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O site do INCT INEAC reproduz aqui o artigo dos antropólogos Roberto Kant de Lima e Barbara Lupetti Baptista, intitulado O que podemos aprender com o garantismo seletivo do STF?, publicado no Blog Ciência e Matemática do O GLOBO na segunda-feira 28 de outubro de 2019. https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/o-que-podemos-aprender-com-o-garantismo-seletivo-do-stf.html
Muito além da Lava (Vaza) - Jato: o que podemos aprender com o garantismo seletivo do STF na análise do Habeas Corpus 166373?
Roberto Kant de Lima e Bárbara Lupetti Baptista, respectivamente coordenador e pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (UFF)
O HC é uma ação constitucional, que visa garantir a liberdade de ir e vir dos cidadãos. Está previsto no art. 5º, LXVIII, da Constituição. E no art. 647 do Código de Processo Penal.
O caso referido no título trata do direito dos delatados de se manifestarem, em alegações finais, depois dos delatores. O STF, por maioria, anulou a sentença de um ex-gerente da Petrobras, condenado a 10 anos de prisão, tendo em vista que, no seu caso, a ordem de apresentação das alegações finais na ação penal deveria ter sido sucessiva entre os seus delatores e ele, delatado, e não simultânea, como ocorreu.
Em suma, o STF entendeu que o delator é interessado na condenação dos delatados. Logo, deve ser ouvido primeiro, garantindo-se a ampla defesa do delatado, através do direito de falar depois de seu acusador.
Trata-se de postura entendida como garantista e as palavras do Ministro Alexandre de Moraes traduzem esse espírito: “O devido processo legal não é firula jurídica. Não atrapalha o combate à corrupção. Nada custa ao Estado respeitar o devido processo legal, o contraditório e ampla defesa. Nenhum corrupto deixará de ser condenado porque o Estado respeitou o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório”.
Trata-se de garantir o dogma do processo acusatório, permitindo ao acusado, ampla defesa. Bonito e republicano, em teoria. Pouco usado, na prática.
É certo que a decisão está orientada por um viés democrático. O problema está na seletividade de seu uso. Esse garantismo, certamente, não será disponibilizado para todos. Os encarcerados comuns, sem acesso a distintos advogados que garantam seus direitos nos tribunais superiores dificilmente serão atingidos pela decisão.
Aliás, eles nem chegariam lá, no STF, o que já é, em si, condicionante para que a visão garantista não prevaleça em um sistema processual penal de forte inclinação inquisitorial, como é o nosso. Por outro lado, significa também dizer que nem mesmo o garantismo do STF garante a igualdade e a uniformidade de tratamento para todos, porque ele também navega na lógica da desigualdade jurídica.
De todo modo, parece conveniente essa oportunidade de explicitar para todos o que sempre foi óbvio apenas para quem pesquisa esse sistema: mostrar que a inquisitorialidade da justiça criminal [que contraria o direito constitucional à presunção da inocência], na prática, sempre teve alvo certo nos segmentos menos favorecidos da população, sendo que, agora, tem afetado a todos, indistintamente. E isso parecer ser uma ruptura incômoda.
Mais curioso do que isso é, também, explicitar que só assim, só navegando nessa chave, do inquisitório, na presunção da culpa, é que o sistema de justiça consegue capturar e sujeitar as pessoas de substância moral digna privilegiada, fato que também nos aponta para o quanto temos a caminhar para chegar à República. Ou seja, a igualdade jurídica à brasileira só é possível na punição, nunca na afirmação universal de direitos comuns a todos, nem no tratamento judicial uniforme aos que a ele são submetidos. O direito só iguala quando submete.
Este texto é fruto, portanto, de uma provocação; e revelador de nosso espanto diante do espanto de tantos brasileiros que parecem ver, abismados, pela primeira vez, práticas que nos parecem tão corriqueiras e tão características e, ao mesmo tempo, tão arcaicas, de nosso sistema de justiça.
Temos ficado perplexos com as manifestações de estupefação, demonstradas, inclusive, por pesquisadores, quanto, por exemplo, ao comportamento do ex-Juiz Sergio Moro no caso do ex-Presidente Lula, ou mesmo diante das viradas interpretativas na jurisprudência dos Tribunais, das mudanças inexplicáveis de posicionamentos dos julgadores, das inversões das pautas de julgamentos ou mesmo dos repentinos pedidos de vista, que interrompem as sessões e paralisam os julgamentos relacionados aos casos da Operação Lava-jato, como se essa imprevisibilidade, essa insegurança e essa desigualdade no tratamento dos processos jamais tivessem acontecido antes; como se fossem excepcionais.
Ficamos surpresos com as declarações de colegas do direito, manifestando comoção ao declinar “a morte do sistema acusatório”. Como se, em todo esse período de República, alguma vez, salvo as exceções que desigualam, o nosso sistema de justiça tenha sido, de fato, na prática, empiricamente, acusatório.
O nosso processo penal tem inconstitucionalidades há muito tempo, desde sua origem. O curioso é que, só agora, porque os atingidos por esse sistema são pessoas “distintas”, essas inconstitucionalidades vêm sendo questionadas.
É verdade que, na história do nosso país, é a primeira vez que essas práticas judiciárias e suas nefastas consequências têm sido reveladas de forma tão explícita, em horário comercial, assim como é a primeira vez que, por causa delas, um forte candidato à Presidência da República tenha sido preso às vésperas da eleição, assim como é a primeira vez que práticas como essa, que, inclusive, escancaram a parcialidade e a cumplicidade entre Juiz e Ministério Público, estejam a serviço de encaminhar para a prisão pessoas que não estavam acostumadas a se submeterem ao sistema de justiça. E, compreende-se: isso pode causar surpresa.
Mas, daí a tratar esses fatos como extraordinários beira a uma ingenuidade que não podemos admitir. Basta direcionarmos o olhar para o sistema carcerário, onde vamos encontrar milhares de presos em flagrante, aguardando decisões definitivas, ou condenados por sentenças proferidas por juízes comprometidos por moralidades e intenções particulares que interferiram na jurisdição prestada; assim como vamos encontrar pessoas que, em situações iguais, receberam tratamento desigualado, tendo sido submetidas aos mesmos consórcios acusatórios que vimos ocorrer no desenrolar da Vaza-Jato.
Isso não é novidade nem é fruto de uma ruptura. Ao contrário, isso é a mais pura explicitação do nosso direito e do nosso Judiciário, fazendo as regras acontecerem, tal como ele é, e tal como sempre foi.
Então, por que tanta estupefação? A nossa pista é de que isso tem a ver com o fato de que todos – inclusive os de dentro do sistema – naturalizaram a forma de navegação social desenhada por Roberto DaMatta, há décadas, quando retratou os dramas da cidadania brasileira, que explicitam desigualdades e privilégios na expressão arrogante do “Você Sabe Com Quem está Falando”, no acesso desigual a direitos, distinguindo “indivíduos” e “pessoas” em escalas de hierarquia conforme a sua substância moral, e que assim, reverberam a lógica ensinada por Rui Barbosa, de que “a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam.”.
Nessa linha, é por causa da lógica da produção da desigualdade - tão internalizada em nosso sistema - que o próprio julgamento do HC não teve como terminar, tendo sido adiado, pois o STF se vê, agora, diante de um novo-velho problema, que reforça tudo o que foi dito aqui: afinal, como “modular” os efeitos temporais de sua decisão garantista? Em português claro: se ela atingir a todos que estão na mesma situação processual, estará conferindo tratamento uniforme e rompendo com a lógica da atribuição de quinhões desiguais aos jurisdicionados. Daí, a necessidade de se determinar o alcance, ou os limites, de sua inovadora e garantista decisão. A ampla defesa consagrada no HC 166373 será estendida a todos os cidadãos brasileiros submetidos ao processo penal? Lógico que não. A proposta apresentada pelo Presidente do STF, Ministro Dias Toffoli, sofistica o que é pura desigualdade jurídica. Eis a fórmula restritiva: (1) a decisão se aplicará apenas àqueles que reclamaram diretamente da ordem de apresentação das alegações finais, em seu processo de origem; (2) e/ou a todos que comprovarem um dano concreto causado pela apresentação simultânea das alegações finais. De novo, em vez de reverenciar o acesso de todos à ampla defesa, o STF trabalha para restringi-lo e para definir quem serão os privilegiados da vez, no acesso ao direito fundamental.
Entre acessos e barreiras, o que o STF dá com uma mão, ele tira com a outra.
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EQUIPE DE COMUNICAÇÃO DO INEAC
Jornalista Claudio Salles
Bolsista Bruna Alvarenga
ineacmidia@gmail.com