O paradoxo da pandemia na República: um pandemônio nos conflitos entre a saúde pública, estratégias eleitorais e a governança “do povo para o povo”?
Roberto Kant de Lima, com Pedro Heitor Barros Geraldo, Fabio Reis Mota, Frederico Policarpo, Flávia Medeiros, respectivamente coordenador e pesquisadores do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).
Nos últimos anos temos nos dedicado a pesquisar as representações e práticas do direito no Brasil e em outros países ocidentais. Esse contraste tem nos mostrado como o direito brasileiro hierarquiza a nossa população em termos de direitos. Ou seja, entre nós, apesar dos preceitos constitucionais republicanos, não há uma estrutura jurídica ordinária que garanta o exercício de um mínimo de direitos comuns a todos os diferentes cidadãos. O que há é a aplicação de um conjunto de privilégios atribuídos a certos segmentos da sociedade, sejam eles detentores do capital ou trabalhadores. A diferença em relação às demais sociedades ocidentais é, portanto, que nelas a desigualdade é vista como um problema. A inexorável desigualdade econômica produzida pelo o mercado é que deve gerir as desigualdades sociais, e o sistema jurídico deve atuar para mitigá-las. Já aqui a desigualdade está inscrita no próprio sistema jurídico, como parte integrante e indispensável dele, sistematizando juridicamente as desigualdades sociais, políticas e econômicas. Essa naturalização da desigualdade jurídica, anterior à desigualdade econômica, é um obstáculo ao funcionamento regular e regulado do mercado e uma expressão de representações culturais de uma sociedade hierarquizada, constituindo-se também em referência e suporte para sua reprodução, onde pode florescer um individualismo perverso, que nunca se identifica com o “outro”, mesmo que este seja seu semelhante.
Essa pandemia coloca em evidência mais uma vez essa naturalização das desigualdades estruturais de nossa sociedade em seus diferentes níveis. Inicialmente, as chamadas medidas sanitárias – lavagem constantes das mãos com água e sabão – e restritivas de circulação, como a necessidade de praticarmos um “isolamento social” - o qual, na verdade, é um confinamento social que de isolamento nada tem - coloca o foco na suposição de que todos temos, de maneira uniforme, o exercício de um direito mínimo à moradia e ao saneamento, o que não é verdadeiro. O problema habitacional no Brasil faz com que nos deparemos com infraestruturas urbanas altamente precarizadas no que tange à mobilidade urbana e ao saneamento, como por exemplo, as das denominadas favelas ou “comunidades”, existentes em toda a região metropolitana do Rio de Janeiro e também em outras de nossas cidades e metrópoles. A inexistência de políticas públicas devotadas ao planejamento urbano que propicie o exercício deste direito hoje evidencia uma enorme distância entre os segmentos da classe média urbana e os segmentos menos favorecidos da população no que tange ao seu bem estar no espaço doméstico.
Esta desigualdade se manifesta, ainda, no fato de que os segmentos superiores da sociedade, além de poder ficar no conforto de suas casas, podem deslocar-se para as casas de campo e veraneio, confinando-se com suas famílias. Claro que também contando com toda a estrutura de empregados e serviços à disposição, mostrando a total falta de solidariedade e de compaixão com a situação dos trabalhadores domésticos. Confinamento este que também impõe dificuldades suplementares principalmente às mulheres nessa nova conformação social, como a sobrecarga do trabalho doméstico, das mães que tomam conta sozinhas dos filhos, e no seu efeito perverso, que é o aumento do registro de casos de violência doméstica e de feminicídios, o que nos faz refletir sobre as condições sociais e emocionais que definem o "lar" e a casa, ambientes vinculados aos papéis sociais das mulheres e que se tornam o principal terreno para a emergência dos conflitos.
Em segundo lugar, a pandemia torna explícita nossa tradição escravocrata ao colocar em risco pessoas e setores mais vulneráveis da sociedade que hoje se encontram numa condição ainda mais precária e perigosa quanto ao seu direito ao trabalho, bem como a sua segurança sanitária, já que milhões de trabalhadores e trabalhadoras são obrigados de forma desumana a cumprirem suas jornadas de trabalho, deslocando-se por meio de precária e congestionada rede de transportes públicos, inclusive sem as proteções sociais e sanitárias necessárias nesse momento de crise, tudo isso estimulado por uma espantosa propaganda governamental alheia às prescrições mínimas de segurança sanitária e do trabalho, ao arrepio do resto do mundo.
As comparações com outros contextos têm se concentrado na (in) capacidade de acolhimento da infraestrutura de saúde. Mas os regimes de proteção social e do trabalho das democracias europeias são muito uniformes e presentes no cotidiano dos cidadãos e funcionam como articuladores de políticas em nível nacional. Em contraste, no Brasil, as medidas restritivas severas adotadas pelos governadores dos estados têm atingido apenas uma pequena parcela da sociedade que tem acesso a direitos como moradia, saneamento, saúde e trabalho. Já as políticas do governo federal têm ido na direção de que os cidadãos podem lidar com seus recursos próprios com as consequências imprevisíveis do contágio.
Finalmente, a crença na eficácia das políticas com ênfase repressiva na saúde e na segurança, seja de “tratamento de doenças”, seja do “tiro, porrada e bomba” – sempre para os “outros” - são condições que dificultam a adoção de medidas preventivas com adesão universal da sociedade. A falta de proteção no trabalho e a falta de confiança nas autoridades públicas limitam a difusão de políticas restritivas compreensíveis para a sociedade, provocando seu descumprimento, seja por necessidade, seja pela arrogância daqueles que se acham acima da lei e das regras, que devem se aplicar apenas aos “outros”, muito difundida entre nós, mas mais explícita nos segmentos hierarquicamente superiores de nossa sociedade.
Para complexificar mais ainda o problema, essas medidas se tornaram objeto de disputa política, em um governo federal que se alimenta de crises para fortalecer-se no poder e ocultar seus eventuais descaminhos. Utilizou-se desde a campanha eleitoral de estratégias negacionistas, de desqualificação sistemática e universal dos contendores e dos seus argumentos, replicando a lógica medieval da disputatio, tão cara ao nosso direito processual e à formulação do saber jurídico nacional. Encerrado o período eleitoral, no entanto, prosseguiu governando de modo virtual com essa lógica nas mídias sociais, desprezando práticas de criação de consensos e união de esforços para formular, propor, aprovar e implementar políticas públicas. Mas a negação do conhecimento científico, o ataque sistemático à necessidade e qualidade dos serviços públicos chocou-se com a realidade de uma pandemia, fenômeno que ultrapassa em muito as fronteiras mesquinhas dessa luta política eleitoral.
Um ponto relevante a se notar é a banalização com que essa estratégia de implementação de ações governamentais tem se sustentado. Recentemente revogou-se parcialmente uma Medida Provisória (MP) no que se referia à suspensão do contrato de trabalho sem salário, atribuindo-se essa normativa esdrúxula, no meio de uma pandemia, a um “erro de redação”. Ora, isto mostra a inabilidade desta gestão em relação às regras de funcionamento da própria burocracia institucional, coisa que já vimos discutindo há tempos no que se refere às instituições de segurança pública. Desprezam-se as regras e menosprezam-se os protocolos porque não se acredita na eficácia da racionalidade burocrática. A burocracia que é, antes de tudo, uma memória e uma proteção protocolar das prerrogativas e decoro dos governantes e do direito de governados, é vista como um empecilho para a tomada de decisões, por impedir o exercício arbitrário da autoridade. Uma leitura possível desse “erro” é a de falta de articulação com os empresários e trabalhadores para se elaborar uma MP pertinente para a situação atual. Outra leitura possível é a de uma tentativa de controlar a pauta do debate público, em uma já conhecida estratégia desse governo em produzir crises de forma sistemática para desviar-se de temas negativos a sua imagem, e/ou uma tentativa de pressionar as instituições, na base do “se colar, colou”.
Por outro lado, seja lá de quem for sua autoria, ela revela valores resilientes dessa matriz escravocrata da sociedade brasileira que, reiteradamente, em diferentes circunstâncias, como já dito, demonstra seu desprezo pelos direitos de cidadania de determinados setores da sociedade brasileira, ainda vistos como um seu segmento hierarquicamente inferior. Essa MP é uma forma moderna e institucional de reproduzir a lógica do trabalho escravo, ainda, infelizmente, tão presente em nossa sociedade, na contramão das necessárias políticas de apoio governamental urgente a empresas que não demitam e aos trabalhadores autônomos e desempregados, estratégia que vem se universalizando entre os países atingidos.
Esta experiência coletiva das medidas sanitárias restritivas e os prejuízos sociais e humanos, provavelmente, muito desiguais entre os poucos com proteções sociais e os muitos sem nenhuma, produzirá reflexões sobre o papel da política profissional; dos investimentos nas políticas sociais e proteção ao trabalho; do papel da ciência na sociedade e na produção de políticas públicas — especialmente, mas não exclusivamente, de saúde pública, representada pelo SUS — e no bem estar social. Como o vírus, apesar de atingir de modo mais óbvio os pobres, também atinge a classe média e os ricos, todos dependentes das pesquisas públicas de produção de diagnósticos e de vacinas, essa circunstância pode explicitar com mais eficiência a relevância da ciência, da educação e da saúde públicas em nosso país e na própria reprodução do sistema capitalista.
Por outro lado, devemos considerar que nosso mundo é feito de crises. Vivemos sistematicamente em crises, pois essa foi a opção econômica, política e social que a sociedade ocidental escolheu. Prognósticos para o futuro costumam ser projeções de eventos passados mas, aparentemente, este é um evento – e um vírus – com características ainda desconhecidas.
Então, quem sabe iremos acentuar ainda mais nosso fechamento para o outro, com o reforço de ideologias nacionalistas e territorialistas – pautadas pela ideia de que “farinha pouco, meu pirão primeiro” – ou, pelo contrário, iremos produzir um sentido de universalidade da humanidade que confira às práticas sociais um outro modo de fazer a sociedade, fundada na compreensão de que somos uma coletividade planetária? Mas isso, só o futuro nos dirá.