Foram escolhidos para viverem diariamente as batalhas apocalípticas do juízo final porque estão curados pela palavra (des)ideologizadora. Agora, a batalha é contra o COVID e seu exército de mensageiros e devotos (STF, parlamentares, governadores, prefeitos, ministros tomados pelos demônios da OMS, mídias, esquerdistas, etc.) para salvar vida: a vida política dele que foi eleito presidente.

Publicado no site da UFRJ , reproduzimos aqui, o artigo da antropóloga Kátia Sento Sé Mello, professora do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Grupo de Pesquisa Sociabilidades Urbanas, Espaço Público e Mediação de Conflitos (GPSEM/CNPq). Pesquisadora associada ao Núcleo Cultura Urbana, Sociabilidade e Identidades Sociais (Nusis/ESS), do e Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu/Ifcs) da UFRJ e do INCT-Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos/UFF. 

O sistema prisional brasileiro no contexto da pandemia de COVID-19

Por Kátia Sento Sé Mello*

 

Foto: Imagem de Arquivo/Agência Brasil

 

A pandemia provocada pelo novo coronavírus traz à luz o papel fundamental da universidade pública, assim como o papel do Estado na manutenção de políticas públicas e do Sistema Único de Saúde (SUS). Importante, portanto, esclarecer que falo aqui como professora e pesquisadora de uma universidade pública, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Coordeno, juntamente com a professora Christiane Russomano Freire, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), uma pesquisa de natureza comparativa entre Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul sobre as condições e os processos sociais da aplicação do artigo 318 do Código de Processo Penal (CPP), que trata do direito à prisão domiciliar das mulheres gestantes, lactantes e mães de crianças até 12 anos de idade. Esse projeto está cadastrado no Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, sob a coordenação-geral do professor Michel Misse.

Para falarmos sobre o impacto da COVID-19 no sistema carcerário brasileiro, precisamos esclarecer que, com base nos dados do último Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), o Brasil possui, hoje, cerca de 726 mil pessoas em privação de liberdade, mas as vagas disponíveis somam apenas 436 mil (1). Do total da população carcerária, cerca de 250 mil têm algum tipo de doença. O Brasil ocupa o terceiro lugar no ranking mundial de países que mais prendem no mundo, ficando atrás apenas dos EUA e da China. Imaginemos um vulcão prestes a entrar em erupção quando o assunto é encarceramento no momento da pandemia de COVID-19.

A taxa de aprisionamento no Brasil entre os anos 2000 e 2016 foi de 157%, ou seja, em 2000 tínhamos uma população de cerca de 232 mil presos e hoje, 726 mil. Para mostrar o quão perverso é nosso sistema de justiça criminal, a população que potencialmente será mais atingida pela COVID-19 é negra e pobre. Basta ver que é representada por 64% da população prisional em 2016, segundo dados do último Infopen. Isto é, o novo coronavírus tem um poder destruidor no planeta, mas aqueles com menores condições de se proteger do vírus fazem parte da população negra e pobre. 

Condições insalubres potencializam a contaminação

É importante destacar que não há homogeneidade no que se denomina sistema prisional brasileiro, o que, de certa forma, aponta para maneiras distintas de se lidar com a gestão das unidades prisionais. Seja como for, a situação é gravíssima porque, como é do conhecimento de todos, as penitenciárias brasileiras, por oferecerem condições insalubres, potencializam a contaminação e a proliferação de doenças. E o problema não é somente o coronavírus, mas seu potencial de proliferação devido à existência de diversas outras doenças contagiosas que há muito tempo afetam a população carcerária e os servidores responsáveis pela organização e gestão das unidades prisionais. Estima-se que o risco de contágio de tuberculose nos presídios, por exemplo, seja 30 vezes maior do que o risco verificado na população comum. 

Com base no Infopen, a Rede de Observatórios da Segurança destaca que a proporção de presos acima das vagas disponíveis varia em cada estado. Ceará e Pernambuco parecem liderar a superlotação. Ceará tem 173% a mais, Pernambuco, 172%. Rio de Janeiro está com 70% de presos acima das vagas disponíveis. 

Ainda de acordo com esses dados, a Rede de Observatórios da Segurança chama a atenção para a disponibilidade de celas destinadas à observação de pessoas privadas de liberdade que estão doentes:

Rio de Janeiro: 12 celas de 50 unidades; Bahia: 14 de 25 unidades; Ceará: 15 de 36 unidades; Pernambuco: 16 de 76 unidades; São Paulo: 140 de 173 unidades

Vamos lembrar quais são os principais procedimentos para minimizar o risco da rápida proliferação do coronavírus no mundo: em primeiro lugar, evitar aglomerações e contato pessoal; higienização das mãos e das superfícies às quais as pessoas têm acesso; manutenção da ventilação dos ambientes; atendimento imediato daqueles que apresentam os sintomas e o seu isolamento, que, no Rio de Janeiro, se trata do pronto-socorro Hamilton Agostinho, em Bangu, que atende a população carcerária. Então, de um lado, tais orientações gerais que pressupõem um perfil de pessoas com acesso aos bens de proteção e prevenção da disseminação do vírus; do outro, as condições paradoxais em que se encontram os presídios, que favorecem o justo oposto.

As pessoas encarceradas já têm as vidas marcadas pela ausência de políticas de saúde, educação, habitação e emprego, para dizer o mínimo. Como é o ambiente prisional? É insalubre, lotado, sem ventilação, tem problemas advindos da inconstância no fornecimento de água. Em algumas unidades as celas são projetadas para 12 pessoas, mas são ocupadas por 50 ou 60. O atendimento médico é precário e os serviços técnicos de enfermagem, serviço social e psicologia sofrem em virtude de uma organização que não conta com plano de cargos e salários nem formação continuada dos servidores, também sujeitos à precariedade das unidades prisionais. Como podemos ver, as condições são propícias ao desenvolvimento e contágio de doenças dos mais diversos tipos. Ainda que houvesse servidores suficientes para atender as pessoas doentes nas unidades prisionais, de nada adiantaria, porque elas, mesmo depois de atendidas − vejam bem, não quero dizer pessoas tratadas ou cuidadas, mas apenas atendidas −, continuam no mesmo lugar onde desenvolveram as doenças.

A tuberculose, a sarna, o HIV e a sífilis são doenças comuns e não tratadas em muitas unidades prisionais no Brasil. Já sabemos quais são os fatores que contribuem para desenvolvimento e transmissão dessas doenças.

Ausência de profissionais de saúde

No sistema prisional do Rio de Janeiro, a água é um bem intermitente. Até o momento não há previsão de aumento de fornecimento de água para que as pessoas privadas de liberdade possam higienizar as mãos e, muito menos, para lavar o chão, as paredes e os objetos de uso pessoal. Como evitar aglomeração e contato pessoal se os  encarcerados dividem celas superlotadas e mais de uma pessoa compartilha a mesma cama para dormir? Tal quadro é o que tem permitido a transmissão de tuberculose, meningite e, atualmente, a presença de casos de sarampo, especialmente na Penitenciária Ary Franco, conforme identificado pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT-RJ) nos presídios. Do mesmo modo, as orientações sobre o atendimento médico qualificado batem de frente com a ausência de profissionais de saúde nas unidades prisionais. Os que existem devem dar conta de um número elevadíssimo de doentes que se encontram no cárcere. Na maioria das vezes, tendo que ser atendidos pelos servidores que atuam no cotidiano das unidades. O que dizer, ainda, da vulnerabilidade desses servidores, submetidos  ao mesmo ambiente das pessoas internas?

No último dia 13/3, o governador do estado do Rio de Janeiro emitiu um decreto que previa a suspensão de todas as visitas em unidades prisionais, mesmo as íntimas e familiares; a suspensão das visitas dos advogados e do deslocamento de presos para suas audiências. No mesmo dia, o Ministério Público pediu ao juiz titular da Vara de Execuções Penais (VEP-RJ) a suspensão das saídas de todos os presos, incluindo aqueles que cumprem regime semiaberto. Dessa forma, não somente a VEP como também o MP do estado não parecem alinhados às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e das autoridades de vigilância sanitária e de saúde nacionais e internacionais.

Diversas vozes se levantaram contra tal decreto. Além do Conselho Nacional dos Defensores Públicos, outras entidades da sociedade civil apontam para o impacto da disseminação da COVID-19 não somente na população carcerária, mas em toda a sociedade. O Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e outras entidades em níveis locais e nacional têm alertado para o problema e demandado determinadas medidas de contenção do vírus. A Frente Estadual pelo Desencarceramento, por exemplo, desde o dia 20/3 monitora o funcionamento do sistema prisional durante a pandemia.

O MEPCT-RJ, em 2018, redigiu o relatório Sistema em Colapso: Atenção à Saúde e Política Prisional no Estado do Rio de Janeiro, sobre o tema da saúde nas prisões brasileiras, e já havia alertado para o colapso do sistema prisional. Além disso advertiu que medidas fossem tomadas e embasadas no saber técnico, médico e sanitário. Dessa forma, o MEPCT considera que uma diretriz de desencarceramento é emergencial para a contenção dos danos provocados pela pandemia de COVID-19.

Grupos de risco devem ser transferidos para regime domiciliar

A Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, por outro lado, alertaram e demandaram que sejam cumpridas medidas de atendimento à população carcerária neste momento de pandemia. Dessa forma, os defensores públicos pedem que os presos classificados como grupo de risco – idosos, hipertensos, diabéticos, portadores de doenças crônicas, gestantes ou lactantes, entre outros – possam ser transferidos para um regime domiciliar ou que sejam analisadas outras medidas alternativas. É imprescindível que haja álcool em gel 70% nos presídios, além de sabonetes e material de limpeza tanto para as pessoas privadas de liberdade como para os servidores. Devemos lembrar que o Supremo Tribunal Federal, desde 2016, estabeleceu a Súmula Vinculante nº 56, que determina critérios para a antecipação da progressão penal, por exemplo, do regime fechado para o semiaberto. Apesar disso, o mesmo relator dessa súmula, diante da pandemia do coronavírus, não considerou as alternativas penais que havia defendido na ocasião.

A pandemia atual coloca em evidência a tradição escravocrata histórica brasileira e de disputa entre os poderes. Não somente torna explícita a vulnerabilidade de segmentos da população como pobres e negros, como também a disputa política entre as diferentes esferas do poder sobre quem tem o direito de dizer qual medida de proteção deverá ser adotada. Embora tenhamos um regime de Estado Democrático de Direito no qual a Constituição de 1988 é a maior expressão, que garante formalmente princípios republicanos, nossa estrutura jurídica tradicionalmente não assegura a aplicação igualitária de direitos a todos os cidadãos. As decisões a respeito da recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para agilizar a soltura de doentes crônicos, idosos com mais de 60 anos, mulheres lactantes ou grávidas, que não cometeram crime com violência, colocando aspas na definição dos crimes sem violência, não são acatadas por todos os juízes em todos os tribunais no Brasil. Determinar que eles analisem caso a caso não resolve o problema.

Grávidas e mães de crianças com até 12 anos têm tido seus direitos negados

O fato é que o chamado sistema prisional ou sistema de justiça criminal não parece um sistema, pois não somente suas diferentes instâncias de poder não conseguem concordar com as medidas necessárias para salvar a vida das pessoas encarceradas, como também não há o intercâmbio entre as diferentes instâncias no percurso que vai da prisão de alguém até a sua alocação em uma unidade. Nesse percurso muitos direitos são violados. Mulheres grávidas ou mães de crianças com até 12 anos de idade têm tido negados seus pedidos da conversão da prisão preventiva para a domiciliar, violando, de certa forma, o que determina o artigo 318 do CPP. Embasadas em valores morais, as justificativas dos magistrados nas sentenças ignoram que muitos atos considerados criminosos não implicam violência − e essas mulheres são lançadas às prisões, mais por questões morais, que incidem sobre as expectativas do papel feminino na nossa sociedade, do que propriamente pelo ato praticado.

Há que se perguntar sobre as possíveis medidas, inclusive jurídicas, que poderiam ser tomadas diante do impacto do coronavírus na população carcerária. Eu diria que, neste momento de urgência, é fundamental seguir os procedimentos aconselhados pela OMS, pelo Ministério da Saúde e por autoridades sanitárias e governos dos estados: aplicar os dispositivos legais que levam ao desencarceramento de pessoas vulneráveis. É urgentíssimo que aqueles com maior vulnerabilidade no sistema prisional tenham a liberdade garantida para serem tratados em casa. No entanto, em longo prazo, toda a política prisional no Brasil e no mundo precisa ser repensada, inclusive a própria noção de crime. No país, observamos que foi ampliado o número de comportamentos  classificados como criminosos, o que contribui largamente para o maior encarceramento da população pobre, jovem e negra.

Seletividade penal

 

Foto: Acervo pessoal

 

No Brasil, em particular, que possui uma sociedade forjada na realidade da escravidão, o punitivismo e a violência têm sido os norteadores das decisões políticas dos magistrados e governantes, assim como das instituições de controle da criminalidade e segurança pública. Há cinco séculos, o punitivismo e a violência mostram-se ineficazes. O encarceramento em massa segue a lógica da seletividade penal: joga nas prisões, sobretudo, uma população jovem, negra e pobre, cujas condições de existência já a destituíram do usufruto de bens e riquezas que podem ser produzidos pela sociedade. Temos outras alternativas? Sim, temos.

Precisamos construir um projeto de sociedade que contemple políticas públicas em todos os níveis da vida humana: saúde, educação, habitação, trabalho, assistência e previdência. A pandemia da COVID-19 demonstrou a necessidade premente dessas políticas, além de ser um divisor de águas para repensarmos nosso projeto de civilização. 

E o que dizer da política antidrogas no Brasil? Enquanto houver proibição do consumo e mais punição, nunca romperemos com a cadeia perversa que joga diversos jovens em uma rede de violências entre si e com os agentes da segurança pública. A atual política antidrogas serve para deixar nas cadeias pessoas que, em maior parte, são  jovens, negros e pobres; ou seja, a lei antidrogas é também seletiva. No Rio de Janeiro, os principais motivos que levam as mulheres à prisão são o envolvimento em contextos do tráfico de drogas, seguido por roubo e furto, que representam crimes contra o patrimônio. O que isso significa? Elas não cometeram nenhum crime violento contra a pessoa, cuja máxima expressão é o homicídio. Sendo assim, algumas das medidas para evitar o encarceramento em massa e os sérios problemas advindos da pandemia são: a descriminalização de drogas ilícitas, a despenalização e, mesmo, a extinção de certas condutas das leis penais.

Outras medidas de longo prazo, mas urgentes, são aquelas destinadas ao desarmamento dos conflitos −  não quero dizer a eliminação dos conflitos, já que eles são constitutivos da vida em sociedade. Falo sobre a ampliação de experiências de formas não violentas de administração dos conflitos. Em algumas unidades prisionais no sul do Brasil, a experiência da justiça restaurativa tem promovido um reconhecimento maior da dignidade da pessoa presa. A justiça criminal deve dar lugar a formas de conciliação e reparação mobilizadas pela própria sociedade, assim como ao desenvolvimento de formas terapêuticas para o acolhimento de submetidos ao sofrimento em sua condição existencial e prisional. 

(1) Total da população prisional no país: 726.354. Fonte: Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - Infopen, Junho /2017; IBGE, 2017. Dados referentes a dezembro de 2016. Disponível em http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/i....

* Kátia Sento Sé Mello é professora do Departamento de Política Social e Serviço Social Aplicado e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Líder do Grupo de Pesquisa Sociabilidades Urbanas, Espaço Público e Mediação de Conflitos (GPSEM/CNPq). Pesquisadora associada ao Núcleo Cultura Urbana, Sociabilidade e Identidades Sociais (Nusis/ESS), do e Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu/Ifcs) da UFRJ e do INCT-Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos/UFF. Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).  

O site do INCT/INEAC reproduz aqui o artigo "O coronavírus evidencia as desigualdades estruturais de nossa sociedade", publicado no Blog Ciência e Matemática do O GLOBO = https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/o-coronavirus-evidencia-desigualdades-estruturais-de-nossa-sociedade.html ,  escrito pelos pesquisadores Roberto Kant de Lima, com Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo e Flávia Medeiros . 

 

VÍRUS E DESIGUALDADES SOCIAIS

O coronavírus evidencia as desigualdades estruturais de nossa sociedade

O paradoxo da pandemia na República: um pandemônio nos conflitos entre a saúde pública, estratégias eleitorais e a governança “do povo para o povo”?

Roberto Kant de Lima, com Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo, Flávia Medeiros, respectivamente coordenador e pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).

 

Nos últimos anos temos nos dedicado a pesquisar as representações e práticas do direito no Brasil e em outros países ocidentais. Esse contraste tem nos mostrado como o direito brasileiro hierarquiza a nossa população em termos de direitos. Ou seja, entre nós, apesar dos preceitos constitucionais republicanos, não há uma estrutura jurídica ordinária que garanta o exercício de um mínimo de direitos comuns a todos os diferentes cidadãos. O que há é a aplicação de um conjunto de privilégios atribuídos a certos segmentos da sociedade, sejam eles detentores do capital ou trabalhadores. A diferença em relação às demais sociedades ocidentais é, portanto, que nelas a desigualdade é vista como um problema. A inexorável desigualdade econômica produzida pelo o mercado é que deve gerir as desigualdades sociais, e o sistema jurídico deve atuar para mitigá-las. Já aqui a desigualdade está inscrita no próprio sistema jurídico, como parte integrante e indispensável dele, sistematizando juridicamente as desigualdades sociais, políticas e econômicas. Essa naturalização da desigualdade jurídica, anterior à desigualdade econômica, é um obstáculo ao funcionamento regular e regulado do mercado e uma expressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada, constituindo-se também em referência e suporte para sua reprodução, onde pode florescer um individualismo perverso, que nunca se identifica com o “outro”, mesmo que este seja seu semelhante.

 

Essa pandemia coloca em evidência mais uma vez essa naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus diferentes níveis. Inicialmente, as chamadas medidas sanitárias – lavagem constantes das mãos com água e sabão – e restritivas de circulação, como a necessidade de praticarmos um “isolamento social” - o qual, na verdade, é um confinamento social que de isolamento nada tem - coloca o foco na suposição de que todos temos, de maneira uniforme, o exercício de um direito mínimo à moradia e ao saneamento, o que não é verdadeiro. O problema habitacional no Brasil faz com que nos deparemos com infraestruturas urbanas altamente precarizadas no que tange à mobilidade urbana e ao saneamento, como por exemplo, as das denominadas favelas ou “comunidades”, existentes em toda a região metropolitana do Rio de Janeiro e também em outras de nossas cidades e metrópoles. A inexistência de políticas públicas devotadas ao planejamento urbano que propicie o exercício deste direito hoje evidencia uma enorme distância entre os segmentos da classe média urbana e os segmentos menos favorecidos da população no que tange ao seu bem estar no espaço doméstico.

 

Esta desigualdade se manifesta, ainda, no fato de que os segmentos superiores da sociedade, além de poder ficar no conforto de suas casas, podem deslocar-se para as casas de campo e veraneio, confinando-se com suas famílias. Claro que também contando com toda a estrutura de empregados e serviços à disposição, mostrando a total falta de solidariedade e de compaixão com a situação dos trabalhadores domésticos. Confinamento este que também impõe dificuldades suplementares principalmente às mulheres nessa nova conformação social, como a sobrecarga do trabalho doméstico, das mães que tomam conta sozinhas dos filhos, e no seu efeito perverso, que é o aumento do registro de casos de violência doméstica e de feminicídios, o que nos faz refletir sobre as condições sociais e emocionais que definem o "lar" e a casa, ambientes vinculados aos papéis sociais das mulheres e que se tornam o principal terreno para a emergência dos conflitos.

 

Em segundo lugar, a pandemia torna explícita nossa tradição escravocrata ao colocar em risco pessoas e setores mais vulneráveis da sociedade que hoje se encontram numa condição ainda mais precária e perigosa quanto ao seu direito ao trabalho, bem como a sua segurança sanitária, já que milhões de trabalhadores e trabalhadoras são obrigados de forma desumana a cumprirem suas jornadas de trabalho, deslocando-se por meio de precária e congestionada rede de transportes públicos, inclusive sem as proteções sociais e sanitárias necessárias nesse momento de crise, tudo isso estimulado por uma espantosa propaganda governamental alheia às prescrições mínimas de segurança sanitária e do trabalho, ao arrepio do resto do mundo.

 

As comparações com outros contextos têm se concentrado na (in) capacidade de acolhimento da infraestrutura de saúde. Mas os regimes de proteção social e do trabalho das democracias europeias são muito uniformes e presentes no cotidiano dos cidadãos e funcionam como articuladores de políticas em nível nacional. Em contraste, no Brasil, as medidas restritivas severas adotadas pelos governadores dos estados têm atingido apenas uma pequena parcela da sociedade que tem acesso a direitos como moradia, saneamento, saúde e trabalho. Já as políticas do governo federal têm ido na direção de que os cidadãos podem lidar com seus recursos próprios com as consequências imprevisíveis do contágio.

 

Finalmente, a crença na eficácia das políticas com ênfase repressiva na saúde e na segurança, seja de “tratamento de doenças”, seja do “tiro, porrada e bomba” – sempre para os “outros” - são condições que dificultam a adoção de medidas preventivas com adesão universal da sociedade. A falta de proteção no trabalho e a falta de confiança nas autoridades públicas limitam a difusão de políticas restritivas compreensíveis para a sociedade, provocando seu descumprimento, seja por necessidade, seja pela arrogância daqueles que se acham acima da lei e das regras, que devem se aplicar apenas aos “outros”, muito difundida entre nós, mas mais explícita nos segmentos hierarquicamente superiores de nossa sociedade.

 

Para complexificar mais ainda o problema, essas medidas se tornaram objeto de disputa política, em um governo federal que se alimenta de crises para fortalecer-se no poder e ocultar seus eventuais descaminhos. Utilizou-se desde a campanha eleitoral de estratégias negacionistas, de desqualificação sistemática e universal dos contendores e dos seus argumentos, replicando a lógica medieval da disputatio, tão cara ao nosso direito processual e à formulação do saber jurídico nacional. Encerrado o período eleitoral, no entanto, prosseguiu governando de modo virtual com essa lógica nas mídias sociais, desprezando práticas de criação de consensos e união de esforços para formular, propor, aprovar e implementar políticas públicas. Mas a negação do conhecimento científico, o ataque sistemático à necessidade e qualidade dos serviços públicos chocou-se com a realidade de uma pandemia, fenômeno que ultrapassa em muito as fronteiras mesquinhas dessa luta política eleitoral.

 

Um ponto relevante a se notar é a banalização com que essa estratégia de implementação de ações governamentais tem se sustentado. Recentemente revogou-se parcialmente uma Medida Provisória (MP) no que se referia à suspensão do contrato de trabalho sem salário, atribuindo-se essa normativa esdrúxula, no meio de uma pandemia, a um “erro de redação”. Ora, isto mostra a inabilidade desta gestão em relação às regras de funcionamento da própria burocracia institucional, coisa que já vimos discutindo há tempos no que se refere às instituições de segurança pública. Desprezam-se as regras e menosprezam-se os protocolos porque não se acredita na eficácia da racionalidade burocrática. A burocracia que é, antes de tudo, uma memória e uma proteção protocolar das prerrogativas e decoro dos governantes e do direito de governados, é vista como um empecilho para a tomada de decisões, por impedir o exercício arbitrário da autoridade. Uma leitura possível desse “erro” é a de falta de articulação com os empresários e trabalhadores para se elaborar uma MP pertinente para a situação atual. Outra leitura possível é a de uma tentativa de controlar a pauta do debate público, em uma já conhecida estratégia desse governo em produzir crises de forma sistemática para desviar-se de temas negativos a sua imagem, e/ou uma tentativa de pressionar as instituições, na base do “se colar, colou”.

 

Por outro lado, seja lá de quem for sua autoria, ela revela valores resilientes dessa matriz escravocrata da sociedade brasileira que, reiteradamente, em diferentes circunstâncias, como já dito, demonstra seu desprezo pelos direitos de cidadania de determinados setores da sociedade brasileira, ainda vistos como um seu segmento hierarquicamente inferior. Essa MP é uma forma moderna e institucional de reproduzir a lógica do trabalho escravo, ainda, infelizmente, tão presente em nossa sociedade, na contramão das necessárias políticas de apoio governamental urgente a empresas que não demitam e aos trabalhadores autônomos e desempregados, estratégia que vem se universalizando entre os países atingidos.

 

Esta experiência coletiva das medidas sanitárias restritivas e os prejuízos sociais e humanos, provavelmente, muito desiguais entre os poucos com proteções sociais e os muitos sem nenhuma, produzirá reflexões sobre o papel da política profissional; dos investimentos nas políticas sociais e proteção ao trabalho; do papel da ciência na sociedade e na produção de políticas públicas — especialmente, mas não exclusivamente, de saúde pública, representada pelo SUS — e no bem estar social. Como o vírus, apesar de atingir de modo mais óbvio os pobres, também atinge a classe média e os ricos, todos dependentes das pesquisas públicas de produção de diagnósticos e de vacinas, essa circunstância pode explicitar com mais eficiência a relevância da ciência, da educação e da saúde públicas em nosso país e na própria reprodução do sistema capitalista.

 

Por outro lado, devemos considerar que nosso mundo é feito de crises. Vivemos sistematicamente em crises, pois essa foi a opção econômica, política e social que a sociedade ocidental escolheu. Prognósticos para o futuro costumam ser projeções de eventos passados mas, aparentemente, este é um evento – e um vírus – com características ainda desconhecidas.

 

Então, quem sabe iremos acentuar ainda mais nosso fechamento para o outro, com o reforço de ideologias nacionalistas e territorialistas – pautadas pela ideia de que “farinha pouco, meu pirão primeiro” – ou, pelo contrário, iremos produzir um sentido de universalidade da humanidade que confira às práticas sociais um outro modo de fazer a sociedade, fundada na compreensão de que somos uma coletividade planetária? Mas isso, só o futuro nos dirá.

Página 48 de 95