QUAL A REFORMA NECESSÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA? O Blog Ciência e Matemática publicou nessa segunda-feira, dia 2 de março de 2020, o artigo QUAL A REFORMA NECESSÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA?, escrito pelos antropólogos Roberto Kant de Lima e Lenin Pires, pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos. (www.ineac.uff.br). Confira o artigo no link https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/qual-reforma-necessaria-da-administracao-publica.html ou abaixo .
REFORMA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Qual a reforma necessária da Administração Pública?
02/03/2020
Ultimamente temos sido bombardeados pelo governo e pela imprensa sobre a necessidade de reformar o serviço público no Brasil. Principalmente, retirar dos servidores públicos as garantias conquistadas desde a época em que se instituiu um serviço público profissional entre nós, no governo Vargas. Garantias essas que se justificavam por serem consideradas indispensáveis ao desenvolvimento e preservação de uma memória burocrática acerca dos procedimentos técnicos e, por conseguinte, garantia da continuidade da promoção de serviços ao público, independente da vontade dos governos. Episódios recentes envolvendo o funcionamento dos Ministérios da Casa Civil, e da Educação, no governo federal, ou as demissões de engenheiros na CEDAE, promovidas pelo governo fluminense, deram seus testemunhos acerca dos riscos que representam a remoção de tais garantias, mediante a instituição da chamada “dança das cadeiras”.
Por outro lado, é interessante notar que a discussão, endossada por alguns governadores num artigo de opinião publicado recentemente no Globo, onde parecem associar a maior competência do serviço prestado à precariedade da permanência do servidor em seu cargo, parece ignorar que contemporaneamente a maioria dos servidores públicos é admitida através de concurso público, sendo muito menor o número de “cargos de confiança”, para os quais a nomeação é livre ou, pelo menos, não requer concurso público. Tais cargos são teoricamente de fácil extinção, mas continuam sendo usados em todos os níveis federativos seja como fonte de apoio político eleitoral, seja para reforçar o caixa dos seus patronos, como se sabe, através de práticas como a famosa “rachadinha”. Muitas vezes com efeitos semelhantes aos exemplificados no parágrafo anterior.
Pode-se argumentar que os concursos públicos, muitas vezes, não aferem as aptidões técnicas dos servidores para o cargo que vão ocupar, estendendo-se, pelo contrário, em socializá-los nas filigranas interpretativas das regras jurídicas abstratas e, por isso mesmo, muitas vezes de impossível cumprimento. E podemos estar de acordo com tal interpretação. Mas, como de hábito, em nenhum momento se ouve falar em aperfeiçoar mecanismos de incentivo e controle que responsabilizem os servidores por suas ações, ao invés de reprimir, apenas, suas transgressões quando detectadas, culpabilizando-os.
Em que pesem os discursos sobre transparência e adoção de critérios modernos de gerenciamento e gestão, o que observamos em ação, historicamente, no Brasil, é um sistema antigo, tradicional, herdado das matrizes judiciárias coloniais portuguesas trazidas pelos Tribunais da Relação. Este é voltado para a punição dos transgressores, sempre possível pelo eventual não cumprimento de regras abstratas, cuja execução correta depende de uma interpretação muito particular da autoridade encarregada de avaliar sua implementação. Neste sistema, todo engessado em obrigatoriedades abstratas a serem seguidas à risca, mas desligado das condições práticas de sua execução, todos sempre podem ser culpabilizados a qualquer tempo por terem transgredido a regra abstrata: por dolo, erro ou simplesmente por terem se omitido em cumpri-la.
A reação óbvia a um sistema de regras obrigatórias, abstratas, de aplicação draconiana e arbitrária como este, é a de blindar os servidores ao máximo, para que não estejam sujeitos a perseguições pontuais por seus desafetos. Por outro lado, o sistema que tem sempre a ameaça do castigo iminente pela interpretação arbitrária das regras pela autoridade de plantão, oferece espaço para negociações, nem sempre transparentes, para que suas avaliações sejam flexibilizadas. A regra abstrata e de draconiana e arbitrária aplicação abre espaço para a negociação implícita de sua flexibilização, gerando, certamente, ambiente propício a desvios e eventuais situações de corrupção. Tudo isso acontecendo dentro de um processo em que todos são potenciais alvos deste sistema de culpabilização, mobilizado através dos notórios “processos administrativo-disciplinares” (PADs) sejam efetivamente culpados ou não. Veja-se, por exemplo, o notório caso do Reitor da UFSC, que enfrentando acusações que não se confirmaram, mas que resultaram em tratamento preliminar indigno antes das apurações devidas, pôs término a vida. Se todos são sistematicamente, por princípio, suspeitos, como identificar efetivamente quem é o corrupto?
Um outro sistema de controle, no entanto, é possível. Baseado na transparência e ênfase na interpretação literal e consensual das regras, regido por protocolos construídos a partir das experiências em aplicá-las, com a colaboração não só de quem os redigiu, mas de quem os aplica. E com a permissão de que os servidores tomem suas decisões, mesmo que extraordinariamente elas impliquem não seguir as regras, desde que os mesmos se responsabilizem por suas ações. Seria um sistema que não se sustenta em uma suspeição sistemática sobre todo o corpo funcional, com exceção restrita, é claro, aos apaniguados que tem a “confiança” do chefe e com ele trocam favores recíprocos.
A insistência na punição depois do leite derramado é tão forte, que o ethos da suspeição sistemática e da tutela do Estado sobre os cidadãos não se esgota, é claro, no trato com os servidores. O pacote anti-crime levado ao congresso se estende em imaginar situações de punição dos transgressores, aperfeiçoando as delações premiadas que se estendem em anexos infindáveis, muitas vezes de improvável apuração. Mas muito pouco se fala em regulamentar a atividade dos lobistas, esses intermediários que viabilizam a exceção das regras em nome de interesses particulares. Fora da regulamentação que explicita o que pode e o que não pode ser feito, orientando essas atividades e prevenindo transgressões, como uma forma de compliance, nada se pode fazer se não punir depois de ocorridas, quando possível, as transgressões que se possa provar em juízo. O que, como tem ficado explícito ultimamente, depende muito do “livre convencimento motivado do juiz”1, pois não há regras claras e de interpretação inequívoca para a admissão ou exclusão de provas, no Brasil.
Vivemos em uma sociedade de controle administrativo, civil e criminal inquisitorial, em que temos que estar sempre provando quem somos, apresentado carteiras de identidade, certidões, certificados e diplomas xerocopiados e carimbados para confirmar nossos status e graus profissionais, que supostamente certificam nossa competência. É esse ethos cartorial, fiador da única fé pública oficialmente fidedigna, que aparentemente sacia a suspeita sistemática que rege as formas de controle administrativo, civil e penal no Brasil. È disso que teríamos que nos livrar para, pedagogicamente, poder socializar-se a população em outra chave de controle estatal, civilidade e convívio ético, que poderia produzir o ambiente de previsibilidade e confiança essencial para não só o funcionamento do mercado, mas para contribuir decisivamente para a construção de uma ordem pública democrática e republicana. Essa é a reforma político-jurídico-administrativa que se impõe.
1 Prerrogativa exclusiva dos juízes nos processos a seu cargo que significa que decidem livremente, segundo seu entendimento particular e justificam sua decisão posteriormente.
Roberto Kant de Lima e Lenin Pires, respectivamente coordenador e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos. (www.ineac.uff.br)
Política pública sobre drogas é desequilibrada e provoca injustiças, defende pesquisador
Autor de livro recém-lançado sobre o tema argumenta que legislação é responsável por encarcerar mais negros e pobres no país
Por Marcelo da Silveira Campos Doutor em Sociologia pela USP, professor da UFGD, pós-doutorando no Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC/UFF)
Na última semana de 2019, foi lançado, na PUCRS, o livro Pela Metade: a Lei de Drogas do Brasil, publicado pela Editora Annablume (308 páginas, R$ 70, em média). Com lançamentos que ocorreram no Rio de Janeiro, São Paulo, Goiânia e outros que acontecerão em 2020, no Brasil afora, o livro marca uma interpretação da atual lei de drogas do Brasil, a Lei 11.343 de 2006, chamada popularmente de Nova Lei de Drogas. A hipótese do livro, fruto de minha tese de doutorado, é a seguinte. Quando o Brasil optou por uma nova política de drogas (o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), duas ideias foram aprovadas no novo dispositivo legal: o fim da pena de prisão para o usuário, estabelecendo um sistema de saúde pública para deslocá-lo da prisão para o sistema de saúde, e, ao mesmo tempo, o aumento da pena mínima para o comércio de drogas com o objetivo, segundo os parlamentares, de reprimir os coletivos criminosos emergentes em meados dos anos 2000.
O livro mostra que, na cidade de São Paulo, as chances de alguém andando nas ruas ser considerado pelo sistema de justiça criminal como traficante, e não usuário, aumentaram quatro vezes, na comparação com o período anterior à entrada em vigor da lei (ano de 2004). O segundo fator estatístico que mais pesa sobre a incriminação de uma pessoa como traficante e não como usuário é a escolaridade: pessoas de menor escolaridade (analfabetos e pessoas com Ensino Fundamental incompleto) têm 3,6 vezes mais chances de serem consideradas traficantes pela Justiça. Por fim, se a pessoa morar num bairro periférico, ela terá duas vezes mais possibilidades de ser considerada traficante e não usuária.
Ainda apresento na obra que a quantidade e o tipo da droga não são fatores significativos para alguém ser incriminado como traficante ou usuário.
Para resumir, pode-se dizer que, após a nova lei de drogas, ser considerado um traficante e não um usuário tem a ver, em primeiro lugar, com a origem social da pessoa: se alguém for escolarizado, tiver uma profissão e morar em algum bairro central das metrópoles, muito excepcionalmente será considerado um traficante – apenas 34 pessoas, das 1.256 que analisei em minha tese de doutorado, possuíam Ensino Superior completo ou incompleto. Além disso, também se pode considerar que a própria nova lei de drogas não estabeleceu nenhum critério objetivo para diferenciar um usuário de drogas de um traficante.
Após a nova lei de drogas, ser considerado um traficante e não um usuário tem a ver, em primeiro lugar, com a origem social da pessoa.
Por último, quando analisei a quantidade de drogas das pessoas incriminadas, de um total de 799 registros nos quais contavam exatamente o tipo e a quantidade apreendidos, 404 ocorrências foram de 0,01 até 7 gramas de drogas. Ou seja, prende-se muita gente com ínfimas quantidades e quase exclusivamente das camadas pobres da população, mesmo sabendo-se há muito tempo que há todo um circuito de uso e comércio de substâncias ilícitas nas classes médias e altas dos grandes centros urbanos do Brasil – embora esse circuito de transações nem de longe passe por esse mesmo sistema de Justiça.
“Nesse sentido, este artigo é um convite à reflexão dos leitores: uma política de drogas que começava a ser efetivamente mais racional e com foco na saúde pública foi sobreposta pela falta de avanços e investimentos na área e pela dificuldade dos operadores em deslocar efetivamente o usuário para o sistema de saúde e não para o sistema de Justiça. Aliás, com a Lei 13.840/2019, essa situação piorou (e muito).
O resultado é que, no sistema jurídico e nas prisões brasileiras, impõe-se a lógica de que as pessoas não devem ser tratadas igualmente pelas suas infrações cometidas, mas sim desigualmente mediante seu status social. E, mesmo que uma política pública busque, minimamente, avanços em termos de direitos e garantias individuais (como foi a metade de saúde pública da Lei 11.343, de 2006), logo virão os guardiões da ordem para retraduzir a desigualdade social em termos jurídicos, legitimando a política desigual. Feita pela metade, portanto, a lei de drogas teve como sua principal consequência o hiperencarceramento dos pobres nas prisões brasileiras.
O Grupo de Pesquisas em Gênero, Raça e Etnia (NUPEGRE) da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) realizarão o Seminário A História das Mulheres e as Mulheres na História do Brasil, com o apoio institucional do Fonavid (Fórum Nacional de Juízes e Juízas de Violência Doméstica). O evento é organizado pela juíza Adriana Ramos de Mello e pela historiadora Lana Lage da Gama Lima (UFF/UENF), pesquisadora também vinculada ao INCT/INEAC. O evento será realizado no dia 4 de março de 2020 e contará com uma dupla homenagem: ao Dia Internacional da Mulher e à professora, ex-reitora da UERJ e ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) Nilcéa Freire, falecida em dezembro de 2019.
Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF e Pesquisador do INCT InEAC-UFF
O Brasil é produto de uma cisma. Segundo consta em nossa memória e narrativa de mito de fundação, Pedro Álvares Cabral, um dos viajantes portugueses que colonizou violentamente civilizações originárias inteiras das Américas e alhures, cismou que as Índias ficavam nessa terra, onde “tem palmeiras onde canta o sabiá”.
Cismaram que os índios não tinham alma, por isso, os dizimaram; cismaram que os negros africanos eram semoventes e adequados ao trabalho manual duro, bem como inumano, e os escravizaram. Cismamos que éramos a Europa, o Rio Paris e a Modernidade o nosso futuro. Tudo foi o resultado de uma cisma e, assim, permanecemos cismados.
A polícia age cismada, alvejando cidadãos em áreas de moradias desprivilegiadas, pelo simples fato de portarem uma cor de pele escura ou até por andarem com guarda-chuva em dias de tempestades; o “cidadão de bem” cisma que o policial é o seu serviçal e deve seguir seus desejos e ditames quando estiver na rua. O funcionário público de uma repartição cisma que você não deve obter o documento solicitado, portanto, lança mão de uma normativa qualquer, a fim de lhe negar o acesso a um direito ou a um benefício. O Estado cisma que somos, por natureza, hipossuficientes, ao nos tutelar em diferentes níveis da vida, pois cisma sempre conosco, não obstante possuirmos carteira de identidade, CPF, certidão de nascimento, certidão de casamento, título de eleitor, CNH, etc., cisma tanto que, com a obrigação de reconhecer nossa firma em um cartório, por exemplo, em várias circunstâncias, pagamos uma boa grana para tal.
No Brasil, podemos acusar as pessoas sem prova, levando-as para a cadeia pela convicção (ou cisma) apenas. Cismamos que o outro é machista, racista, homofóbico, intolerante, xenófobo, a partir de critérios unilateralmente elaborados por parte dos que ensimesmamos outros em suas cápsulas classificatórias, independentemente de os elementos factuais subsidiarem a construção de uma cisma, onde o outro é o que você projeta sobre ele. Ou seja, a cisma está em todos os cantos do Brasil, em diferentes setores, na “esquerda” e na “direita” de nossa estrada de formação do que somos contemporaneamente. A cisma se encontra nas raízes do Brasil. Ademais, ela parece também se difundir pelos 4 cantos do mundo.
Cabe dizer ao leitor que a cisma difere, substantivamente, da desconfiança, pois a raiz desta é liberal. A desconfiança, como um dispositivo cognitivo e moral, nos moldes como a conhecemos, foi confeccionada no mundo liberal –ordenado pela primazia da razão, da centralidade dos direitos individuais – em um contexto no qual o reconhecimento do outro se torna imperativo para a conformação do reconhecimento de si mesmo.
No Antigo Regime, a confiança era externa ao indivíduo, ou seja, as respostas estavam fora das pessoas, haja vista tudo provir das mãos de um “Ser onipresente”. Já no liberalismo, a confiança em si – com a emergência da noção de self – resulta na confecção de um espaço público, no qual o binômio confiança-desconfiança desempenha um papel central ao desenvolvimento do capitalismo e dos sistemas democráticos dos países ocidentais. O liberal Adam Smith, em “Riqueza das Nações”, chama atenção para a centralidade da confiança – trust –no mercado em uma economia liberal. O filósofo Jean Jacques-Rosseau desenvolve uma compreensão da política, por intermédio da representação da voz dos cidadãos, que concede a alguém a legitimidade de falar em nome da vontade geral e do bem comum. Confiamos ao outro a legitimidade de falar por um coletivo. Nas grandes metrópoles da vida urbana, vivemos sob o abrigo de grandes edifícios, nos quais devemos coabitar com aqueles que não conhecemos, sem saber quem e o que são. Durante todo o século XX, lutamos com o intuito de firmar esse modo de vida humana, assentado na tensa relação entre confiança-desconfiança e coexistência-intolerância.
Contudo, adentrando o século XXI, nós nos deparamos com eventos e novas formas de pensamento que vieram solapar o regime da confiança e conceder lugar ao regime da cisma. A destruição das torres gêmeas nos EUA inaugura uma era face à diluição de direitos civis de cidadãos dos EUA, de origem muçulmana sujeitados a uma política de encarceramento, pela simples cisma de serem esses potenciais terroristas. A prisão de Guantánamo está aí para contar parte dessa nova história. O atentado ao jornal satírico Charlie Hebdo, na suntuosa e internacional Paris, bateu no coração republicano francês em cheio, já ferido pelas mágoas das guerras de descolonização e pelo complexo processo de assimilação dos imigrantes ao corpus republicano. Isso ao tornar evidente que nacionais e cidadãos franceses podiam revelar suas inquietações fora do ambiente argumentativo e fazer uso do recurso da linguagem da violência, com o fito de eliminar o que cismamos. Dessa cisma, gerou-se uma outra: a do Governo contra os imigrantes muçulmanos e africanos, por meio de políticas de segurança pública hostis a estes grupos e de uma expansão da xenofobia e do racismo, perpetradas por cidadãos franceses contra outros cidadãos igualmente franceses, porém de origem diversa.
Nossas pesquisas de campo, ordenadas pelo método etnográfico, apontam que estamos diante de um mundo de ensimesmamento: por intermédio de instrumentos da rede e da internet; da emergência de movimentos terraplanistas e contrários à Ciência; dos movimentos de extrema direita que emergem ao longo do planeta, como no Brasil e nos EUA, representados pelas figuras de chefes de Estado inclusive; da produção de critérios de relacionamentos interpessoais, baseados no ensimesmamento, a partir das políticas de reivindicação de identidades diferenciadas; do fechamento de fronteiras nacionais contra os estrangeiros na Europa, nos EUA e na América Latina, bem como com o fortalecimento de ideários racistas e xenófobos; de massacres, terrorismo, etc. Tudo o que foi mencionado abrange os elementos constituintes dessa nova química social elaborada pela cisma moderna.A cisma nesses moldes, consequentemente, resulta no cisma, nessa conformação de arquipélagos humanos, cujas rupturas tectônicas criam separações eternas e irreversíveis.
Esse diagnóstico, elaborado no ambiente de uma Universidade Pública, aponta - no ano em que celebramos nosso ensimesmamento à la brasileira (ritualizado nas últimas eleições presidenciais) -, que enquanto no Brasil a tradição inquisitorial, analisado por Roberto Kant de Lima, produz uma naturalização da suspeição sistemática do Estado contra os cidadãos e destes contra si mesmos, nas sociedades capitalistas burguesas, como a francesa ou americana, por exemplo, o espraiamento nas dinâmicas sociais da suspeição sistemática produz uma dissonância cognitiva severa aos indivíduos preparados a agir a partir de elementos factuais, formulados pela argumentação e sob os critérios de justificação que tenham generalidade e legitimidade no espaço público.
O antropólogo e professor do curso de graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal Fluminense (UFF), Frederico Policarpo Mendonça Filho, pesquisador vinculado ao INCT/INEAC, foi contemplado no último dia 28 de Novembro, de 2019, pela Academia Mundial de Ciência (TWAS, na sigla em inglês), com o prêmio TWAS para jovens cientistas (TWAS - LACREP Young Scientists Prize), na categoria de prêmios regionais (TWAS Regional Awards). A premiação é um reconhecimento à cientistas individuais de países em desenvolvimento que contribuem para o conhecimento científico em nove campos das ciências e/ou à aplicação de tecnologia ao desenvolvimento sustentável.
Um dos principais objetivos do TWAS é apoiar os pesquisadores que fizeram excelentes prestações para o avanço da ciência, medidos em termos do número e impacto de trabalhos de pesquisa científica publicados em periódicos reconhecidos internacionalmente.
“Esse prêmio é importante para mim porque ao mesmo tempo em que é um reconhecimento dos esforços feitos até aqui, também é um grande incentivo para seguir em frente investindo na pesquisa. Além disso, apesar de ser um prêmio individual, tenho absoluta consciência de que também é uma conquista institucional”, afirma Frederico.
O professor ressalta, ainda, que a universidade foi fundamental para essa conquista: “Devo também um agradecimento especial à Universidade Federal Fluminense (UFF) por ter proporcionado toda minha formação na pós-graduação e, agora, minha carreira como professor e pesquisador. Apesar da diminuição dos recursos ao longo dos anos, só pude me gabaritar e ganhar o prêmio por ter encontrado na UFF um ambiente acolhedor para a pesquisa. Nesse sentido, o prêmio é importante para mim porque também é da UFF!”
Com a participação da pesquisadora Perla Alves (INCT/INEAC), acontece no próximo dia 12 de dezembro de 2019, no auditório do 6o Grupamento de Bombeiro Militar de Nova Friburgo, o evento "21 dias de ações pelo direito a vida sem violência para todas". A atividade tem como objetivo tratar a questão da violência contra a mulher para os profissionais do corpo de bombeiros do estado do Rio de Janeiro. A pesquisadora Perla Alves irá apresentar o programa da Polícia Militar RJ que trata essa complexa questão: a patrulha Maria da Penha que atende diariamente mulheres vítimas que se encontram em um relacionamento abusivo.
Os nove de Paraisópolis: o terror policial e a sociedade anestesiada
Suas vidas já foram perdidas, mas é preciso tirar lições da tragédia do último fim de semana, defende professor e especialista em Segurança Pública
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo Sociólogo, professor da Escola de Direito da PUCRS, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e do INCT-InEAC
“Uma vida sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar sua própria essência – ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos.” Hannah Arendt, em Eichmann em Jerusalém
Em sociedades em condições normais de convivência democrática, o ingresso de policiais militares em uma aglomeração de pessoas, com o emprego de violência e de atos de abuso de poder, por si só seria motivo de grande comoção pública. Se da ação resultasse a morte de nove jovens, cujos atos se limitavam à busca de um momento de lazer e diversão em um duro cotidiano de privações, seria motivo para convulsão social e uma rápida resposta das autoridades. No Brasil de 2019, o terror em Paraisópolis produziu artigos como este e matérias na TV. E só.
A democracia não é apenas o regime político em que governantes são eleitos. Só pode ser chamada democrática a sociedade na qual o uso da força pelo Estado é regrado e controlado. Não há como negar que vivemos em um país marcado historicamente por uma cultura autoritária, que aceita e legitima a violência estatal contra grupos sociais vistos como ameaçadores e violentos. Desde a proclamação da República, os períodos de regime autoritário, como o Estado Novo e a ditadura militar, apenas reforçaram e direcionaram a ação arbitrária e violenta das polícias para finalidades políticas, mas pouco impactaram sobre a cultura institucional tradicionalmente voltada muito mais para a garantia da ordem pública do que para a garantia de direitos.
Desde a Constituição de 1988, é inegável que avançamos institucionalmente na promoção de uma cultura democrática de atuação e funcionamento das instituições policiais. Os processos de formação policial foram aperfeiçoados, os mecanismos de controle, discutidos e suas falhas, apontadas. Novos padrões de atuação policial foram delineados e passaram a orientar os processos de incorporação de novos policiais civis e militares.
Mas também não se pode negar que os avanços foram pequenos. As polícias seguiram pautadas por um modelo reativo, os currículos oficiais continuaram competindo com um fazer policial aprendido na socialização entre pares, reproduzindo padrões de atuação marcados pelo tratamento desigual e arbitrário.
O mais grave, no entanto, é a disseminação de uma narrativa pautada pela irracionalidade, segundo a qual a culpa pela violência é dos chamados “especialistas” e defensores dos direitos humanos. Se de um lado é certo que não há democracia e garantia de direitos sem uma polícia preparada, por outro é inegável que dar ao Estado carta branca para atuar nos conduz ao ambiente pré-moderno dos Estados Absolutistas, onde não se distingue a força pública de uma milícia a serviço dos donos do poder. Para enfrentar esse dilema, é preciso voltar a pensar. Que as vidas perdidas dos nove de Paraisópolis possam cumprir esse papel, seria uma justa homenagem.
Nessa quinta-feira, às 19h no ICHF - Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF, o Departamento de Antropologia da UFF vai homenagear os professores Roberto Kant de Lima, Marco Antonio da Silva Mello, Eliane Cantarino O’Dwyer e Simoni Lahud Guedes (in memoriam) . A cerimônia está dentro do calendário dos 50 anos do ICHF - UFF. Na ocasião, o auditório do bloco P receberá o nome de Auditório Simoni Lahud Guedes. O evento contará com a presença do Excelentíssimo reitor da UFF Antonio Claudio Lucas da Nóbrega.
A edição 2019 do Catálogo de Tecnologias Sociais da Universidade Federal Fluminense (UFF) será lançada nessa quinta-feira, dia 05 de dezembro, às 14 horas, em evento gratuito, realizado no Auditório da Agência de Inovação (AGIR), localizado na Torre Nova do Instituto de Física, 3º andar, no campus Praia Vermelha. O Catálogo é uma realização da Coordenação de Inovação e Tecnologias Sociais e teve sua primeira edição em 2017.
O Catálogo de Tecnologias Sociais tem como objetivo reunir experiências de tecnologia social, em curso, em fase piloto ou já finalizadas, desenvolvidas pela UFF por meio dos seus docentes, estudantes ou técnicos-administrativos. Com isso, busca produzir registro e memória sobre as ações, além de dar publicidade às experiências, fruto de projetos de ensino, pesquisa, extensão e/ou inovação.
A última edição do Catálogo conta com 38 experiências de tecnologia social catalogadas e desenvolvidas no âmbito da UFF. Com a edição de 2019, o número passa para 52 experiências de diferentes áreas e temáticas como acesso a direito e cidadania, inovação e saúde, geração de renda, redes e políticas públicas, entre outras.
Evento: Lançamento do Catálogo de Tecnologias Sociais de 2019
Data: 05/12/2019
Horário: 14 horas
Local: Auditório da AGIR – 3º andar, Torre Nova do Instituto de Física
Endereço: Avenida General Milton Tavares de Souza, s/n, Boa Viagem, Niterói – RJ
Licença para matar’ e operações diárias geram recorde de mortos pela polícia no RJ
Letalidade policial este ano atingiu recorde com 1.546 mortes, cerca de 5 por dia; para antropóloga Jacqueline Muniz, milícias unificam uma ‘polícia para o mal’
O Rio de Janeiro atingiu recorde no número de mortos pela polícia no estado: foram 1.546 mortos, uma taxa de 9,2 mortes a cada 100 mil habitantes, segundo dados divulgados pelo ISP (Instituto de Segurança Pública). E o ano nem terminou. No ano passado, 1.536 pessoas foram mortas pelo braço armado do Estado. O número deste ano é o maior desde 1998, quando o ISP começou a série histórica.
Os outros dois anos em que houve taxas altas de mortos em ações policiais foram 2007, com 1.330 mortes (taxa de 8/100 mil), e 2003, com 1.195 (taxa de 8,6/100 mil).
Nesta terça-feira (26/11), em audiência pública no Senado, o governador Wilson Witzel (PSC-RJ) afirmou que as mortes pela polícia são como um efeito colateral da política de combate adotada pela gestão. “O resultado é exatamente um reflexo de uma política combativa como nunca antes foi realizada”, afirmou, destacando a lógica de revide. “O número de óbitos em relação ao crime organizado teve um aumento em razão de um combate efetivo do crime organizado pelas nossas forças policiais”, disse.
Em entrevista à Ponte, Jacqueline Muniz, antropóloga e professora de segurança pública da UFF (Universidade Federal Fluminense), aponta que o aumento da letalidade deriva de uma opção deliberada por um policiamento feito a base de operações. “Ao matar, você produz um ciclo de violência, de vingança e, portanto, de cobrar fatura. Cada morte terá uma fatura cobrada. Você terá uma lógica acumulada de violências letais e esse é o problema. O que a gente está assistindo é o incremento das operações apoiadas por um discurso da repressão como fim em si mesmo, um liberou geral, uma espécie de licença para matar, que é autorizada, em boa medida, pela Justiça, através da súmula 70”, explica Jacqueline. A súmula 70 versa sobre a fé pública do agente de segurança, que dá poder de prova inconteste à palavra de um policial, seja em caso de uma prisão seja em uma ação violenta letal.
Para ela, o domínio territorial pelas milícias tem grande contribuição com o atual cenário da segurança pública no Rio, seja para explicar a redução de homicídios, seja para compreender o aumento da letalidade policial. Jacqueline destaca que entre 40% e 50% do território está dominado por esses grupos “formados por servidores públicos, funcionários do Estado que tem informações privilegiadas”.
“Você tem boa parte de operações policiais acontecendo iminentemente nas áreas do Comando Vermelho, que seria a principal facção, e, portanto, ações que estão preparando o terreno para ocupação miliciana. Como se os policiais fossem feitos de trouxa, eles vão lá limpam a área, esses governos autônomos criminosos provenientes de dentro do Estado, já que não tem Estado paralelo, são governos autônomos, esses domínios armados têm uma medida de tolerância, uma chancela, um consentimento das estruturas estatais, seja Executivo, Legislativo ou Judiciário”, pontua.
Confira os principais trechos da entrevista com Jacqueline Muniz:
Ponte – Como avaliar esses indicadores?
Jacqueline Muniz – A primeira coisa que a gente tem que entender é a dinâmica das mortes violentas, e isso inclui a letalidade policial. A primeira delas é a forma do registro de todas as mortes intencionais, porque isso dá qualidade ao dado e gera confiabilidade para poder evitar ou dirimir a ideia de que você está tendo manipulação ou mesmo censura. É fundamental a transparência dos dados e a publicização para garantir a qualidade e a gente saber do que está falando. A segunda coisa importante é que se monitore todas as categorias que se classificam as mortes e as tentativas de morte violenta, não apenas as mortes consumadas. Porque o resultado pode não estar sendo morte, mas a dinâmica de matar, as práticas violentas que levam à morte podem seguir inalteradas. A outra coisa importante é controlar a categoria desaparecidos, porque a gente sabe que tem chacina sobretudo na Baixada Fluminense que nem chega a ser registrada, fica só na denúncia dos moradores. Aqui no Rio tem muitas formas de matar e sumir com o corpo. O microondas, o aterro sanitário, dar para os porcos, etc. São dinâmicas macabras. Ou seja, precisa saber quanto dessa queda é responsabilidade do Estado e quanto o Estado terceirizou para os próprios grupos armados. E abrir esses dados por modalidade ou forma de matar, para que a gente saiba as circunstâncias das mortes, a relação da vítima com agressor, o modus operandi dessas mortes para que a gente possa compreender o peso das coisas. A proporção de mortes está associada a disputas territoriais desses grupos armados? Parte dessas mortes são produzidas e administradas pelo Estado através de suas ações? Seja de enfrentamento, seja pro-ativa ou reativa? As operações policiais respondem por quanto dessas mortes? E os acertos no mercado ilegal? Tudo isso a gente precisa responder para que a gente possa saber onde está caindo e se está caindo por uma ação do Estado ou por uma redefinição política da economia criminosa do estado e da cidade do Rio de Janeiro.
Ponte – E o que que dizer com economia criminosa?
Jacqueline Muniz – O Rio de Janeiro tinha 11% do território controlado por milícias. Hoje, estima-se, através de pesquisas e informações da inteligência, que já temos em torno de 40% a 50% dos territórios controlados por milícia. As milícias são formadas por servidores públicos, funcionários do Estado que têm informações privilegiadas. Você tem boa parte de operações policiais acontecendo iminentemente nas áreas do Comando Vermelho, que seria a principal facção, como se estivessem preparando o terreno para ocupação miliciana. Como se os policiais fossem feitos de trouxa, eles vão lá limpam a área para esses governos autônomos criminosos provenientes de dentro do Estado, já que não tem Estado paralelo, esses domínios armados têm uma medida de tolerância, chancela, consentimento das estruturas estatais, seja do Executivo, do Legislativo e do Judiciário. À medida que você esta ampliando o monopólio das milícias, você está produzindo uma espécie de unificação da polícia para o mal. Isso tem um impacto decisivo. Se você não está mais disputando o território, matando para ocupar, tem alguém fazendo isso por você. Ou seja, já dominou não precisa mais enfraquecer ou destruir o seu oponente comercial. As disputas comerciais armadas estão estabilizadas? Essa é a questão. Temos vários grupos armados no Rio de Janeiro: Comando Vermelho, as milícias, Terceiro Comando, a ADA [Amigos dos Amigos], que está mais enfraquecida.
Ponte –E a que você atribui o aumento da letalidade?
Jacqueline Muniz – A letalidade policial, à primeira vista, deriva da proliferação das operações policiais. Hoje, no Rio de Janeiro não se policia. Não se faz mais policiamento, se faz operações. Não se tem soberania sobre território e população. O que se tem são operações realizadas ou por um batalhão ou por uma viatura, num alto grau de desarticulação do topo com a base, e consequentemente essas operações substituem o policiamento e quase sempre são pautadas no confronto. Essas operações tendem a produzir um encarecimento da propina, muito mais pelo controle da violência, tendem a encarecer as franquias, os alvarás concedidos aos grupos criminosos. Isso tudo leva não só a morte de policiais como um aumento deliberado da vitimização de civis pela polícia. Não está se tratando de produzir segurança e sim de produzir proteção a determinados grupos contra outros, a determinados setores da cidade ou do estado contra outros. Precisa então perguntar segurança para quem, para que e de que maneira. Por isso, antes de comemorar as quedas é preciso saber quem é que esta contribuindo para essa pseudo paz no Rio? É a entrega dos territórios para milícias? A produção de mortes não contém mortes. Quem está morrendo não está na posição de mando e liderança dos grupos criminosos o que evidentemente não altera a economia criminosa, a dinâmica criminosa.
Ponte – Podemos encarar as operações policiais nas favelas como uma política pública de segurança de Witzel? Qual a eficiência?
Jacqueline Muniz – A questão é o aumento das mortes pela polícia deriva deliberadamente de uma opção de policiamento feito a base de operações com uma lógica reativa cuja repressão torna um fim em si mesmo. Ela produz muitas mortes e não é responsável pela redução das mortes violentas, porque seria cômico se assim o fossem. As mortes violentas intencionais podem estar caindo por outros fatores. É preciso lembrar que a incapacitação de matadores produz impacto. Mas incapacitar não quer dizer matar, porque ao matar você produz um ciclo de violência, de vingança e portanto de cobrar fatura. Cada morte terá uma fatura cobrada. Você terá uma lógica acumulada de violências letais e esse é o problema. A incapacitação defensiva, que é prender sujeitos, pessoas que mataram, é outra coisa. O que a gente está assistindo é o incrimento das operações, um incremento das operações, um discurso da repressão como fim em si mesmo, um liberou geral, uma especie de licença para matar que é autorizada em boa medida pelo Tribunal de Justiça, através da súmula 70. É importante compreender que isso vale quando aumentar e quando diminuir, porque o que a gente está vendo no Rio de Janeiro é a fabricação de guerras para vender uma falsa paz. É o monopólio de um grupo criminoso chamado milícia. É disso que se trata. Quando você tem estabilização na economia criminosa, no domínio territorial, as mortes caem. Tanto que a morte administrada pela polícia aumentou. A morte administrada pelo crime caiu. O que está caindo são as mortes derivadas dos enfrentamentos entre bandidos armados e está aumentando o número de mortes produzidas pela polícia em razão do incremento de operações em substituição ao policiamento. A polícia abandonou os territórios que foram licenciados, arrendados para logicas criminosas. Nesse caso, para uma estrutura paramilitar chamada milícia. Ela é não só uma organização econômica, é como um partido político informal e não difere em nada com o que aconteceu em outros países em que se teve uma autonomização predatória.
Ponte – E qual o efeito disso?
Jacqueline Muniz – O Rio de Janeiro continua com crescente tiroteios que são efeitos publicitários para mudar a planilha de valores dos negócios criminosos. Fabrica-se guerra para vender uma paz. Alvará mais caro, o arrendamento de territórios são negócios. A vida do policial barateia, a vida do cidadão também. É disso que estamos falando. Tem ação do Estado e do crime e é preciso distinguir isso para que a gente entenda o que está em jogo. Precisamos prestar atenção na série histórica e ver quais os conflitos dentro e fora do sistema prisional aconteceram, se teve um aumento de chacina, de rebeliões, de matanças em função de acordos comerciais quebrados e da reconstrução de novos acordos, novos arranjos e das propinas, dos arregos. Esses arranjos não existem sem o lastro público, sem os dispositivos de segurança pública e justiça. Não há como existirem grupos criminosos produzindo monopólio em territórios sem uma medida de tolerância. É o Estado quem mata e quem deixa morrer e matar. O Rio não esta produzindo segurança. Está matando pessoas. O que está em jogo aqui é produzir a insegurança, porque enquanto você fabrica uma sucessão de operações você não policia.
Ponte – O quanto o discurso de guerra às drogas, combate ao inimigo, muito usado pelo governador, impacta o profissional da segurança da ponta?
Jacqueline Muniz – Toda fala de governante impacta em alguma medida, porque ela dá chancela. Para o policial que está na ponta, vem um pensamento assim: “agora liberou geral”, posso fazer o que bem entendo do jeito que eu quiser porque eu tenho costas quentes. Mas isso dura até a página 3, digamos até a página 4. Na prática, é o governador pegando carona em lógicas perversas criminosas milicianas autônomas. Ele é muito mais um garoto propaganda, um ventríloquo, do que um comandante das polícias. Esse discurso, de fato, estimula um acirramento, mas não seria responsável por si mesmo, se a nossa polícia fosse autônoma, independente, profissionalizada, com dispositivos de controle e governança sobre ela que funcionassem. Aí não importa o maluco que assuma o governo, a polícia seguiria sendo a polícia da sociedade. Hoje a polícia não é nem da sociedade, nem do Estado. As operações são feitas por qualquer grupelho, desde o policial de alto comando, de médio comando, até o policial da esquina. Existe uma autonomização predatória do poder de polícia, cada cabeça uma sentença. E essa lógica indica que a milícia está dominando, rifando os policiais honestos no Rio de Janeiro e maximizando o seu risco de vida. O policial da ponta está correndo mais risco hoje do que corria antes, porque esse discurso repressivo ele está cansado de saber que não funciona, porque barateia a vida dele e aumenta o risco em que ele está exposto, seja no trabalho seja na folga. As armas dele [do governo constituído] valem menos hoje e seria bom que ele retomasse o governo da segurança. O capital político dele, a tinta da caneta bic dele está indo embora e ele está ficando refém da quantidade de mortes que ele tem que assinar no gabinete. A polícia é a política em armas. Quando a polícia atira, quem atira é o governante. É preciso ter governança e capacidade de governo sobre as polícias e hoje não se tem capacidade de governo nas polícias nem aqui e nem no resto do país. As polícias estão sendo aparelhadas por interesses políticos partidários e interesses particulares escusos. Uma polícia de operações é uma polícia que amedronta e ameaça todo mundo, inclusive os próprios policiais. Esses resultados que estamos assistindo podem ser creditados a essa autonomização predatória do uso de poder de polícia que se traduz no novo Tratado de Tordesilhas que é o monopólio das milícias pelos recursos no Rio de Janeiro. Nós temos um governo clandestino e ilegal dos recursos de segurança que foram privatizados de maneira ilegal colocando em risco a vida do cidadão e do policial. Quando a polícia aumenta a quantidade de mortes, ela acaba de reforçar uma lógica de baratear a vida do policial e isso não vem da polícia, isso vem da política. No curto prazo, governantes cheios de bravatas parecem ganhar alguma coisa, mas logo em seguida, perdem seu capital eleitoral, seu voto, porque não tem como determinar onde começa e onde termina a lógica da vingança. Por isso esse tipo de discurso é perigoso. Essas palavras servem para reforçar apenas um grupelho de policiais. Que grupelho é esse? Aquele que explora de maneira ilegal a sua carteira de polícia, seu poder de polícia. Essas bravatas atendem a policiais violentos e corruptos.