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Segunda, 08 Junho 2020 23:47

Exclusão Discursiva e Sujeição Civil em Tempos de Pandemia no Brasil

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Reproduzimos aqui o artigo publicado no Blog Ciência e Matemática, Exclusão Discursiva e Sujeição Civil em Tempos de Pandemia no Brasil,  escrito pelo antropólogo Luís Roberto Cardoso de Oliveira, vice-coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br)

Confira o artigo abaixo ou acesse o link: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/exclusao-discursiva-e-sujeicao-civil-em-tempos-de-pandemia-no-brasil.html

 

Exclusão Discursiva e Sujeição Civil em Tempos de Pandemia no Brasil

Luís Roberto Cardoso de Oliveira, vice-coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br)

 

Como tenho procurado argumentar, a exclusão discursiva é marcada por dois aspectos principais: (1) por um lado, marca a dificuldade do Estado moderno em ouvir adequadamente seus cidadãos, que começam a demandar melhor audição e inclusão cívica; e, por outro, (2) em Estados como o Brasil a exclusão é agravada pela percepção de que segmentos sociais menos favorecidos não mereceriam ser ouvidos por não ter o que dizer, em vista do atribuído desconhecimento de seus direitos, que os colocaria na condição de não saber o que seria bom para eles, devendo abrir mão do direito de tomar posição em favor da Procuradoria ou de outras instituições do Estado que, assim, não só mantém a tutela dos direitos, mas assumiriam a tutela dessas pessoas.

Se o primeiro aspecto constitui um problema contemporâneo nas democracias representativas do ocidente, que não têm encontrado instrumentos para ouvir e processar adequadamente as demandas de seus cidadãos (o Podemos na Espanha ou o Occupy Wall Street nos EUA, representariam bem a insatisfação com esta situação de exclusão), o segundo aspecto só aparece onde o Estado permite distinguir direitos de acordo com o status e a condição social no plano da cidadania, ou no interior do mundo cívico, como quer que este seja definido. Aliás, esta exclusão não ocorre apenas na relação com as instituições do Estado, mas também em interações com outros cidadãos no mundo cívico mais amplo, sempre que estas indicam a condição de inferioridade da pessoa que estaria sendo excluída.

A sujeição civil seria uma consequência do segundo aspecto, quando a falta de mérito atribuída aos excluídos, associada à negação da substância moral da dignidade destes atores, seria internalizada por eles, caracterizando uma deformação importante na sua identidade moral. Assim como a sujeição criminal definida por Michel Misse implica a internalização da identidade de criminoso, como uma condição intrínseca à pessoa, a sujeição civil implicaria a assunção da condição de hipossuficiente não apenas como alguém que não tem recursos para levar suas demandas adiante sem apoio do Estado (quando necessita de um defensor público, por exemplo), mas como aquele que devido à atribuída ignorância não tem condições de opinar sobre o que seria melhor para ele ou ela.

Esta modalidade de exclusão, que em sua expressão mais radical caracterizaria uma condição de sujeição civil, é um forte símbolo da desigualdade entre nós. A propósito, se a questão da desigualdade social tem sido tema de reflexão constante para as ciências sociais no Brasil, o conjunto de pesquisas realizadas no âmbito do INCT-InEAC tem se singularizado pelo foco na desigualdade de tratamento que, como sugere Honneth, ameaça inapelavelmente os esforços de legitimação da cidadania e da democracia. Assim, os exemplos de situações em que esta desigualdade se realiza são inúmeros, e ocorrem nos mais diversos contextos sociais, seja em agências do Estado ou nas interações cotidianas entre atores no espaço público. O próprio ordenamento jurídico prevê tratamento diferenciado ou desigual numa série de circunstâncias, como no caso do instituto da prisão especial que beneficia portadores de diploma de curso superior.

O tratamento desigual e a consequente desigualação na alocação de direitos tem sido tratado como produto da articulação entre visões igualitárias e hierárquicas na sociedade brasileira, bem ilustrada no hoje clássico ensaio de Roberto DaMatta sobre a famosa locução “Você Sabe com Quem Está Falando?”. Essa articulação é bem captada e aprofundada nas instigantes contribuições de Roberto Kant de Lima através dos modelos jurídicos da pirâmide e do paralelepípedo representando, respectivamente, sociedades em que prevalece uma visão hierárquica (como no Brasil) e aquelas com visão igualitária sobre a posição dos atores no mundo social (como nos EUA). Enquanto no primeiro modelo a sociedade é dividida em segmentos desiguais e é muito seletivo (e excludente) na definição dos que podem chegar ao topo ou às posições de maior prestígio na organização social, o modelo do paralelepípedo enfatiza o ideal das oportunidades iguais para que, em princípio, todos possam almejar chegar ao topo, dependendo de suas escolhas e desempenho.  

Do meu ponto de vista, a articulação entre os modelos da pirâmide e do paralelepípedo no caso brasileiro reflete a existência de uma tensão entre duas concepções de igualdade jurídica: (1) a que enfatiza a igualdade de direitos entre todos os cidadãos, expressa na ideia de isonomia jurídica, dominante em nossa Constituição; e, (2) a que demanda a alocação diferencial ou desigual de direitos para produzir a igualdade no plano da justiça, e que seria bem expressa na frase de Rui Barbosa segundo a qual: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam”. Qualquer que seja a melhor interpretação dessa frase, o fato é que ela tem sido acionada por autoridades de todos os matizes para desigualar direitos.

Além disso, me parece que tratar a articulação entre os dois modelos como uma tensão entre duas concepções de igualdade teria ao menos duas vantagens: (a) chamar atenção para o fato de que a concepção inspirada na frase de Rui Barbosa, que permite alocar direitos de acordo com o status ou a condição social do cidadão, é percebida como uma orientação igualitária por aqueles que a acionam; e (b) relativiza a distinção entre as duas concepções (ou entre os dois modelos), fazendo com que os mesmos atores (ou as mesmas autoridades) possam acionar intercaladamente uma ou outra concepção sem que isso provoque a percepção de alteração entre uma orientação igualitária e outra hierárquica no que concerne ao acesso a direitos. Essa formulação enfatizando a tensão entre duas concepções de igualdade também permite entender melhor a confusão entre as noções de direitos e privilégios no contexto brasileiro, assim como a distância das concepções de igualdade cidadã vigentes no ocidente cuja variação prevê em todos os casos a articulação entre igualdade de direitos e igualdade de status, não permitindo, portanto a alocação de direitos conforme o status ou condição social do cidadão.

Na atual crise sanitária, por exemplo, a quase totalidade das medidas ou políticas implementadas pelos diversos níveis de governo mostram muito pouca sensibilidade para a situação e para as demandas da população de baixa renda, especialmente para aqueles segmentos que moram em favelas ou nas chamadas comunidades. Vários observadores têm chamado atenção para a impossibilidade de obedecer às orientações quanto ao isolamento social quando se compartilha moradias pequenas com grande número de pessoas. Sem deixar de mencionar que a maior parte dessas pessoas têm que sair de casa para trabalhar (utilizando transporte público frequentemente lotado), visto que exercem atividades incompatíveis com o Home-Office.

A ausência de políticas alternativas que procurem viabilizar um atendimento preventivo (e.g., atenção médica imediata assim que aparecessem os primeiros sintomas) para estas pessoas que estão mais expostas à contaminação também impressiona. Assim como a demora em liberar o auxílio de 600 reais alocado por lei a esses segmentos, e as dificuldades de acesso aos mesmos ao terem que submeter-se a enormes aglomerações em filas da Caixa Econômica Federal, constitui um agravante significativo à falta de preocupação das políticas vigentes com as demandas desta população. Da mesma forma, as ações de distribuição de cestas básicas com alimentos e material para higienização são produto de iniciativas da sociedade civil, em geral capitaneadas por moradores das próprias comunidades. Apesar das recorrentes reclamações vocalizadas por esta população desassistida desde o início das medidas de isolamento até agora nada foi feito.

Neste quadro a situação mais dramática parece ser mesmo a da população carcerária. A superlotação de nossos presídios assim como as condições sub humanas a que são submetidas as pessoas privadas de liberdade no Brasil são bem conhecidas na literatura referente às pesquisas sobre o tema, mas seu sofrimento e a falta de atenção do Estado chegou a níveis absolutamente alarmantes com a crise do Covid-19. A resistência do Estado em atender a recomendação do CNJ no sentido de colocar em prisão domiciliar os internos em prisão provisória, que ainda aguardam julgamento, somada à demora em identificar e isolar os presos contaminados com Covid-19 sugere um prognóstico com altos níveis de contaminação e letalidade. O ponto aqui, de todo modo, é a radicalidade da exclusão discursiva desta população, cujas demandas não encontram ouvidos. Composta em sua maioria por homens negros, jovens e pobres, as condições de vida desta população lembram nosso passado escravocrata em que os escravos não eram considerados seres humanos, mas eram definidos juridicamente como semoventes, ou seja, animais domésticos ou domesticados. Os semoventes de ontem constituem os sujeitos descartáveis de hoje. A impossibilidade de se fazer ouvir faz com que a sujeição criminal se some à uma modalidade radical de sujeição civil.

A relação entre exclusão discursiva e sujeição civil no exercício da cidadania sugere que parcela significativa dos segmentos menos favorecidos da população brasileira poderia ser alocada em pelo menos uma dentre quatro situações: (1) o excluído não aceita a condição e faz questão de ser ouvido; (2) o excluído além de demandar audição demanda que seu mérito, valor, ou dignidade seja reconhecido; (3) o excluído não se conforma com sua condição, mas se sente impotente para contestá-la; (4) ou ainda, internaliza a condição de duplamente hipossuficiente e assume a sujeição civil. Este último caso, significa a assunção da condição de inferioridade no plano da cidadania, com todas as implicações e sofrimentos daí decorrentes, numa sociedade em que tal condição coloca o ator numa situação de quase sub-humanidade.

 

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