O ministro Gilmar Mendes explicava que: “A moderna dogmática dos direitos fundamentais discute a possibilidade de o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados e sobre a possibilidade de eventual titular do direito dispor de pretensão a prestações por parte do Estado.” (2000, p. 204).
Se por um lado existe o dever de intervir; por outro, os operadores do direito produziram o argumento da “reserva do possível” para justificar o não cumprimento das regras em razão de uma escassez financeira dos entes da federação.
De todo modo, a “moderna dogmática” dos nossos operadores produziu um grande volume de intervenções na saúde obrigando os gestores do sistema de saúde a criarem estratégias para lidar com as decisões de justiça, embora esta “judicialização” esteja limitada pelo número de leitos existentes no contexto da pandemia.
O sistema penitenciário não teve a mesma sorte. A lei de execuções penais não pegou, como se dizia, e ainda não pega. As instituições de segurança pública e justiça criminal são responsáveis pela terceira população carcerária no mundo.
Aliás, o min. Luiz Fux explicou no julgamento da ADPF 347 que “nós estamos reconhecendo esse ‘estado de coisas inconstitucional’, exatamente porque os juízes não motivam, eles não fundamentam as suas prisões.’(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2015).
Esse reconhecimento, no entanto, não atenua a situação de privação de direitos de cerca de 748.009 pessoas privadas de liberdade para 442.349 mil vagas disponíveis segundo o último levantamento nacional de informações penitenciárias, realizado em dezembro de 2019. Dentre estes, 229.823 pessoas sequer foram condenadas (2019).
Assim, o significado das práticas ficou cada vez mais difícil de se associar aos direitos, que se estimularam pelas experiências europeias e norte-americanas; e as práticas da justiça são incapazes de encontrar uma performance orientada para a garantia dos direitos em meio às políticas de encarceramento fomentadas por leis mais repressivas (CAMPOS, 2010; RIBEIRO; MACHADO; SILVA, 2012).
No contexto da crise sanitária, o Conselho Nacional de Justiça em sua recomendação nº 62 orientou os juízes a tomarem providências preventivas para evitar o contágio de Covid-19 no sistema de justiça penal e socioeducativo.
Por sua vez, o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública adotou uma postura crítica a essas medidas, especialmente aquelas de desencarceramento. Ele explicou em entrevista JOTA que: “Temos visto algumas decisões, até de magistrados de primeira instância que querendo resolver alguma questão às vezes geram outra” referindo-se à soltura dos presos (OYAMA, 2020).
Por outro lado, várias associações de operadores do direito e de movimentos sociais assinaram o manifesto de Apoio à Recomendação 62 do CNJ e ao Desencarceramento em que explicam: “O sistema prisional brasileiro e de socioeducação padecem há anos com as péssimas condições estruturais, superlotação, mortes de causas não violentas e proliferação de doenças graves, como tuberculose e sarna, retrato da sua atuação seletiva orientada pelo racismo estrutural, encarcerando majoritariamente pessoas negras e pobres.” (2020).
O levantamento do Infopen (2019) indica que cerca de 250 mil presos têm algum tipo de doença. Enquanto o dilema dos políticos profissionais pendeu entre a proteção à vida e a preservação da economia; os operadores do direito opuseram o poder de punir do estado contra a dignidade dos cidadãos encarcerados”.
Em relação às prisões, o dilema explicita a autonomia dos juízes brasileiros e a sua legitimidade para organizar os serviços de justiça. Por esta razão, as políticas do CNJ são insuficientes para orientar as decisões dos juízes. A gestão da execução da pena privativa de liberdade se produz de maneiras distintas nas unidades prisionais.
Os presídios femininos são afetados particularmente pelo abandono familiar, mas também por muitas violências e um controle disciplinar arbitrário que prolonga o tempo de cumprimento da pena em regime fechado (ANDRADE; GERALDO, 2020). Além disso, não há um consenso sobre as medidas que devem ser adotadas para assegurar a vida das pessoas encarceradas.
Diante das recomendações da Organização Mundial da Saúde, observamos que as condições vividas pela população prisional produzem justamente o oposto. Ainda assim, os estados membros da federação vêm adotado diversas medidas.
No Rio de Janeiro, uma delas foi reunir todos os idosos numa mesma unidade prisional. As visitas dos familiares foram suspensas em razão das políticas de distanciamento social.
Uma decisão da Vara de Execuções Penais concedeu prisão domiciliar aos presos com “saída externa de trabalho extramuros e em regime aberto, e desobrigou de pessoas que cumprem liberdade condicional, prisão albergue domiciliar, sursis e limitação de fim de semana” (CAMPBELL FERREIRA et al., 2020).
O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Estado do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) tem relatado as condições nas quais as pessoas são mantidas em ambientes prisionais, marcados pela insalubridade, superlotação carcerária, insuficiência no fornecimento de produtos de higiene, precariedade no fornecimento de água e no serviço de saúde básica (CAMPBELL FERREIRA et al., 2020).
A crise sanitária desafia os operadores do direito e a autoridade das ordens judiciais para se “criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados” no sistema prisional, como fez para a saúde.
Enquanto isso, o dilema demonstra como a pedagogia da justiça é explícita. Toleramos a ideia de que os encarcerados são os “nacionais” sem direitos com a privação que vai muito além da liberdade. Afinal, aprendemos que os cidadãos não têm dignidade alguma quando são presos.
[*] Os autores agradecem a leitura prévia e as sugestões ao texto de João Vitor Abreu, Juliana Sanches Ramos e Juliana Vinuto.
Referências bibliográficas
ANDRADE, B. DE O. A. DE; GERALDO, P. H. B. “Esperteza” e “bom comportamento” na execução penal. Antropolítica Revista Contemporânea de Antropologia, v. 0, n. 48, 2 abr. 2020.
CAMPBELL FERREIRA, A. et al. Relatório Parcial sobre os impactos do COVID-19 no Sistema Prisional do Rio de Janeiro: Informações adicionais até o dia 19 de abril de 2020: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, 2020.
CAMPOS, M. DA S. Crime e Congresso Nacional no Brasil pós-1988= uma análise da política criminal aprovada de 1989 a 2006. 2010.
Levantamento nacional de informações penitenciárias. . Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, Departamento Penitenciário Nacional, 2019.
Manifesto de Apoio à Recomendação 62 do CNJ e ao Desencarceramento. , 2020. Disponível em: <http://www.abjd.org.br/2020/04/manifesto-apoio-recomendacao-62-do-cnj.html>. Acesso em: 20 abr. 2020
MENDES, G. F. Direitos individuais e suas limitações: Breves reflexões. In: MÁRTIRES COELHO, I.; GONET BRANCO, P. G.; MENDES, G. F. (Eds.). . Hermenêutica consititucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
OYAMA, É. Covid-19: Ação coercitiva da polícia é “medida em última análise”, diz Moro. JOTA Info, 13 abr. 2020.
RIBEIRO, L. M. L.; MACHADO, I. S.; SILVA, K. A. A Reforma Processual Penal de 2008 e a efetivação dos direitos humanos do acusado. Revista Direito GV, v. 8, n. 2, p. 677–702, 1 jul. 2012.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inteiro teor do acódão da MEDIDA CAUTELAR NA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 347 DISTRITO FEDERAL, 2015. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665>. Acesso em: 20 abr. 2020.