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Claúdio Salles

Claúdio Salles

Vem aí o 11º Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito (S&D11), organizado pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. O evento acontecerá de forma remota e gratuita entre os dias 7 e 9 de dezembro de 2022 e terá como tema “Políticas Afirmativas, Inclusão Social e Democracia “.

Até o dia 07/10/2022 é possível que doutores e doutorandos, se acompanhados por ao menos um doutor, encaminhem propostas de Grupos de Trabalho (GT) para integrar o evento. Posteriormente, receberemos os resumos expandidos. Esperamos contar com sua contribuição para ampliar nossas discussões e, assim, enriquecer nosso evento tornando-o cada vez mais um espaço de reflexões e debates críticos, sobretudo pelo viés interdisciplinar, das ciências jurídicas, sociais e humanas em nosso país.

O edital do S&D 11 encontra-se hospedado no site: http://seminariointersociologiaedireito.uff.br/

 

 

Os confrontos armados são um dos problemas que mais afetam o ensino no Rio de Janeiro. Apenas no município, 1/3 das mais de 1.500 escolas estão localizadas em áreas consideradas de risco, segundo dados da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Relatório divulgado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) mostra que 1.154 escolas da rede de ensino municipal foram afetadas por tiroteios em 2019. O impacto da violência naquele ano mudou a rotina de 74% das unidades escolares da rede municipal devido a operações e tiroteios, deixando 450 mil estudantes sem aula.

Para agravar a situação, a pandemia de Covid-19 em 2020 provocou o crescimento da evasão escolar. Gestores da educação pública no Rio de Janeiro estimam que só na capital, 25 mil alunos abandonaram as escolas do município no último bimestre de 2021. Na rede estadual, cerca de 80 mil estudantes podem ter desistido dos estudos. A Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro apurou que 11% do total de alunos matriculados tiveram menos de 75% de frequência nas atividades presenciais ou a distância. A falta de condições, como as limitações impostas pelo confinamento, a incapacidade de acesso a computadores e celulares, ou até mesmo à rede de conexão com a internet aumentaram o distanciamento dos alunos das escolas.

O livro "Educação e favela: refletindo sobre antigos e novos desafios" é uma coletânea de artigos, resultado do "Seminário Educação e Favela", que reuniu cerca de 300 pessoas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em setembro 2019, realizado pelo Núcleo de Pesquisa Educação e Cidade (Nupec/Edu), em parceria com o Núcleo de Estudos sobre Periferias (NEsPE/FEBF), o Laboratório de Etnografia Metropolitana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LeMetro/IFCS-UFRJ) e o Instituto Nacional de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (INCT-InEAC/UFF). 

Capa do livro, que reúne coletânea de artigos apresentados no seminário homônimo realizado na Uerj

Assim como o evento que o originou, a obra, lançada pela Consequência Editora, com recursos do Programa de Apoio à Editoração, da FAPERJ, problematiza algumas questões contemporâneas relevantes acerca da relação entre educação e favela, tendo como horizonte as condições históricas, sociais e urbanas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Para tanto, reúne dez capítulos estruturados em torno de dois eixos temáticos: "Desigualdades urbanas e desigualdades escolares: o caso das favelas do Rio de Janeiro" e "Os impactos da violência armada sobre as escolas públicas". Entre os autores, pesquisadores de diversas instituições e distintas formações – como antropologia, sociologia, história, pedagogia –, além de professores da rede pública de ensino (municipal e estadual), configurando uma grande variedade de abordagens e análises sobre diferentes temáticas e desafios que envolvem o complexo universo da educação e as favelas. 

A antropóloga Leticia de Luna Freire, organizadora da obra junto com a também antropóloga Neiva Vieira da Cunha, conta que entre os cinco primeiros capítulos da primeira parte estão o artigo de Marcelo Burgos, professor e pesquisador do Departamento de Ciências Sociais e coordenador do Curso de Especialização em Sociologia Política e Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Seu estudo focaliza os impactos da segregação socioespacial sobre o trabalho escolar e o pouco preparo das escolas para lidar com estudantes e famílias moradores de favelas. A remoção de favelas é tema de dois outros artigos dessa primeira parte do livro. Anna Cecília Costa da Silva, professora de Geografia da rede municipal do Rio de Janeiro e de Duque de Caxias e mestre em educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGECC/FEBF-UERJ) apresenta os resultados da sua pesquisa com alunos de uma escola pública de Duque de Caxias que vivenciaram a remoção da favela vizinha Teixeira Mendes. E a própria Letícia de Luna assina outro artigo acerca dos resultados de oficinas realizadas com crianças e jovens da favela Metrô Mangueira, removida para dar lugar à ampliação do Complexo Esportivo do Maracanã, por ocasião da Copa do Mundo de 2014. 

A segunda parte da coletânea reúne outros cinco capítulos com foco em um tema que, segundo os autores, se torna cada vez mais incontornável e urgente: os múltiplos impactos da violência armada sobre as escolas públicas. Esse tema é o foco do artigo assinado por Edson Diniz, oriundo de uma das favelas que compõem o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Formado em história pela Uerj e doutor em Educação Brasileira pela PUC-Rio, Diniz foi professor da rede pública e privada durante 20 anos, fundou a Redes de Desenvolvimento da Maré e criou o Núcleo de Memória e Identidade dos Moradores da Maré. Em seu artigo, ele fala das relações entre escolas públicas-famílias nos territórios populares e o papel da escola pública em territórios vulneráveis. 

Já o estudo do professor adjunto do Departamento de Sociologia do Instituto de Ciências Sociais da Uerj Eduardo Ribeiro aborda o impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) sobre a educação pública, enquanto os pesquisadores Mario Brum, professor do Departamento de História da Uerj, e Rosana Muniz, pedagoga e professora da rede municipal de ensino do Rio, analisam o impacto de tiroteios frequentes sobre o cotidiano de uma escola pública no Complexo do Chapadão. A violência como tema do cotidiano de escolas públicas e a marginalização também é tema do estudo do antropólogo Marcos Veríssimo em uma escola pública de São Gonçalo.  

Neiva Vieira da Cunha (esq.) e Leticia de Luna Freire autografam o livro que avalia os impactos da segregação socioespacial sobre o trabalho escolar 

Os pesquisadores concluem que as diversas questões e abordagens reunidas no livro denotam a impossibilidade de dissociação entre favela e educação de temas como segregação socioespacial, moradia, remoção, racismo, estigma e segurança pública, entre outros. O objetivo da coletânea, ressaltam, não é reforçar estereótipos ou dogmas historicamente construídos, mas identificar as resistências e reconhecer as potencialidades de atores e grupos sociais que compõem este universo e contribuir para a formulação de políticas públicas ancoradas nos princípios de justiça e igualdade. 

Para avaliar os efeitos da pandemia sobre a educação, Leticia de Luna Freire, como coordenadora do Núcleo de Pesquisa Educação e Cidade (NUPEC/EDU-UERJ) e seus colegas Marcelo Burgos (PUC-Rio) e Mônica Peregrino (UniRio), promoveram em 2020, em plena pandemia, o Ciclo de Debates "Escola municipal, eleições e pandemia". A suspensão das aulas e a dificuldade de muitos alunos em acompanhar o ensino remoto agravou o já frágil vínculo dos alunos, aumentando a evasão escolar. Eles concluem que o impacto da pandemia será longo, que as mudanças impostas pela pandemia em um mundo dominado pelas novas tecnologias de comunicação tendem a repercutir em dimensões muito fundamentais da vida contemporânea, como o aumento do home office. Os pesquisadores também estão certos de que em meio a esse cenário de muitas dúvidas é preciso conciliar a defesa da escola como agência fundamental para as sociedades e para as democracias em especial. Para eles, a reabertura das escolas e a retomada das aulas exige todo um esforço de construção de consensos, desde sobre o que é efetivamente fundamental da rotina escolar e que precisa ser preservado, mas também sobre uma geração e, no limite, na sociedade como um todo.

O documento lembra que o direito à educação pública e a universalidade do acesso à educação básica no Brasil são conquistas relativamente recentes, garantidas apenas a partir da Constituição de 1988. As conclusões dos debates foram organizadas em dois grandes eixos. O primeiro trata da qualidade e intensidade do vínculo escolar, o segundo interpela a organização institucional do sistema escolar, mais especificamente suas formas de organização a partir da compreensão da escola como instituição social, entre outras. No entanto, os pesquisadores consideram que um dos impactos mais importantes da pandemia sobre a educação escolar é a oportunidade para que se revisite convicções e práticas já cristalizadas sobre o trabalho escolar, fazendo com que a questão do vínculo e da organização institucional sejam indissociáveis do debate público. 

O Relatório dos Conflitos de natureza étnico-racial-religiosa: Análise de Notícias e Denúncias no Rio de Janeiro (2006-2021) é resultado de uma pesquisa com mais de cem matérias jornalísticas e com dados do Disque Denúncia realizada pelo novo grupo de pesquisa Ginga UFF, que integra o INCT-Ineac. Coordenado pela professora do departamento de Antropologia da Universidade Federal Fluminense, Ana Paula Miranda, o relatório aponta que, nos últimos quinze anos, houve um aumento no número de denúncias sobre racismo religioso vitimando as religiões de matriz africana.

No que diz respeito as violações, as ocorrências midiáticas mostram que além das violações sofridas por grupos armados e por religiosos de perfil evangélico-pentecostal há a violência provocada pela tanto omissão do Estado, que pouco ou quase nada faz para enfrentar esse problema.

Confira no relatório os dados e os apontamentos realizados pelo grupo de pesquisa Ginga UFF sobre os conflitos de natureza étnico-racial-religiosa no Rio de Janeiro que será lançado hoje no Laboratório, Estudo Multimídia Multiusuário INCT/InEAC e no YouTube do InEAC. 

Confira, em anexo abaixo para download, a íntegra do Relatório dos Conflitos de natureza étnico-racial-religiosa: Análise de Notícias e Denúncias no Rio de Janeiro (2006-2021) 

 

 Reproduzimos aqui a matéria publicada no jornal A TRIBUNA RJ sobre a construção de um Resort na restinga de Maricá.

https://www.atribunarj.com.br/justica-concede-decisao-favoravel-a-construcao-de-resort-na-orla-de-marica/

 

Justiça concede decisão favorável à construção de resort na orla de Maricá

Obras do empreendimento Maraey devem começar já nas próximas semanas

Ontem (20), a desembargadora Margaret de Olivaes Valle dos Santos, da 18ª Câmara Cívil do Tribunal de Justiça do Rio, acolheu os recursos interpostos pelo município, estado e pela IDB Brasil, responsável pelo projeto do Resort Maraey e proferiu decisão que permite a continuidade da instalação empreendimento.

Com a nova decisão, foi suspensa a ação judicial contrária à construção do Resort Maraey, que fica localizado em uma Área de Proteção Ambiental (APA). Um despacho do juiz  da 2ª Vara Cível, onde tramita o processo, mandava cancelar as licenças do empreendimento no mês passado. Na ocasião, a Prefeitura de Maricá também foi obrigada a atestar o cancelamento do alvará de obras e impedida de qualquer medida que possa autorizar o empreendimento à época.

 

Sendo assim, a segunda maior Reserva Particular do Patrimônio Nacional (RPPN) de restinga do Estado, cumpre seu papel e todos os ritos legais para tal promovendo à comunidade local, o impulso econômico da região e a geração de milhares de empregos.

De acordo com o organograma, as obras começam nas próximas semanas. Em nota, a IDB Brasil, responsável pelo projeto Maraey, confirmou que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), atendendo a recursos interpostos pela empresa, pelo município de Maricá e pelo Estado do Rio de Janeiro, suspendeu os efeitos de despacho contrário do juiz de Maricá, que mandava cancelar as licenças do empreendimento, o que permite a continuidade do processo de instalação do projeto Maraey.

“Desta forma, cumprindo todos os ritos legais e com o compromisso de ser referência mundial em sustentabilidade – com a constituição da segunda maior Reserva Particular do Patrimônio Nacional (RPPN) de restinga do Estado, o apoio à comunidade local e o impulso econômico da região, com a geração de milhares de empregos – a IDB Brasil comunica que iniciará as obras do empreendimento nas próximas semanas”, diz o comunicado da empresa.

Já a desembargadora Margaret de Olivaes Valle dos Santos, da 18ª Câmara Cívil do Tribunal de Justiça, emitiu comunicado no qual diz “que a decisão fixou prazo de 15 dias para cumprimento de obrigações, inclusive de pagamento que, ao meu ver, se afigura um prazo exíguo diante da extensão e abrangência das referidas obrigações que incluem cancelamento liminar de licença ambiental já deferida, sem oportunizar aos entes públicos envolvidos, ora agravantes, a possibilidade de se manifestar.

Embora a hipótese envolva direito ambiental cuja importância hoje, mais do que nunca, precisa ser considerada em grau máximo, esta circunstância por si só não justifica o descumprimento de princípios processuais o que resultará em cerceamento de defesa e violação ao devido processo legal o que só irá prolongar o curso deste processo que já tramita há mais de 10 anos”, diz a desembargadora.
Também procurada, a Prefeitura de Maricá não se pronunciou até o fechamento da matéria.

Primeira fase das obras

Será implantado o viário principal do empreendimento, doado ao município e servirá de eixo importante entre Itaipuaçu e Ponta Negra, melhorando a comunicação entre estes distritos e o trânsito na rodovia RJ-106.

Vale ressaltar que nesta etapa, será realizada a Regularização Fundiária de Zacarias, com entrega dos títulos de propriedade a todos os moradores da comunidade, assim como a requalificação urbana da região, com implantação das mesmas estruturas urbanas do empreendimento.

Em paralelo às obras, serão implantados programas ambientais para a recuperação e divulgação da cultura familiar de Zacarias e incentivo à Pesca Artesanal, com a criação da Casa do Pescador.

Junto ao Inea (Instituto Estadual do Ambiente), a empresa segue para a criação da segunda maior Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) de restinga do Estado do Rio, e quinta do Brasil, com 440 hectares, que vai garantir a proteção integral e perpétua do ecossistema local.

Está em curso também o projeto para a criação e instalação do Centro de Referência Ambiental em parceria com cinco das mais importantes universidades do país (UFRRJ, UFF, UFESO, FURG e UFRJ) para estudos e mapeamento da fauna e da flora local, com o objetivo de aprofundar as pesquisas sobre o patrimônio natural da região. Além dos três primeiros hotéis de Maraey, que vão movimentar significativamente a economia e o turismo de Maricá e do Estado do Rio, gerando milhares de empregos.

 

 

 

Disponibilizamos aqui a matéria "UFF e a intolerância às religiões de matriz africana" , publicado no jornal A TRIBUNA - RJ e que traz a participação da antropóloga Ana Paula Mendes de Miranda (UFF), pesquisadora vinculada ao INCT/INEAC.

Confira a matéria pelo link: https://www.atribunarj.com.br/uff-e-a-intolerancia-as-religioes-de-matriz-africana-nenhum-estado-e-neutro/

 Ou leia abaixo.

 

UFF e a intolerância às religiões de matriz africana. “Nenhum Estado é neutro”

Especialista se aprofundou no estudo em 2008 por causa de questões como a expulsão de terreiros do Morro do Dendê, Ilha do Governador, por ordem de traficantes evangélicos da região

Foto: O Candomblé é uma religião brasileira. Não existe na África.

Vestir-se de branco no ano novo, pular sete ondas, deixar flores no mar: esses costumes típicos do Brasil foram incorporados a partir da cultura das religiões de matriz africana, trazidas pelo povo negro escravizado no Brasil.

Apesar disso, frequentemente a associação entre esses comportamentos e as crenças afro-brasileiras são perdidas ou apagadas. Para além disso, os ataques às crenças de matriz africana em conflitos de natureza étnico-religiosa que envolvem outros credos não são uma constante.

Legislações como o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), no entanto, buscam proteger as religiões afro-brasileiras, reivindicando, por exemplo, o direito à liberdade de crença e o livre exercício desses cultos religiosos.

Na Universidade Federal Fluminense (UFF), as ciências sociais contam com a extensa pesquisa sobre a intersecção entre raça e crença da professora Ana Paula Miranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA).

A docente trabalha com a temática da intolerância religiosa desde 2008, quando conheceu um grupo ativista da causa no Rio de Janeiro. “Com o grupo, percebi, já naquela época, questões como a expulsão de terreiros do Morro do Dendê, Ilha do Governador, por ordem de traficantes evangélicos da região. Desde então, estudo esse assunto nos estados do Rio de Janeiro, Alagoas e Sergipe. Importante falar que a abordagem da Antropologia com a qual trabalho explora a dimensão contrastiva, uma perspectiva importante para pensar a realidade de modo relativizado”, conta.

Intolerância x racismo religioso: atravessamentos de raça e crença

Ana Paula aponta que o termo racismo religioso surge no movimento negro brasileiro, muito influenciado por discussões raciais internacionais, em especial norte-americanas.

“Esse termo se opõe à ideia de intolerância religiosa em dois sentidos: o primeiro destaca que a intolerância religiosa pode ser aplicada a qualquer grupo religioso vítima de discriminação. Já os casos de racismo religioso atingem especificamente os terreiros de matriz africana, como os de candomblé e umbanda, por conta de suas tradições e práticas. Do ponto de vista político, a intolerância religiosa tem um segundo problema, quando se fala em reivindicação de direitos, pois tolerar um grupo é simplesmente suportá-lo e isso não dá garantia alguma de respeito. Em síntese, a ideia de diferenciar racismo religioso de intolerância religiosa passa pela necessidade de demarcar ações racistas que atingem os adeptos e praticantes das tradições de matriz africana”, explica.

Por outro lado, segundo a pesquisadora, nenhum Estado é neutro em termos religiosos. “Toda a discussão sobre o estado laico é marcada pelo equívoco teórico em achar que existe um modelo único de laicidade. Existem várias maneiras de o Estado delimitar as fronteiras entre religião e política.

No caso brasileiro, historicamente, a forma como essas relações se dão estão associadas à presença da religião no espaço público do país, marcado fortemente por características religiosas. Porém, o que observamos é que essas características seguem muito influenciadas, quase de forma hegemônica, pela tradição católica. Temos muitas praças e ruas com nomes de santos católicos, por exemplo. A entrada dos evangélicos não muda o ordenamento desse contexto, já que as igrejas protestantes também passaram a ocupar os centros dos espaços públicos”.

No caso da presença das religiões de matriz africana, a maneira como ocupam o espaço público é diferenciada.

“O espaço visado é o da natureza, que é, em si, sagrada para essas tradições. A praia, o lago, o mangue e a floresta já são símbolos da cultura das religiões afro-brasileiras. Isso se aplica também à cidade, onde, por exemplo, a encruzilhada é associada ao Orixá Exú”, ressalta a docente.

Combate ao racismo religioso: Estado mediador de conflitos?

Para Ana Paula, à medida que a relação da sociedade com as religiões se explicita de forma específica no Brasil, a intervenção do Estado deveria operar na garantia de direitos e liberdade para todas as crenças.

“O debate do racismo religioso reafirma a necessidade de engajamento na pauta do reconhecimento de direitos, afinal, a Constituição da República Federativa do Brasil deixa determinado que é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Na prática, sabe-se que não é isso que acontece, já que é evidente o privilégio das tradições cristãs e os impedimentos e restrições aos cultos não cristãos”, pontua.

Do ponto de vista histórico, a perseguição às tradições africanas não é fenômeno recente, já que ocorre desde o começo do período da escravidão forçada da população negra.

“Por isso, o candomblé, por exemplo, é uma religião brasileira. Não existe candomblé na África, já que lá as regiões têm distintas dinastias, que formam os reinos dos orixás, e são origem de diversas etnias africanas. Os africanos trazidos para o Brasil tiveram de se reestruturar e conviver entre si, na prática de suas crenças, o que acabou gerando um culto à ancestralidade unificado, reunindo o que em África eram cultos étnicos específicos de cada ancestral”, explica Ana Paula.

Segundo a pesquisadora, desde 1881 as constituições brasileiras falam da possibilidade de liberdade de expressão de múltiplas crenças, mas esse segue não sendo um direito garantido às religiões de matriz africana.

“Por exemplo, se uma pessoa está internada em um hospital, é um direito constitucional que ela tenha apoio religioso. Padres e pastores conseguem entrar com facilidade nos hospitais, mas em nossas pesquisas temos inúmeros relatos de pais e mães de santo que não conseguem dar suporte espiritual aos consulentes e filhos dos terreiros”.

De acordo com a estudiosa, o grande conflito da perseguição às religiões de matriz africana acontece em relação a grupos cristãos que não concordam com as práticas dessas tradições.

“Isso não significa que esses grupos podem visar o extermínio dessas práticas; entretanto, parece ser esse o objetivo. Em nossas pesquisas, observamos alguns grupos evangélicos que não só ficam incomodados com a existência da crença que eles desaprovam, mas agem para que elas sejam destruídas. O Supremo Tribunal Federal se posicionou sobre o tema defendendo que a liberdade de expressão religiosa tem um limite no caso da ofensa ao outro. Ou seja, o pastor tem direito de pregar desde que não propague a destruição de outros grupos de fé”, explica Ana Paula.

Um obstáculo nesse debate está na interpretação que os operadores de justiça e segurança possuem em relação ao crime de racismo. Segundo a docente, há uma tendência a individualizar os casos, já que na leitura de muitos juristas esses crimes sempre são lidos como isolados.

“Isso impede o reconhecimento da dimensão política dos crimes de discriminação, que, nesse contexto, são reconhecidos internacionalmente como crimes de ódio. A natureza política do crime de ódio, nesse caso, explicita que, quando há violação do direito à liberdade religiosa de alguém, também há quebra do direito político de expressão do credo do indivíduo. Considerando isso, o racismo religioso é um crime essencialmente político; portanto, é obrigação do Estado impedir e coibir ataques a essas manifestações religiosas”, enfatiza Ana Paula.

Caminhos de Xangô: documentário reflete sobre a laicidade do Estado frente à perseguição aos terreiros

Com doze minutos de duração, o documentário curta-metragem “Os caminhos de Xangô – a resistência das religiões afro-brasileiras” é resultado do projeto de pesquisa “Diversidades e intolerâncias: análise de processos de mobilizações e de políticas públicas em conflitos de natureza religiosa, étnico-racial e de gênero”, coordenado pela professora Ana Paula Miranda. Esse trabalho é fruto de um projeto do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) cujo objetivo era debater conflitos de natureza étnico-religiosa.

O curta tenta responder o que permaneceu e o que mudou no processo de perseguição às tradições afro-brasileiras, já que esse movimento de intolerância acontece há tanto tempo.

“O que permanece é a estratégia da demonização. Desde sempre, há uma tentativa de buscar a referência de ‘demônio’ das tradições judaico-cristãs e aplicá-la onde esse conceito não existe nem nunca existiu. A diferença hoje tem a ver com as estratégias de ataques aos terreiros. Se antes tínhamos os grupos católicos e o Estado perseguindo terreiros, hoje ainda há o Estado como agente dessa perseguição, só que de maneira velada e não oficial. Na realidade atual, os ataques de extremistas evangélicos também foram incluídos nessas estratégias de perseguição”, conta a pesquisadora.

Os caminhos de Xangô no título do curta têm a ver com a ideia de que esse é um orixá associado a uma justiça que não seja cega.

“O questionamento do documentário gira em torno do mito da justiça que privilegia um grupo e ataca outro. O filme também traz uma síntese do que foi um dos maiores massacres a terreiros da história do Brasil, conhecido como quebra de Xangô, que ocorreu em Alagoas. O objetivo da narrativa do documentário é que o povo de terreiro repense sua história, mas também visamos o uso pedagógico do material, a fim de provocar questionamentos sobre que laicidade é essa que ocorre no Brasil, que garante a existência de diferentes grupos religiosos, desde que sejam cristãos”, conclui Ana Paula.

 

Quarta, 21 Setembro 2022 15:45

DESVENDANDO A ESFINGE: E SE O CRIME EXISTIR?

O site do INCT INEAC reproduz aqui o artigo do Professor titular da Escola de Direito da PUCRS, Rodrigo Ghiringheli de Azevedo e da Coordenadora do PPG em Segurança Cidadã da UFRGS, Fernanda Bestteti de Vasconcelos, ambos pesquisadores vinculados ao INEAC . O artigo foi publicado originalmente no site FONTE SEGURA - https://fontesegura.forumseguranca.org.br/desvendando-a-esfinge-e-se-o-crime-existir/ .

 

DESVENDANDO A ESFINGE: E SE O CRIME EXISTIR?

APERFEIÇOAR AS FERRAMENTAS PARA A ALOCAÇÃO ADEQUADA DO POLICIAMENTO OSTENSIVO, INVESTIR EM INTELIGÊNCIA POLICIAL, GARANTIR UM PROCESSO PENAL EM QUE DIREITOS E GARANTIAS SEJAM RESPEITADOS E QUE A EXECUÇÃO DA PENA OCORRA DENTRO DA LEI SÃO DESAFIOS CUJA CONCRETIZAÇÃO É PRESSUPOSTO DA LEGITIMIDADE SOCIAL DAS POLÍCIAS E DA JUSTIÇA PENAL

 

RODRIGO GHIRINGHELLI DE AZEVEDO

Professor titular da Escola de Direito da PUCRS, membro do INCT-InEAC

FERNANDA BESTETTI DE VASCONCELLOS

Coordenadora do PPG em Segurança Cidadã da UFRGS, membro do INCT-InEAC

E se o crime existir?” é o título de uma obra (pequena no tamanho, gigante no conteúdo) do grande sociólogo do direito pernambucano Luciano Oliveira. Nela, o autor coloca em questão os pressupostos epistemológicos das teorias da rotulação, da criminologia crítica e do abolicionismo penal, para sustentar que tanto as abordagens microssociológicas do interacionismo simbólico quanto as macrossociológicas do materialismo histórico falham ao minimizar a importância do delito como fenômeno social.

Ao caracterizar o crime como uma construção social, levada adiante por “empresários morais”, ou estabelecer conexões ad hoc entre o sistema capitalista, a criminalidade e o controle do crime, tais teorias, produzidas especialmente a partir da década de 60 do século XX, cumpriram um importante papel de denúncia do funcionamento autoritário dos mecanismos de controle punitivo, desde a criminalização primária (produção legislativa) até a criminalização secundária (atuação dos powerful reactors – instituições de controle). Expuseram seu padrão de atuação seletivo e muitas vezes violento e abusivo, sua apropriação por interesses políticos (muito comum em regimes autoritários), e todos os limites da resposta punitiva, pouco eficaz para a redução da criminalidade e contraproducente para a reinserção social de condenados.

Desde esse giro epistemológico, o debate criminológico nunca mais foi o mesmo, já que deslocou  para o centro das atenções o funcionamento das instituições de controle, assim como contribuiu para a sua deslegitimação, levada às últimas consequências pelos chamados movimentos abolicionistas, tanto da pena, quanto das próprias polícias. A obra de Michel Foucault veio acrescentar elementos para a desconstrução do poder punitivo, inclusive de suas bases fundadas na ciência moderna.

Hoje, com o devido distanciamento histórico, não é mais possível deixar de lado as insuficiências deste(s) paradigma(s). Se há excessos do legislador na criminalização de condutas que não deveriam merecer a tutela penal, sendo a mais significativa a questão do consumo de drogas, assim como certos delitos ligados a padrões ou escolhas morais ou modos de ser de determinados grupos sociais, é forçoso reconhecer que há uma imensa gama de condutas que precisam sim da interdição estatal por meio da sanção penal (com todas as suas mazelas e efeitos colaterais). Para não nos alongarmos, basta referir os delitos contra a vida, a violência doméstica e familiar contra mulheres, crianças e idosos, o racismo e a homofobia, os crimes sexuais de toda ordem, os crimes em ambientes virtuais, a subtração de recursos públicos, os danos deliberados ao meio ambiente e os atentados contra a saúde e a paz pública, as facções criminais, os agrupamentos milicianos e os delitos de colarinho branco.

Diante disso, é importante, sem dúvidas, incorporar o legado da crítica criminológica à gestão dos mecanismos de controle punitivo, ampliando os mecanismos de controle e participação popular (conselhos da comunidade, conselhos de segurança pública, ouvidorias), criando mecanismos mais eficazes de controle externo sobre a atividade policial e judicial, garantindo o amplo direito de defesa e a presunção de inocência até o trânsito em julgado das condenações criminais, dando transparência à atuação das polícias e da justiça, tanto pela produção, análise e divulgação de estatísticas criminais quanto pelo amplo acesso da imprensa e da comunidade científica a todos os âmbitos de atuação do controle punitivo, e implementando alternativas penais e investindo em mecanismos de mediação e conciliação.

Da mesma forma, é necessário reconhecer os limites do sistema penal para a redução da criminalidade. Políticas de prevenção ao crime multisetoriais, com investimento em educação para a juventude, em emprego e renda dignos, em melhorias do ambiente urbano, em formas de produção identitária que afirmem valores positivos, como a convivência pacífica (não armada) e solidária, são sem dúvida as formas mais eficientes para alcançar resultados a longo prazo na redução da violência.

Isso não invalida, no entanto, a importância dos mecanismos repressivos, para que condutas criminosas com grande potencial lesivo não fiquem impunes, como muitas vezes acontece, como têm demonstrado os relatórios anuais da pesquisa “Onde mora a impunidade”, do Instituto Sou da Paz. Aperfeiçoar as ferramentas para a alocação adequada do policiamento ostensivo, investir em inteligência policial voltada ao esclarecimento dos fatos que servirão de base para a responsabilização criminal, garantir um processo penal em que direitos e garantias sejam respeitados e ocorrências criminais sejam efetivamente esclarecidas, e que a execução da pena ocorra dentro da lei, em condições adequadas de encarceramento e atenção ao egresso do sistema prisional, são desafios cuja concretização é pressuposto da legitimidade social das polícias e da justiça penal.

É muito provável que as disputas políticas mais relevantes no Brasil e no mundo nas próximas décadas reproduzam os embates entre os defensores de mecanismos democráticos de organização e gestão da vida social, incluindo a segurança pública, com respeito à participação cidadã, à transparência e a toda uma base principiológica construída desde as grandes revoluções liberais e sociais dos últimos séculos, acrescida de valores mais recentemente consagrados, como a preservação ambiental, contra os defensores de ideais “tradicionalistas” de retorno a um passado idealizado de estratificações sociais legitimadas e privilégios sustentados pelas próprias instituições estatais. Frente a isso, nada mais atual do que a defesa do Estado democrático de direito no que ele tem de mais inovador: o reconhecimento formal da igualdade de todos perante a lei, quando se trata de estabelecer limites punitivos aos comportamentos em sociedade. Sendo assim, é preciso também reconhecer que não haverá democracia sem polícia e sem justiça penal. Trata-se de construir uma polícia e uma justiça penal para a democracia. 

 

 

Republicamos aqui o artigo do professor e cientista Político  Pedro Heitor Geraldo, pesquisador vinculado ai INCT/INEAC, "JUDICIÁRIO E SOCIEDADE  - Uma justiça autoritária?" , publicado no link  https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/uma-justica-autoritaria-16092022 .

 

JUDICIÁRIO E SOCIEDADE

Uma justiça autoritária?

Há uma constante queixa relativa ao tratamento desigual do sistema brasileiro

PEDRO HEITOR BARROS GERALDO
16/09/2022
Nos últimos meses, estive envolvido na coordenação do curso de extensão “Antirracismo e as Mobilizações Profissionais do Campo do Direito”, realizado pelo Instituto de Defesa da População Negra (IDPN) em parceria com o Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito (NSD) do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (InEAC-UFF).

Ao longo do curso, tive a oportunidade de acompanhar como ouvinte uma série de aulas ministradas por profissionais do campo do direito, considerados referências pelo IDPN. Esses professores são profissionais inseridos nas instituições de justiça e no mercado da advocacia em diferentes estados. Além da formação jurídica, eles também compartilham uma perspectiva crítica sobre o papel encarcerador do sistema de justiça, que aflige principalmente a população negra. São todos profissionais muito sensíveis ao contexto da luta antirracista e compartilham uma forma de “fundamentar” seus entendimentos jurídicos por meio de filosofias estrangeiras de diferentes naturezas, como as do direito e as do conhecimento, por exemplo.

A experiência com e no sistema de justiça e na segurança pública produz um saber prático, dramatizado nos relatos dos casos e nas consequências nefastas do trabalho realizado pelas instituições de justiça. Para esses professores, assim como para outros operadores do direito, convivemos no Brasil com um sistema de justiça autoritário.


Esta formulação está orientada por algumas características comuns das práticas decisórias forenses. Os profissionais muitas vezes relatam com indignação a forma arbitrária pela qual as decisões são tomadas. Em outras palavras, a regra jurídica é objeto de ressignificação pelas autoridades por “entendimentos” segundo o “caso”. Tanto as regras de processo quanto as de direito material são por vezes desconsideradas, ignoradas ou ressignificadas, o que implica um grande arbítrio no gerenciamento dos processos e, consequentemente, no tensionamento dos conflitos.

Há uma constante queixa relativa ao tratamento desigual, à ausência de imparcialidade nos julgamentos, à falta de escuta dos envolvidos, à falta de atenção aos registros constantes nos processos, à falta de zelo com a execução penal (ainda muito degradante) e à desigualdade de atenção das autoridades segundo a natureza do conflito (e não do processo). Nesse cenário, em alguns conflitos relevantes, como homicídios, há uma demora para se decidir, enquanto em outros menos complexos, como um furto ou tráfico, decide-se rápido demais. Além disso, há também um reconhecimento da dificuldade em se delimitar o que é uma prova no processo criminal.

Este ponto de vista contrasta com a autoimagem da justiça, ciosa de sua credibilidade, a respeito de suas políticas de organização destinadas a modernizar, democratizar e garantir acessibilidade à tutela jurisdicional. A justiça reivindica uma excelência de seus quadros em razão do concurso público e exerce um poder sobre um amplo conjunto de conflitos levados pelas instituições e pela própria sociedade. Para os seus membros, os juízes, os milhões de processos seriam igualmente um sinal desta acessibilidade e democratização.

A Lava Jato sempre é uma referência constante como um exemplo de violação e disfuncionalidades do modelo acusatorial por diferentes operadores.

Como compreender este contraste entre a autoimagem do Judiciário e a justiça autoritária? Do ponto de vista dos operadores, este contraste produz uma descrença dos profissionais acerca do direito e promove uma compreensão em termos de disfuncionalidade do modelo acusatorial, aliás a Lava Jato sempre é um exemplo recorrente deste aspecto. Em nossa cultura jurídica, o modelo acusatorial é compreendido como um modelo positivo contra o inquisitorial, que é negativo e relegado ao inquérito policial sobre o qual Ministério Público e Judiciário poderiam melhor controlar as impressões parciais das instituições de segurança pública e corrigir abusos e excessos. Embora não seja exatamente isto que ocorre na prática, como sempre lembram em meio à insatisfação destes operadores do direito.

As frequentes reformas legislativas incidem sobre o processo, mas não sobre a organização da justiça. Os operadores do direito brasileiro naturalizaram a concentração de poderes instrutórios nos juízes de forma suplementar ao Ministério Público e às Polícias Civil e Militar. O processo é emendado como se o problema estivesse nas regras de procedimento utilizadas, em vez de se identificar as moralidades profissionais envolvidas na sua operacionalização e, principalmente, a finalidade desta organização de prover um tratamento desigualado dos cidadãos.

A defesa dogmática do modelo acusatorial em nosso contexto funciona como um obstáculo epistemológico, nos termos bachelardianos, no campo do direito brasileiro. Ela impede que os operadores discutam as formas de intervenção, sobre as consequências indesejadas do trabalho do sistema de justiça com base em evidências apresentadas por um amplo conjunto de pesquisas empíricas sobre o direito brasileiro, amplamente desenvolvidas em diferentes redes de pesquisa nacionais em diálogo direto com o campo do direito, a exemplo do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos financiado por agências de fomento a pesquisa; a Rede de Estudos Empíricos em Direito, organizada como uma associação; e as diferentes redes de pesquisa que se organizam nos congressos das associações dos cientistas sociais como a Associação Brasileira de Antropologia, a Sociedade Brasileira de Sociologia, a Associação Brasileira de Ciência Política e a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciências Sociais.

A dificuldade de reconhecer a tradição inquisitorial nas formas de administração de conflitos produz um efeito em que os operadores atribuem os problemas da justiça a um disfuncionamento do modelo acusatorial, em vez de identificá-los como próprios de modelos inquisitoriais nos quais o julgador e acusador concentram muitos poderes enquanto a defesa tem menor margem de manobra, pois o processo penal tem por finalidade demonstrar a culpa já indicada nos primeiros registros produzidos pelo delegado ao indiciar o tipo penal e as circunstâncias do delito. No caso do processo penal, o juiz guarda um amplo poder decisório inclusive sobre os fatos. Por meio do processo, opera-se uma economia textual em que se pode ler os trechos do inquérito nas sentenças judiciais.

Desta forma, um contraste pode ser feito com a França, onde operadores do direito reconhecem a tradição inquisitorial e buscam reformar a justiça para limitar a decisão por meio de diferentes estratégias, como (a) a formação para o trabalho de julgar; (b) a complexificação da divisão do trabalho para a decisão judiciária; e (c) a organização da audiência judicial.

Em primeiro lugar, a formação para o trabalho de julgar realizada na Escola Nacional da Magistratura substituiu a formação no próprio trabalho, ou formação sur le tas. A crise da seleção de magistrados na França culminou na polêmica criação da ENM como explica Boigeol (2010). O trabalho de julgar tornou-se objeto de atenção institucional e de reprodução coletiva para os novatos. O aprendizado sob supervisão faz com que o erro tenha um efeito pedagógico para quem o cometeu e para a instituição, que pode revisá-lo e aperfeiçoar suas estratégias de reprodução das práticas do trabalho. Assim, os limites no julgamento, por exemplo, se tornam mais explícitos, ao contrário da experiência idiossincrática de aprendizado no trabalho dos magistrados e promotores no contexto brasileiro, onde o erro produz consequências negativas para quem erra — assim podemos compreender a práticas de delegação do erro em que a “corda arrebenta para o lado mais fraco”.

Em segundo lugar, há na França uma separação entre as ordens administrativa, constitucional e judiciária que delimita a concentração de competências. Além disto, a divisão do trabalho na produção da decisão busca limitar a concentração de poderes. Ao dividir as tipificações penais em contravenções, delitos e crimes, supõe-se também uma complexificação das jurisdições criminais em que contravenções e alguns delitos são julgadas por um juiz monocrático — uma exceção no contexto francês orientado pela ideia do juge unique, juge inique —, os delitos e alguns crimes por três juízes e os crimes mais graves por um escabinato composto por três juízes profissionais e seis jurados leigos. O processo penal também desconcentra poderes de instrução, revisão dos pedidos envolvendo a liberdade do réu por outro juiz e um terceiro, para julgar os fatos determinados pelo juiz da instrução a fim de garantir a imparcialidade do julgador. Enquanto no Brasil, todas estas competências podem estar concentradas num único juiz.

Por fim, a audiência judicial no contexto francês é o momento de acolhimento dos conflitos levados ao Judiciário. Ela acolhe um universo de interessados de diferentes “dossiers” que serão ouvidos diretamente pelo juiz numa única sessão. A audiência coletiva produz um efeito pedagógico em que os presentes aprendem o ritual e sua linguagem, e também podem experimentar o tratamento igualitário entre as decisões por meio da repetição da regra através dos casos. A decisão de justiça é uma escolha de uma regra explícita e literal cujo significado é um consenso para os operadores do direito. Há uma distinção fenomenológica entre a decisão proferida oralmente em audiência e a sentença, que é o registro escrito da decisão divulgada posteriormente à audiência. O público presente na audiência aprende por meio da observação, e constrange o juiz durante sua realização. O contraste então pode ser feito com as audiências de gabinete no contexto brasileiro, as quais são apenas uma etapa do processo e se caracterizam por restringir e excluir os cidadãos dos rituais de justiça.

As políticas de informatização do processo e mais recentemente de virtualização da própria justiça buscam se orientar por ideias de democratização e modernização, mas reproduzem toda a ética para lidar com o principal instrumento de administração de conflitos, o processo judicial. Os autos do processo são o repositório de registro sob controle das autoridades e também são propriedades dos tribunais, que os guardam nos cartórios. O processo eletrônico, o PJe, como os instrumentos de informatização, estão todos a serviço dos juízes. Estas transformações reproduziram sob outra forma a mesma organização da justiça. Quando o “sistema” funciona, proporciona aos cartórios a oportunidade de fazer com menos recursos humanos e remotamente o que já se fazia antes. A melhoria serve , portanto, apenas à própria justiça e não aos seus usuários.

Esta comparação com um modelo explicitamente inquisitorial nos permite compreender como a formação de juízes e promotores para o trabalho, a divisão do trabalho decisório e a organização da audiência podem sugerir chaves para lidar com nossa inquisitorialidade descontrolada e compreender como o processo e o cartório são instrumentos que alijam os cidadãos de maior inteligibilidade do sistema de justiça.

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Agradeço aos comentários de Fábio Ferraz de Almeida e Luiza Barçante Sanandres a este artigo.

BOIGEOL, A. A formação dos Magistrados: Do aprendizado na prática à escola profissional. Revista ética e filosofia política, v. 2, n. 12, p. 61–97, 2010.

PEDRO HEITOR BARROS GERALDO – Professor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC-UFF), do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito.
https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/uma-justica-autoritaria-16092022

2º Seminário de Pesquisa "A organização profissional dos operadores do Direito: Os Desafios da Luta Antirracista".
De 12 a 15 de setembro de 2022
 
Dia 12/09 - 14h
Oficina: Defesa nos PAD’s da execução penal.
Juliana Sanches Ramos (IDPN)
Betânia de Oliveira Almeida de Andrade (UFF)
Pedro Heitor Barros Geraldo (UFF)
Local: InEAC - UFF (Campus do Valonguinho - Niterói)
 
Dia 13/09 - 14h
Oficina: Protocolo de julgamento de gênero.
Ana Paula de Oliveira Sciammarella (UNIRIO) 
Fabiana Severi (FDRP-USP)
Local: Centro de Ciência Jurídicas e Políticas - UNIRIO (Botafogo)
 
Dia 14/09 - 14h
Oficina: Defesa dos povos de terreiro.
Ilzver de Matos Oliveira - Pesquisador de pós-doutorado no PPGA-UFF e diretor de Direitos Humanos da Prefeitura de Aracaju-SE.
Local: InEAC - UFF (Campus do Valonguinho - Niterói)
 
Dia 15/09 - 9h-19h
9h30: Abertura 
 
TRANSMISSÃO LEMI - Laboratório Estúdio Multimídia do Ineac
 
10h-12h: 1ª Mesa – Os desafios da advocacia para a defesa da população negra 
ADVOGADES PALESTRANTES:
Marina Camargo (Comissão da Igualdade Seccional Ribeirão Preto OAB SP e Mestranda no PPGD-UNAERP)
Fernanda Ramos (Comissão e Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa OAB,RJ)
Rogério de Santana (Coordenador adjunto da comissão de defesa das prerrogativas Preta Carioca OABRJ)
Matheus Leite de Carvalho (Comissão de Igualdade Racial da OAB, Comissão OAB/Jovem e Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB 12ª subseção do Rio de Janeiro)
Andréa Rocha dos Santos (Mestranda no PPGD-UFRJ)
Joel Pires Marques Filho (Advogado OAB/RJ, Laboratório Geru Maa de Africologia e Estudos Ameríndios/UFF)
Mediação: Isabella Martins (UFF)
 
12h-14h: Almoço 
 
14h-16h: 2ª Mesa – Os 2 anos do Instituto de Defesa da População Negra (IDNP)
Juliana Sanches Ramos (IDPN)
Joel Luiz Costa (IDPN)
Djefferson Amadeus (IDPN)
Marcela Teles Andrade Cardoso (IDPN)
Monalisa Santana de Castro (IDPN).
Apresentação do Núcleo de Pesquisa em Direito e Relações Raciais Esperança Garcia (NUEPEG) - Prof. Paulo Eduardo Alves da Silva (PPGD/FDRP/USP)
Mediação: Mariana dos Santos Vianna (UFF)
 
TRANSMISSÃO LEMI - Laboratório Estúdio Multimídia do Ineac
 
 
16h-16h15: Coffee Break
 
16h15-18h15: 3ª Mesa – O “Caso Ilzver” e os desafios da implementação da lei de reserva de vagas nos concursos públicos nas IFES
Ilzver de Matos Oliveira (PPGA-UFF)
Ricardo Carrano (UFF)
Carlos Victor Nascimento dos Santos (UFF)
Mayara Giraldelo Pitta Lopes (FSERJ)
 
TRANSMISSÃO LEMI - Laboratório Estúdio Multimídia do Ineac
 
 
18h15: Encerramento
19h: Coquetel
 
REALIZAÇÃO:
Instituto de Defesa da População Negra (IDPN)
Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito (NSD-UFF)
 
APOIO FINANCEIRO:
FAPERJ / CNPq / INCT-InEAC / CAPES
 
 
 
 
 
 
 

A missa de sétimo dia da nossa querida Profa. Maria Stella Faria de Amorim será no próximo sábado,  dia 17 de setembro de 2022, às 17:30h, na igreja Nossa Senhora de Copacabana, na Rua Hilário de Gouveia - Copacabana - RJ . 

Profa. Maria Stella Faria de Amorim (26/01/1936 – 11/09/2022), foi pesquisadora, professora, autora, conselheira e gestora, e atuou de modo brilhante nos campos disciplinares da Antropologia, da Sociologia, das Ciências Sociais e do Direito, integrando em diferentes posições os quadros da Universidade do Brasil (1963-1967), do IFCS-UFRJ (1967-1993), do ICHF-UFF (1978-1989), da Universidade Gama Filho – UGF (1978-2014), da Fundação Darcy Ribeiro (1996 até o presente), do INCT-InEAC (2009 até o presente), da Universidad de Buenos Aires – UBA (2009-2011), da Universidade Nova de Lisboa (2010) e da Universidade Veiga de Almeida .

Doutora e Livre Docente (Leis Federais 5.802/1972 e 6.096/1974) em Sociologia pelo ICHF/UFF, em 1975. Curso de Mestrado em Antropologia Social no PPGAS/UFRJ, Curso de Especialização em Antropologia Social na antiga Divisão de Antropologia do Museu Nacional. Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais pela antiga Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil. Professora Titular de Sociologia do IFCS/UFRJ (aposentada e colaboradora eventual).Professora Titular de Sociologia Jurídica do Programa de Pós-Graduação em Direito da UGF. Atual professora titular de Sociologia do Direito no Programa de Pós-Graduação em Direito ( Mestrado e Doutorado) da Universidade Veiga de Almeida (UVA). Research Associate na Universidade de Harvard (USA -1971/1972) e Professora Visitante na Universidade Internacional de Lisboa. Pesquisas realizadas: Índios Maxakali do Nordeste de Minas Gerais; Burocracias do Nordeste Brasileiro; Pescadores da Lagoa de Maricá (RJ); Ética, cidadania e privilégios; Institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro; Juizados Especiais Criminais na Baixada Fluminense; Juizados Especiais e Federais na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Juizados Especiais em perspectiva Comparada; Juizados da Violência Familiar e contra a Mulher; Acesso à justiça e prestação jurisdicional em tribunais do Rio de Janeiro; Meios alternativos na Justiça Brasileira, entre outras. Participante, pesquisadora e parceira nos editais Pró-Africa/CNPq; Capes/SPU/CAPG-Brasil-Argentina; CAPES/CNJ Acadêmico; Humanidades/Faperj; Pensa Rio/Faperj; BRA/SRJ/MJ/PNUD; CAPES/FCT-Brasil-Portugal; INCT-InEAC/CNPq/Faperj pesquisadora. Membro Permanente do Conselho da Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR). Membro efetivo da Associação Brasileira de Antropologia (ABA); da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS); da Sociedade Argentina de Sociologia Jurídica (SASJ) e associada do CONPEDI. Coordenadora do PPGD-UGF de 02/2009 a 01/2012, nota 5 CAPES e Coordenadora do PPGD-UVA de 05/2014 a 08/2015, nota 4 CAPES. Membro do Comitê Gestor do INCT-INEAC/UFF.

 

 

Terça, 13 Setembro 2022 15:23

Seleção de Doutorado PPGAS/UnB

 

O Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília - PPGAS/UnB - está com inscrições abertas para Seleção de Doutorado para ingresso de estudantes em março/2023.

 

Doutorado - inscrições de 5 de setembro a 5 de outubro de 2022

 

Em breve informações sobre a Seleção de Mestrado

 

Os Editais de Seleção estão disponíveis no site:

http://dan.unb.br/pt/junte-se-a-nos/processos-seletivos/abertos

 

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