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O site do INCT INEAC reproduz aqui o artigo "Igualdade ou Liberdade? O Direito e seus limites em perspectiva comparada", do professor Marco Aurélio Gonçalves Ferreira, pesquisador vinculado ao Ineac, publicado no BLOG CIÊNCIA E MATEMÁTICA do jornal O Globo.
Igualdade ou Liberdade? O Direito e seus limites em perspectiva comparada.
Marco Aurélio Gonçalves Ferreira
A retirada de diversas contas nas redes sociais da internet por ordem do poder judiciário, bem como a muito criticada como inconstitucional instauração de um inquérito pelo próprio no STF, para apurar crimes e ele mesmo ao final julgar, têm acendido o debate em torno de duas questões que poucos a percebem como imbricadas, que são os limites de aplicação do direito pelo Poder Judiciário e dos limites da liberdade.
Nas sociedades capitalistas o pensamento contratualista influenciou o ideário político liberal democrático, que associa diretamente as noções de direito aos elementos liberdade e igualdade. Para os contratualistas o Estado nasce com a finalidade, dentre outras, de limitar a liberdade de seus cidadãos. Assim Montesquieu construiu máxima de que a “liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem”.
Nos atuais sistemas jurídicos democráticos a liberdade se constitui não somente a partir do espaço de ação do cidadão, mas principalmente a partir dos limites impostos pelo direito. A liberdade no Estado somente se concretiza através de suas delimitações, ou seja, a liberdade só existe enquanto delimitada pelo direito.
Os parâmetros delimitadores da liberdade irão acontecer de forma distintas nas tradições jurídicas. Uma das características da liberdade nos países capitalistas liberais, como os EUA, é a sua limitação pelas leis e principalmente pelos precedentes judiciais. Nos EUA duas expressões referem-se aos direitos da liberdade e igualdade: as chamadas Civil Liberties, que são compreendidas como limitação da intervenção do Estado na esfera privada do cidadão. A perspectiva da igualdade refere-se aos Civil Rights que são compreendidos como uma ação positiva do Estado para assegurar o tratamento igualitários aos cidadãos.
Assim, o sujeito tem o direito a não ter a sua liberdade ameaçada pelo Estado, bem como o direito de buscar a garantia da igualdade no acesso às chamadas liberdades públicas. Na tradição anglo americana os bill of rights irão compreender um conjunto de direitos de proteção do cidadão contra o poder governamental. Nesse conjunto encontra-se na 14a emenda o direito à privacidade, que por extensão é também compreendido como o direito de ser deixado em paz ou right to be let alone e o direito de autonomia para fazer as escolhas, the right to choose. Em síntese, o direito norte-americano vai determinar limitações à intervenção do Estado na liberdade individual, e na dimensão particular, as limitações à liberdade se darão estabelecendo um número de escolhas dentre opções finitas, como na justiça criminal, na qual o cidadão pode escolher aceitar a acusação, ficar em silêncio, negociar sua culpa, ou se declarar inocente. Nessas e em outras situações os limites de sua liberdade são previamente dados pelas normas, que são constantemente reforçados pelo Poder Judiciário, pois cabe a ele o papel de assegurar as liberdades.
O Brasil declara seu modelo jurídico como de Civil Law, o que pressupõe que os limites legais da liberdade estejam previamente codificados ou delimitados em lei. Ocorre que, para a literatura jurídica brasileira, todas as normas necessitam sempre de um intérprete mediador e, portanto, a literalidade da lei não possui eficácia por si só; o que corrobora as pesquisas empíricas realizadas nas teses de doutorado em Direito de Regina Lúcia e Cristina Seta, que demonstram que a norma em si não possui conteúdo, mas somente quando há a interpretação circunstancial da autoridade. Isso possibilita inclusive, como demonstra a tese de doutorado em Direito de Daniel Navarro, ao judiciário contrariar a própria literalidade do texto da lei, como manifestou o Ministro Luiz Fux no debate sobre interpretação antagônica à literalidade do artigo 489 do CPC.
Na esteira do direito brasileiro, assim como a lei, o precedente enquanto norma, também está submetido à reinterpretação e aplicação dos magistrados que, com seu “livre convencimento”, podem não o cumprir, ou determinar uma nova interpretação. A hierarquia do poder judiciário e a sobreposição de “livres convencimentos” dos diferentes graus da magistratura sobre os fatos e a norma, desde a primeira instância até as cortes superiores, demostram uma ausência de consenso e consequente instabilidade da validade e eficácia das leis e normas jurisprudenciais, dificultando a existência da segurança jurídica fundamental para o funcionamento da sociedade liberal e de mercado. Tudo isso resulta na incerteza da dimensão e extensão da liberdade.
A ausência de uma estabilidade na compreensão e aplicação do sentido da norma impossibilita que em algum momento a cultura jurídica coincida com a cultura cívica, pois que a intepretação e a compreensão dos institutos jurídicos são instáveis e, portanto, imprevisíveis. Desta forma a sociedade não sabe como previamente se comportar diante da norma e, como consequência, tem-se uma intensa intervenção judiciário nas relações pessoais e institucionais.
Nas práticas judiciárias do Brasil, a norma em si não diz nada, ou seja, não possui força em sua literalidade. Portanto, os limites normativos que delineiam o âmbito da liberdade não se encontram previamente determinados nem na lei nem na jurisprudência dos tribunais, mas de forma concreta somente nas decisões circunstanciais da autoridade. Da mesma forma, não estão claros os limites da intervenção do Estado, tampouco as opções para o exercício da liberdade de escolha nas relações jurídicas processuais.
A ausência de parâmetros precisos e determinantes do sentido e interpretação da norma pode levar à ideia imaginária de que no Brasil a liberdade é ilimitada, ou seja, liberdade é fazer o que se quer. No entanto, diferentemente de outras tradições jurídicas, no Brasil a norma não é cumprida em razão de sua existência, pois que a cada passo que o cidadão der é necessário olhar para a autoridade e buscar receber a sua anuência ou reprovação. Ou seja, no Brasil o direito não está posto. Embora a distribuição do direito à liberdade ocorra de forma desigual, como também são desigualmente distribuídos os demais direitos no Brasil, a “liberdade à brasileira” não é uma liberdade previamente estabelecida e, portanto, previsível a todos, mas sim circunstanciada.
Em consequência, no Brasil a liberdade é compreendida negativamente, como limitadora da autoridade, o que vai se externalizar, por exemplo, na ausência de protocolos na ação policial e na instabilidade das decisões judiciais. A liberdade da autoridade prevalece sobre as liberdades individuais, no atuar dos agentes de segurança pública, no atuar dos magistrados livres da literalidade da lei, livres na interpretação da jurisprudência e livres na interpretação dos fatos. Ao passo que em outros sistemas jurídicos, aqui mencionados, a existência da norma é compreendida como a real afirmação das liberdades.
Um olhar a partir da lente de outras sociedades capitalistas, sobre as práticas judiciárias brasileiras, resultaria necessariamente na percepção paradoxal de que aqui se iguala desigualando e a liberdade é sem escolhas. Sob essa ótica não seria estranho a afirmação de que estamos diante de um “sistema” que nega o próprio direito.
Marco Aurélio Gonçalves Ferreira é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br).
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