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Claúdio Salles

Claúdio Salles

O site do INCT/INEAC reproduz aqui o artigo do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, intitulado "O projeto bolsonarista não cabe na Carta de 88", publicado nessa quarta-feira, 13 de maio de 2020 no SUL 21 - https://www.sul21.com.br/opiniaopublica/2020/05/o-projeto-bolsonarista-nao-cabe-na-carta-de-88-por-rodrigo-ghiringhelli-de-azevedo/ . 

 

O projeto bolsonarista não cabe na Carta de 88 (por Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo)

 

Atravessamos mais uma semana amarga no Brasil. A pandemia ultrapassou os 10 mil mortos, e segue em curva ascendente, enquanto na maioria dos países que sofreram duramente com a covid-19 a curva de contaminados e mortos já está em declínio. Em breve chegaremos aos mil mortos por dia, sem que se vislumbre um mínimo de racionalidade e coordenação por parte do governo federal, que incrivelmente tem atuado para boicotar os esforços dos estados para conter a pandemia.

 

Enquanto esperamos para saber quando cairá o novo Ministro da Saúde, por sustentar uma posição científica sobre como reduzir as contaminações e mortes, o Presidente da República se aproveita da maior crise de saúde em muitas gerações no Brasil e no mundo, que fecha escolas e universidades, vitima servidores do sistema de saúde pública como nenhuma outra doença contagiosa de que se tenha notícia, para fomentar a crise política e rumar para o autogolpe contra as instituições que ainda lhe opõem alguma resistência: o parlamento, o Supremo Tribunal Federal e a mídia, representada pela Globo, Folha, Estadão, e a cada dia mais veículos de comunicação de massa.

Na eleição de 2018, é importante lembrar que não houve debate com o candidato vencedor. No princípio ele não comparecia por vontade própria, e depois que sofreu a facada, foi internado e não foi possível conhecer a fundo as suas ideias, em embate com os oponentes. Caso tivesse ido aos debates, Bolsonaro teria que dizer que pretendia liberar enorme quantidade de armamento e munição para a sociedade civil, sob o argumento de armar o cidadão para enfrentar o criminoso e o próprio Estado, em caso de necessidade.

Teria que mostrar que, embora nunca tenha trabalhado para qualificar e melhorar as condições de trabalho dos servidores da segurança pública, propunha que pudessem matar indiscriminadamente, cobertos por nova excludente de ilicitude, que dispensaria a ação de delegados, promotores e juízes no esclarecimento do fato. Teria que dizer que gostaria de ver derrubada a floresta Amazônica, transformada em pastagem, e dizimada a população indígena que não aceitasse abandonar a sua cultura. Teria que sustentar que, em caso de pandemia, tudo continuasse funcionando, para que a contaminação e as mortes não prejudicassem o funcionamento da economia, mesmo que isso ampliasse em muito os danos causados pela doença nas pessoas e no sistema de saúde pública. Se Bolsonaro tivesse ido aos debates, teria que dizer que para ele o melhor sistema de governo é o que tem um poder único, absoluto, que amolda e submete os demais poderes, para impor a sua vontade, como se Constituição fosse.

Sabemos agora que, caso seus filhos tenham praticado algum ilícito, os mesmos terão defesa intransigente do pai, mesmo que para isso tenha que demitir o Ministro da Justiça para trocar o superintendente regional do Rio de Janeiro, e com ele poder “resolver problemas” da família e dos amigos. Bolsonaro teria também que apresentar seu plano de transformação do ensino e da pesquisa no Brasil, que passava pelo estrangulamento das ciências humanas e sociais, e da própria Universidade Pública, para colocar no lugar algo que ainda não sabemos o que é, desestruturando um sistema de formação de graduação e pós-graduação que levamos décadas para construir, com todas as suas imperfeições, mas que vinha aumentando a cada ano a participação do Brasil na produção científica mundial, sem a qual não há futuro na sociedade do conhecimento.

Ora, sabemos que Bolsonaro defendia todas essas propostas quando candidato. Mas foram sustentadas por whatsapp, ou em programas de rádio e TV de jornalistas amigos, onde somente ele era o entrevistado, ou em momentos específicos nos quais produzia as suas performances de político miliciano, como quando ofendeu e desdenhou de uma deputada que não mereceria o estupro, ou quando homenageou um notório torturador em plena tribuna da Câmara. Não foram sustentadas no debate público, como um programa de governo, por um simples motivo: o programa do Bolsonarismo não cabe na Constituição de 88, é inconstitucional. Se o programa apresentado entre fotos de armas e fake news entra em choque com a Constituição Federal, qual o papel das instituições de controle?

Como devem agir a Câmara e o Senado, quando são encaminhadas, por medida provisória ou projeto de lei, o desvirtuamento do sistema de garantias para a população indígena, para as mulheres, para os negros, para os homossexuais, para as crianças e adolescentes, para os trabalhadores de todos os ofícios? Como deve agir o Supremo Tribunal Federal diante de atentados contra a ordem democrática, como gabinetes do ódio e fake news, montados no Palácio do Planalto e arredores? Como deve agir a imprensa, que não se confunde com os proprietários dos veículos de comunicação, formada por repórteres, jornalistas de opinião, apresentadores, atacados e ofendidos diariamente por cumprirem sua missão de dar visibilidade a tudo o que ocorre nas esferas do poder, pressuposto da democracia?

Muitos que votaram em Bolsonaro mas não aderiram ao projeto bolsonarista, já perceberam a fria em que se meteram. Contribuiu para isso a falta de visão de Lula e do PT, de que a ida de um candidato do partido para o segundo turno viabilizaria a concretização da onda bolsonarista. O fato é que, enquanto a classe média urbana se descola, e com ela a possibilidade de manter uma maioria do eleitorado ao seu lado, por outro lado leva Bolsonaro a tentar avançar com seu programa, que contém, além de tudo o que foi acima apontado, a garantia de imunidade e impunidade aos que estão ao seu lado, pela submissão das instituições de controle, através de demissões e afastamentos de servidores públicos interessados em agir de forma correta com todos, ou a escolha de carreiristas dispostos a tudo em troca de um espaço de poder.

Para isso, e tendo em vista todas as afrontas à ordem legal e constitucional, que poderiam levar a um afastamento, Bolsonaro aposta em dois grupos: o dos militares, bem servidos em espaços de poder nos ministérios, entre quadros da reserva e da ativa, e que com isso assumem partido pelo governo e produzem um curto circuito institucional inédito pós-88, e o dos deputados e senadores do chamado Centrão, grupo mais fisiológico no Congresso e disposto a trocar apoio por cargos e verbas, e com alguma afinidade ideológica ao bolsonarismo.

Há um terceiro grupo, também muito importante para o projeto bolsonarista de ocupação das instituições para desconstituir o programa de 88, e que garante seus sólidos 25% de apoio quase incondicional no eleitorado. Esse grupo é formado pelas igrejas neopentecostais, dominados pelo proselitismo político de pastores deputados, mas também por um campo muito amplo de eleitores que se convenceram de que somente Bolsonaro é capaz de enfrentar os problemas da segurança pública, fortalecendo as polícias e derrotando a criminalidade, por meio da legitimação do justiçamento, já praticado por milícias em certas áreas e por policiais em confronto em favelas e áreas de periferia, mas também pela liberação do armamento para a autodefesa da população civil.

Por incrível que possa parecer, essa narrativa encontra eco em vários níveis das corporações policiais, que se sentem acuados pela criminalidade e pelo crivo da opinião pública e das instituições de controle próprio de uma sociedade democrática. Bolsonaro é a esperança de mão forte contra o crime e impunidade para os atos praticados supostamente em nome da sociedade.

Para chegar ao seu propósito, Bolsonaro tem sido competente. Surfa na pandemia, afastando ministros populares e aparecendo como o único defensor da abertura da economia; garante o apoio dos militares, em uma estratégia muito próxima ao chavismo, de cooptação por cargos; costura o apoio parlamentar também pelo sistema de votos por cargos e verbas (nesse caso contrariando uma promessa de campanha); monta uma máquina de mobilização de desocupados e radicalizados para mostrar força; e busca um equilíbrio precário entre o setor “desenvolvimentista” dos ministérios militares e o neoliberalismo de Paulo Guedes para lidar com o mercado.

Se tudo isso é verdade, estamos diante de um ataque sistemático, orquestrado e violento ao estatuto a partir do qual se organiza a sociedade brasileira desde 88. Para que não ocorra a demolição anunciada, é preciso agir rápido. Não haverá grandes manifestações de massa contra Bolsonaro, pela pandemia e pela falta de lideranças políticas anti-bolsonaristas com credibilidade no debate público. Lula e o PT foram derrotados e hoje falam para um eleitorado cada vez mais restrito. Ciro se mostrou pouco capaz de disputar a esquerda e parecer confiável para o centro. Quem ocupa a cena política neste momento são os governadores, com destaque para Dória em São Paulo e Eduardo Leite no Rio Grande do Sul, mas também Camilo Santana no Ceará, Flávio Dino no Maranhão e, pela direita, para Ronaldo Caiado, padrinho político de Mandetta e médico como ele, que rompeu com Bolsonaro pela condução da pandemia, e Witzel, governando um estado que vai encontrar grande dificuldade para lidar com a pandemia e em choque frontal com o governo federal.

A cada dia um novo chamado é feito, no sentido de que a omissão não é mais tolerável. Estamos diante do momento mais importante da nossa geração, criada na abertura democrática, a maior pandemia com a maior crise política desde a democratização. Daqui em diante, cada um precisa assumir a sua responsabilidade, para a contenção do arbítrio e da desesperança que se seguirá. Em primeiro lugar, é preciso destituir Bolsonaro, que não reúne mais condições legais e políticas para permanecer na Presidência da República. Em segundo lugar, é preciso reunir as lideranças da sociedade civil, do empresariado, da igreja católica, da umbanda, dos grupos evangélicos democráticos, do judaísmo esclarecido, do agronegócio afetado por uma política externa errática e destrutiva, das carreiras de Estado impressionadas com a destruição institucional bolsonarista, e pensar em um novo projeto para o país, conectado com as bases lançadas em 88, mas também com um novo tempo, pós-covid, onde os desafios serão imensos para a inserção do país no mundo globalizado, com mais justiça social e políticas públicas eficientes e igualitárias. Ninguém mais pode dizer que não sabe o que está em jogo neste momento.

(*) Sociólogo e professor da Escola de Direito da PUCRS.

 

Nosso site reproduz aqui o artigo "Liberdades e igualdades em tempos de coronavirus", escrito por Roberto Kant de Lima e Pedro Heitor Geraldo,  respectivamente coordenador e pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC) . O artigo foi publicado nessa segunda , 11 de maio de 2020, no BLOG Ciência e Matemática do O GLOBO . 

Liberdades e igualdades em tempos de coronavirus

 

A pandemia que nos assola tem suscitado discursos aparentemente contraditórios entre, de um lado, a preservação da vida e de outro a preservação da economia. Quanto a este último, frequentemente tem-se enfatizado o fato de que o confinamento social, recomendado para preservar a vida, atingiria fortemente o exercício do direito à liberdade, que deveria ser respeitado como um direito essencial à democracia.

 

Essa dicotomia, como muitos apontaram, não se sustenta, mas faz parte de uma estratégia de confrontação discursiva própria de nossos tempos politicamente radicalizados. Uma cilada moderna construída através da linguagem da política e do direito que reduz e simplifica nossos dilemas contemporâneos obliterando-se a complexidade de nossa sociedade plural e multicultural. Assim, essas dissensões cognitivas simplificadas sobre o sentido mundano da vida moderna eclipsam pontos de vista distintos como os da política, do direito e da religião para produzir violentamente soluções simples para problemas complexos.

 

A intenção aqui é explicitar o significado nada evidente do déficit de direitos civis que sistematicamente assola nosso sistema jurídico-político desde sempre no que se refere à igualdade de direitos dos cidadãos e de suas liberdades. Nossas pesquisas há muito apontam que o sistema jurídico brasileiro naturaliza a segmentação da sociedade em partes desiguais não só em virtude de seu status econômico, o que seria próprio do sistema capitalista pautado, particularmente, pelo princípio das liberdades das escolhas individuais, mas também em virtude destes segmentos serem portadores de direitos desiguais, herança inusitada e estranhamente resiliente tanto de nosso passado imperial, como da escravatura, regime que equiparava os escravos a animais domésticos e/ou domesticados.

 

Nossas faculdades de direito ensinam que “cidadãos” são aqueles que exercem seus direitos políticos, assim retirando da cidadania aqueles que não votam e, portanto, até meados do século passado, todos os analfabetos e até hoje todos os jovens de menos de 16 anos. Ao proceder a essa exclusão, nosso sistema jurídico, repetindo incansavelmente que “a regra da igualdade é quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”, enfatiza que seu papel não é o de distribuir igualmente os direitos pela população, mas de distribuí-los desigualmente, para não alterar a composição juridicamente piramidal da nossa sociedade, em nome da necessária manutenção de uma ordem naturalmente desigual das coisas

 

Ora, na equação jurídico-político-econômica liberal da sociedade capitalista ocidental, o direito iguala formalmente os diferentes, atribuindo-lhes um mínimo comum de iguais direitos, para que o mercado possa exercer sem maiores dilemas morais e éticos sua inexorável desigualação econômica, pois credita-se aos indivíduos a possibilidade e capacidade desses optarem entre trajetórias diferentes em um universo limitado de opções presentes no espaço público e no mercado. Acredita-se que tais cidadãos, igualados juridicamente, estariam em condições de competir, pelo seu mérito, para alcançar os lugares mais altos da estrutura social, ou mesmo, por liberdade de escolha, abdicar dessa opção em prol de outras formas alternativas de vida que não estejam associadas ä ascensão social, tornando-se um desviante do sistema. Ora, como isso não ocorreu assim tão simplesmente, uma série de outros direitos – políticos, sociais, etc., se juntam aos diretos civis para “mitigar” a desigualação que é da natureza do mercado.

 

Em nosso caso, entretanto, uma desigualação jurídica ainda mais consistente e presente ocorre antes da desigualação do mercado se instalar nas relações econômicas de nosso cotidiano, como que a opor-se ou impedi-la juridicamente. Evitar-se-ia, assim, a destruição das formas aristocrático-oligárquicas de desigualação, impedindo que as regras do mérito na competição do mercado prevaleçam, em prol da manutenção de privilégios que, se numa monarquia absoluta se fundavam no sangue azul e no direito divino dos reis, em uma república não fazem sentido algum.

 

É assim que nosso direito preza muito a proteção das liberdades civis, desigualmente distribuídas pela nossa pirâmide jurídica, em que poucos as podem exercer em sua plenitude, enquanto muitos nunca as tiveram em seu pleno exercício, como é o caso das populações que vivem confinadas em favelas, geograficamente delimitadas em regiões disputadas pelas facções e/ou pelas milícias no Rio de Janeiro.

 

Esse mesmo sistema não se sensibiliza nem se estrutura para distribuir igualmente os diretos civis pela população. Se esta fosse a sua preocupação, esse discurso de oposição às restrições da liberdade de ir e vir teria que encontrar sua limitação no exercício do direito à saúde pública, de viver e proteger-se de todos os cidadãos. O confinamento não tem apenas um lado de restrição negativa da liberdade individual, ou de proteção dos confinados pelo medo da contaminação mas, principalmente, também visa a proteção dos outros cidadãos em relação à expansão da contaminação viral e ao direito ao atendimento médico satisfatório para todos. Além do mais, os cidadãos, portadores todos de iguais direitos, não deveriam poder ser inflexivelmente e simploriamente segmentados entre aqueles que podem confinar-se e os que estão destinados a arriscar-se em movimento. As mídias digitais têm mostrado aglomerações em São Gonçalo e na Baixada Fluminense que atestam essa natural desigualdade entre os trabalhadores que têm que se movimentar e as classes médias e alta, que podem usufruir do privilégio de se confinar.

 

Ora, a preservação da vida – e da saúde - decorre de uma dimensão normativa negociada e escolhida entre os representantes da sociedade num documento constitucional que constituiria, suposta e antinaturalmente, os escopos das instituições, nossos artefatos sociais para “efetivar direitos”, como diriam os bacharéis em direito. Não é à toa que no documento que deveria constituir as finalidades mundanas das instituições brasileiras, já estava inscrito que as diferenças naturais dos sujeitos não são critérios legítimos para justificar um tratamento desigual por parte dos membros do Estado, pois são diferentes em sua igualdade, mas jamais desiguais em suas diferenças.

 

Não é demais notar que essa desigualdade de direitos naturalizada nessa situação pandêmica guarda semelhança com aquela existente desde sempre em nossa segurança pública, ao desprezar as atitudes de prevenção, próprias das sociedades igualitárias, padronizadas e normalizadas. Como na segurança pública, em que se espera que a política de guerra, ou combate ao crime na base do “tiro, porrada e bomba” extinga os conflitos da sociedade, aqui também são prescritos sucessivamente remédios para curar a praga disseminada pelo vírus. Em sociedades igualitárias as políticas preventivas que visam evitar ao máximo a ocorrência de transgressões são consideradas pelo menos tão relevantes quanto as repressivas; já nas sociedades de juridicamente desiguais, a repressão dos transgressores é a tônica da política majoritariamente implementada, sempre destinada, é claro, a reprimir ou extinguir os “bandidos”, isto é, “os outros” ou, no caso, os doentes.

 

Num sistema juridicamente individualista e igualitário, os indivíduos tendem a diferenciar-se identitariamente para reivindicar o exercício de direitos iguais para todos os diferentes cidadãos e há um mínimo comum de direitos compartilhados uniforme e igualmente por todos os diferentes indivíduos. Isso resulta em que o direito à liberdade de cada um está submetida ao respeito aos iguais direitos de liberdade do seu próximo. Mais, a liberdade de cada um se exerce fazendo opções dentro de um elenco limitado de possibilidades previamente definidas, não havendo nunca a possibilidade de se fazer escolhas que transgridam esse limite. É como os sanduíches do Mac Donald’s, não se pode comer bisnaga com queijo, salame e goiabada, como se pede na padaria da esquina. Ou seja, não se pode tudo, não há liberdade absoluta no sistema jurídico liberal-capitalista, um mundo no qual a liberdade de cada um se exerce até atingir a liberdade alheia.

 

Assim, a liberdade liberal não pode ser confundida com a ideia de liberdade seletiva e irrestrita do mundo das hierarquias e desigualdades naturalizadas, como ocorre no do Brasil. A liberdade liberal não é a libertinagem, pois, pelo contrário, exige uma enorme internalização e normalização das condutas dos cidadãos regidos por padrões e normas uniformes e igualmente distribuídas entre os segmentos da sociedade. Trata-se, como salientei, da escolha do Mc Donald's entre sanduíches já previamente dispostos entre as opções do menu e não o self service brasileiro que permite composições ilimitadas da sua liberdade de escolher comer salmão com jiló.

 

Já num sistema hierárquico, a individualização desiguala e leva ao exercício particularista do egoísmo e à desigualdade no exercício de direitos. É o caso brasileiro, em que a pandemia explicita que uns podem considerar-se, naturalizadamente e sem oposição mais livres que os outros, em detrimento da igualdade de todos. O exercício da solidariedade, o sacrifício do confinamento para o benefício de todos escapa de nossas mãos não só pelo tratamento do conflito com a lógica da guerra, como escreveu recentemente neste jornal Daniel Tabak1, mas também pelo reforço do exercício naturalizado da desigualdade de direitos, pela irresponsabilidade dos dirigentes que persistem na negação do risco, evitando o estímulo às soluções preventivas, e escolhendo o perigo e a morte (supostamente, sempre dos outros) como solução.

 

 

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Os antropólogos e pesquisadores vinculados ao INCT/INEAC, Lenin Pires e Wladmir Luz realizam nessa terça, às 14 horas, pelo projeto UFF NAS RUAS, uma Live cujo tema é Assessoria Popular, extensão e direitos numa perspectiva interdisciplinar. A transmissão será pelo Instagram @uffnasruas   

 

Nessa segunda, dia 4 de maio de 2020, o programa PARA SUA CIÊNCIA, apresentado pela antropóloga Izabel Nuñez (INCT/INEAC) traz o tema A GESTÃO DOS MORTOS EM TEMPOS DE PANDEMIA, com a participação da pesquisadora e também antropóloga Flavia Medeiros (INCT/INEAC). A live será transmitida na página do Instagram do INCT/INEAC - @inctineac, às 20h.

 

Nessa segunda, dia 4 de maio de 2020, o programa PARA SUA CIÊNCIA, apresentado pela antropóloga Izabel Nuñez (INCT/INEAC) traz o tema A GESTÃO DOS MORTOS EM TEMPOS DE PANDEMIA, com a participação da pesquisadora e também antropóloga Flavia Medeiros (INCT/INEAC). A live será transmitida na página do Instagram do INCT/INEAC - @inctineac, às 20h.

 

A Pontificia Universidad Javeriana, de Bogotá, Colômbia,  promove no próximo dia 5 de maio o evento online: Contexto colombiano carcelario frente a la pandemia del Covid-19 e que contará com a participação do sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, pesquisador vinculado ao INCT/INEAC. 

Quem quiser assistir pode se inscrever no endereço https://forms.office.com/Pages/ResponsePage.aspx?id=Dpn32j-KnECbdipUdQmAAMYCnv3FqS5EsfmghWVRyN5UMVlWRFc1S1FKRkFLUDQzM0VUMENSNEZFNi4u

 

O evento será transmitido plataforma zoom - https://us02web.zoom.us/j/88407866996

Confira no cartaz a programação da atividade:

 

 

 

 

 

 

O site do INCT INEAC reproduz aqui o artigo dos pesquisadores Pedro Heitor Geraldo e Betânia de Oliveira Rodrigues, publicado no site https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/dilema-dos-operadores-do-direito-e-politicas-de-injustica-criminal-na-pandemia-01052020 

 

JUDICIÁRIO E SOCIEDADE

Dilema dos operadores do direito e políticas de (in)justiça criminal na pandemia

Desafio da crise é garantir exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados no sistema prisional

 

Há pelo menos duas décadas os publicistas brasileiros se concentravam em discussões sobre a dignidade da pessoa humana. Alguns ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), referências para muitos operadores do direito, argumentavam sobre a existência de um “núcleo essencial” do princípio da dignidade da pessoa humana.

As discussões fundadas em muitas presunções abstratas e filosóficas socializaram os jovens bacharéis em direito com as filosofias do direito europeias e norte-americanas. Apesar disso, reverberava sobre o mundo do direito o vaticínio do Presidente Sarney da ingovernabilidade do país com a constituição cidadã.

 

O ministro Gilmar Mendes explicava que: “A moderna dogmática dos direitos fundamentais discute a possibilidade de o Estado vir a ser obrigado a criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados e sobre a possibilidade de eventual titular do direito dispor de pretensão a prestações por parte do Estado.” (2000, p. 204).

Se por um lado existe o dever de intervir; por outro, os operadores do direito produziram o argumento da “reserva do possível” para justificar o não cumprimento das regras em razão de uma escassez financeira dos entes da federação.

De todo modo, a “moderna dogmática” dos nossos operadores produziu um grande volume de intervenções na saúde obrigando os gestores do sistema de saúde a criarem estratégias para lidar com as decisões de justiça, embora esta “judicialização” esteja limitada pelo número de leitos existentes no contexto da pandemia.

O sistema penitenciário não teve a mesma sorte. A lei de execuções penais não pegou, como se dizia, e ainda não pega. As instituições de segurança pública e justiça criminal são responsáveis pela terceira população carcerária no mundo.

Aliás, o min. Luiz Fux explicou no julgamento da ADPF 347 que nós estamos reconhecendo esse ‘estado de coisas inconstitucional’, exatamente porque os juízes não motivam, eles não fundamentam as suas prisões.’(SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2015).

Esse reconhecimento, no entanto, não atenua a situação de privação de direitos de cerca de 748.009 pessoas privadas de liberdade para 442.349 mil vagas disponíveis segundo o último levantamento nacional de informações penitenciárias, realizado em dezembro de 2019. Dentre estes, 229.823 pessoas sequer foram condenadas (2019).

Assim, o significado das práticas ficou cada vez mais difícil de se associar aos direitos, que se estimularam pelas experiências europeias e norte-americanas; e as práticas da justiça são incapazes de encontrar uma performance orientada para a garantia dos direitos em meio às políticas de encarceramento fomentadas por leis mais repressivas (CAMPOS, 2010; RIBEIRO; MACHADO; SILVA, 2012).

No contexto da crise sanitária, o Conselho Nacional de Justiça em sua recomendação nº 62 orientou os juízes a tomarem providências preventivas para evitar o contágio de Covid-19 no sistema de justiça penal e socioeducativo.

Por sua vez, o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública adotou uma postura crítica a essas medidas, especialmente aquelas de desencarceramento. Ele explicou em entrevista JOTA que: “Temos visto algumas decisões, até de magistrados de primeira instância que querendo resolver alguma questão às vezes geram outra” referindo-se à soltura dos presos (OYAMA, 2020).

Por outro lado, várias associações de operadores do direito e de movimentos sociais assinaram o manifesto de Apoio à Recomendação 62 do CNJ e ao Desencarceramento em que explicam: “O sistema prisional brasileiro e de socioeducação padecem há anos com as péssimas condições estruturais, superlotação, mortes de causas não violentas e proliferação de doenças graves, como tuberculose e sarna, retrato da sua atuação seletiva orientada pelo racismo estrutural, encarcerando majoritariamente pessoas negras e pobres.” (2020).

O levantamento do Infopen (2019) indica que cerca de 250 mil presos têm algum tipo de doença. Enquanto o dilema dos políticos profissionais pendeu entre a proteção à vida e a preservação da economia; os operadores do direito opuseram o poder de punir do estado contra a dignidade dos cidadãos encarcerados”.

Em relação às prisões, o dilema explicita a autonomia dos juízes brasileiros e a sua legitimidade para organizar os serviços de justiça. Por esta razão, as políticas do CNJ são insuficientes para orientar as decisões dos juízes. A gestão da execução da pena privativa de liberdade se produz de maneiras distintas nas unidades prisionais.

Os presídios femininos são afetados particularmente pelo abandono familiar, mas também por muitas violências e um controle disciplinar arbitrário que prolonga o tempo de cumprimento da pena em regime fechado (ANDRADE; GERALDO, 2020). Além disso, não há um consenso sobre as medidas que devem ser adotadas para assegurar a vida das pessoas encarceradas.

Diante das recomendações da Organização Mundial da Saúde, observamos que as condições vividas pela população prisional produzem justamente o oposto. Ainda assim, os estados membros da federação vêm adotado diversas medidas.

No Rio de Janeiro, uma delas foi reunir todos os idosos numa mesma unidade prisional. As visitas dos familiares foram suspensas em razão das políticas de distanciamento social.

Uma decisão da Vara de Execuções Penais concedeu prisão domiciliar aos presos com “saída externa de trabalho extramuros e em regime aberto, e desobrigou de pessoas que cumprem liberdade condicional, prisão albergue domiciliar, sursis e limitação de fim de semana” (CAMPBELL FERREIRA et al., 2020).

O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Estado do Rio de Janeiro (MEPCT/RJ) tem relatado as condições nas quais as pessoas são mantidas em ambientes prisionais, marcados pela insalubridade, superlotação carcerária, insuficiência no fornecimento de produtos de higiene, precariedade no fornecimento de água e no serviço de saúde básica (CAMPBELL FERREIRA et al., 2020).

A crise sanitária desafia os operadores do direito e a autoridade das ordens judiciais para se “criar os pressupostos fáticos necessários ao exercício efetivo dos direitos constitucionalmente assegurados” no sistema prisional, como fez para a saúde.

Enquanto isso, o dilema demonstra como a pedagogia da justiça é explícita. Toleramos a ideia de que os encarcerados são os “nacionais” sem direitos com a privação que vai muito além da liberdade. Afinal, aprendemos que os cidadãos não têm dignidade alguma quando são presos.

 

[*] Os autores agradecem a leitura prévia e as sugestões ao texto de João Vitor Abreu, Juliana Sanches Ramos e Juliana Vinuto.

 


Referências bibliográficas

ANDRADE, B. DE O. A. DE; GERALDO, P. H. B. “Esperteza” e “bom comportamento” na execução penal. Antropolítica Revista Contemporânea de Antropologia, v. 0, n. 48, 2 abr. 2020.

CAMPBELL FERREIRA, A. et al. Relatório Parcial sobre os impactos do COVID-19 no Sistema Prisional do Rio de Janeiro: Informações adicionais até o dia 19 de abril de 2020: Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, 2020.

CAMPOS, M. DA S. Crime e Congresso Nacional no Brasil pós-1988= uma análise da política criminal aprovada de 1989 a 2006. 2010.

Levantamento nacional de informações penitenciárias. . Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, Departamento Penitenciário Nacional, 2019.

Manifesto de Apoio à Recomendação 62 do CNJ e ao Desencarceramento. , 2020. Disponível em: <http://www.abjd.org.br/2020/04/manifesto-apoio-recomendacao-62-do-cnj.html>. Acesso em: 20 abr. 2020

MENDES, G. F. Direitos individuais e suas limitações: Breves reflexões. In: MÁRTIRES COELHO, I.; GONET BRANCO, P. G.; MENDES, G. F. (Eds.). . Hermenêutica consititucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.

OYAMA, É. Covid-19: Ação coercitiva da polícia é “medida em última análise”, diz Moro. JOTA Info, 13 abr. 2020.

RIBEIRO, L. M. L.; MACHADO, I. S.; SILVA, K. A. A Reforma Processual Penal de 2008 e a efetivação dos direitos humanos do acusado. Revista Direito GV, v. 8, n. 2, p. 677–702, 1 jul. 2012.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Inteiro teor do acódão da MEDIDA CAUTELAR NA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 347 DISTRITO FEDERAL, 2015. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10300665>. Acesso em: 20 abr. 2020.

A professora Thaiane Moreira de Oliveira vem, há alguns anos, se dedicando a pesquisar o papel da ciência no combate à desinformação. O que ela não esperava era que um evento tão dramático como a pandemia mundial da Covid-19 fosse promover um cenário tão intenso para sua pesquisa. Nos últimos meses, seu trabalho passou a ocupar a linha de frente entre os estudos que vêm contribuindo para informar a população sobre o coronavírus, combater as fake news na ciência e divulgar fontes confiáveis e legítimas de informação científica.

Doutora em Comunicação Social e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), a pesquisadora lembra que o movimento anticiência não é novo e vem à tona de tempos em tempos, tendo recrudescido nos últimos anos. Ela destaca que em vários países, lideranças antes desprezadas e marginalizadas por suas ideias, hoje estão ocupando cargos no alto escalão dos governos e liderando as tomadas de decisões. Segundo Thaiane, de uns três anos para cá a disputa pela informação se acirrou, e a ciência tem sido o principal alvo dos ataques. Nos últimos meses, justamente num momento em que a população depende de informações confiáveis para se prevenir da Covid-19, o movimento anticiência divulga notícias falsas que pode colocar em risco a saúde da população. “Diversos líderes que negam o conhecimento científico e propagam teorias da conspiração globais estão colaborando para o avanço da insensatez e da desinformação", sublinha.

Seu projeto intitulado As disputas na disseminação de Fake Sciences: Plataforma de Educação e Divulgação para enfrentamento da desinformação científica foi contemplado no edital de Auxílio ao Pesquisador Recém-Contratado – (ARC) da FAPERJ. Ao longo da quarentena imposta a países de todos os continentes, as notícias falsas já provocaram pânico e aglomerações decorrentes de movimentos inesperados de pessoas em busca de formar estoques de produtos de higiene – como álcool em gel –, alimentos e remédios para garantir períodos de isolamento. Ela recorda um dos exemplos mais recentes, envolvendo o medicamento “cloroquina”, recomendado para tratar a Covid-19 sem a devida validação científica, que desapareceu das prateleiras das farmácias e cujos efeitos colaterais vêm fazendo mais vítimas do que recuperados pelo mundo.

A pesquisadora também aponta que em momentos críticos como o que estamos enfrentando com políticas de quarentena, a crise da democracia tem se acentuado. Ressalta que o reconhecimento de autoridades, entre elas a científica, era uma característica de um modelo de democracia vigente. “Hoje, diante de um momento em que os direitos mais básicos estão sendo retirados como medidas eficazes de prevenção de crescimento do contágio e do colapso do sistema de saúde, governos de diferentes partes do mundo estão aproveitando para instaurar regimes autoritários e violar os direitos dos cidadãos”, alerta a cientista. Como exemplo, ela cita episódio ocorrido recentemente, após a demissão do ministro da Justiça e do diretor da Polícia Federal (PF), em que um ministro do Supremo Tribunal Federal determinou a manutenção dos delegados da PF envolvidos no inquérito de apuração das fake news contra integrantes daquela corte e da realização de “atos contra a democracia”.

 

Paula Guatimosim

A pesquisa mostra que, na disputa pela informação, a ciência
tem sido o principal alvo dos ataques 
(Imagem: Divulgação)

 

Quinta, 30 Abril 2020 16:20

Direitos humanos e covid-19

Nessa quinta-feira, 30 de abril, às 18h a pesquisadora do INCT/INEAC, Jacqueline Sinhoretto, Professora da UFSCAR e coordenadora do GEVAC, Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos, participará, pelas redes sociais, do programa PSOL COTIA DEBATE , desenvolvendo o tema:  Direitos humanos e covid-19. A transmissão acontecerá ao vivo pelo facebook : https://www.facebook.com/psoldecotia .
 
 
 
 
 
 

A CIDADANIA VERTICAL NO BRASIL E O COVID-19, esse é o tema do programa PARA SUA CIÊNCIA apresentado pela pesquisadora Izabel Nuñez (INCT/INEAC) e que será transmitido ao vivo pelas redes sociais, nessa quinta-feira, 30 de abril de 2020, às 21h pelo Instagram (@inctineac). O programa traz como convidado especial o sociólogo Marcelo da Silveira Campos, que é  Pós-Doutorando e Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-InEAC/UFF/FAPERJ) e  doutor em Sociologia (2015) pela USP.

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