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Sexta, 17 Fevereiro 2023 22:50

"Democracia e segurança pública: Segurança deixa de ser um direito quando é tratada como um assunto corporativo para a tutela"

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Publicado no site https://www.jota.info/ , Disponibilizamos aqui  o artigo "Democracia e segurança pública: Segurança deixa de ser um direito quando é tratada como um assunto corporativo para a tutela",  escrito pelos pesquisadores Pedro Heitor Barros Geraldo (Professor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC-UFF), do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito) e Leticia Fonseca Paiva Delgado (Mestre em ciências sociais (UFJF) e doutora em sociologia e direito (UFF). Atualmente é secretária de Segurança Urbana e Cidadania de Juiz de Fora -MG)

Para ler confira abaixo ou acesse o link: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/democracia-e-seguranca-publica-17022023

 

JUDICIÁRIO E SOCIEDADE

Democracia e segurança pública

Segurança deixa de ser um direito quando é tratada como um assunto corporativo para a tutela

 

LETÍCIA FONSECA PAIVA DELGADO
E
PEDRO HEITOR BARROS GERALDO

 

2023 traz consigo a expectativa de um trabalho incansável e comprometido do governo federal para construir e implementar agendas de políticas públicas capazes de garantir a plenitude e a concretude dos direitos sociais, a promoção da cidadania e do bem-estar social. Na segurança pública, esta expectativa vem ladeada de uma desconfiança sobre a existência de condições políticas, sociais e institucionais para a construção de uma agenda que se alinhe com os valores republicanos e democráticos.

Essa desconfiança não é despropositada e se justifica pelo fato de que embora a Constituição Federal de 1988 tenha avançado, e muito, na democratização do acesso a alguns direitos sociais, como saúde, assistência e educação, o debate na segurança pública pouco avançou e demonstrou uma baixíssima capacidade de romper com a vocação colonial, escravocrata, inquisitória e tutelar das instituições de segurança pública e justiça fundadas em concepções dogmático-repressivas amplamente difundidas nas faculdades de direito e a tradição militarista orientada para a eliminação do inimigo presentes nas formações das polícias militares.

No Brasil, historicamente, a segurança pública e seu aparato institucional foi orientada para a lógica do controle social e do uso da violência como método de ação para gestão dos inimigos, dos indesejáveis e dos marginalizados. A primazia do discurso repressivo-punitivo acabou por delegar às corporações policiais o monopólio sobre a legitimidade de dizer segurança pública no país, se demonstrou, sobretudo, incapaz de garantir a participação social no debate.


A Constituição Federal de 1988 foi também aplaudida pela institucionalização de espaços para o desenvolvimento de práticas capazes de transformar a participação em um valor da política brasileira e, por consequência, consagrar o direito da sociedade de articular com os órgãos do governo a formulação, implementação e acompanhamento das políticas públicas. Assim, a União, os estados e os municípios deveriam fomentar, institucionalizar e garantir a existência de espaços formais de participação social, com destaque para os conselhos de direitos e as conferências. Neste aspecto, comparativamente, temos o Sistema Único de Saúde (SUS), embora mais consolidado, quando do advento da Constituição Federal, o que acelerou os processos de universalização, descentralização, articulação e organização de uma estrutura participativa nos entes federados. Por esta razão, a sociedade desenvolveu uma cultura da participação nesta área.

No entanto, a Constituição não estabeleceu dispositivos e espaços de participação em diversos campos das políticas públicas. Os constituintes talharam a redação do artigo 144 da Constituição Federal sem prever a participação da sociedade como uma diretriz para orientar essas políticas.

A ausência de participação social na construção e fiscalização das políticas públicas de segurança tem, ainda, um efeito perverso: o de não reconhecer a segurança pública como um direito fundamental. Isto impede que os grupos vulnerabilizados, mais atingidos pelas variadas formas de violência, intervenham de forma deliberativa na construção das políticas de segurança. Desta forma, o direito à segurança pública se distribui desigualmente em nossa sociedade e se mostra incapaz de enfrentar de modo articulado a violência institucional em sua vocação tutelar.

Como exemplo, ao longo de 34 anos de vigência da Constituição Federal, foram realizadas 16 conferências nacionais na área da saúde. Na segurança pública, por sua vez, a primeira, e única, ocorreu no ano de 2009, durante a segunda gestão do presidente Lula. Em relação à existência de conselhos municipais, pesquisa feita pelo IBGE referente ao ano de 2018 aponta que, enquanto 99,9% dos municípios brasileiros possuíam conselho municipal de saúde, a existência de órgão colegiado na área de segurança não superou 15% dos municípios brasileiros.

Os sistemas de políticas públicas, como o SUS e o SUAS, são estruturas de governança capazes de estimular a cooperação interfederativa, a participação da sociedade civil na construção e controle das políticas, além de serem instrumentos para a garantia de que a descentralização – um dos principais motes da organização política e administrativa do país – alcance os municípios. Mas a segurança deixa de ser um direito quando é tratada como um assunto corporativo para a tutela.

Os municípios são atores centrais no processo de democratização da segurança pública. Pois enquanto um direito, a participação do poder local é valorizada ao mesmo tempo em que se reconhece o território como uma variável importante a ser considerada na implementação de políticas públicas de segurança. Sendo a cidade o lugar de convivência e experiência dos problemas relacionados à criminalidade, o município deve ser percebido como um espaço legítimo de definição de estratégias na área, podendo abrir espaços para a introdução de novos conceitos, novas práticas, construídas com maior participação dos interessados. É um processo cujo pressuposto básico é a interação do poder público com a sociedade e o reconhecimento de que, embora as normas sejam federais e as polícias, regra geral, estaduais, os problemas relacionados à violência têm feição local.

A experiência da construção da agenda de segurança pública em Juiz de Fora é exemplar em relação à mobilização de seus cidadãos na construção de uma agenda pública por meio da Conferência Municipal de Segurança Pública, institucionalização do seu Conselho, processos que culminaram na promulgação de uma lei municipal que instituiu o Plano Municipal de Segurança e no reforço da Secretaria de Segurança Urbana e Cidadania por todos esses instrumentos jurídicos-institucionais de maior legitimidade para a ação. O papel de políticos profissionais conscientes desta agenda se torna um instrumento estratégico e coletivamente relevante para organizar o campo de discussões que compõe a segurança pública (DELGADO, 2021).

Conhecer experiências como essas permite desenvolver um conhecimento sobre a participação, mas também para a participação dos cidadãos. A segurança pública é um campo com muitos saberes em competição, mas também com muita pesquisa científica sobre a segurança pública no país no campo das ciências sociais fomentado por instituições de ciência, tecnologia e inovação; e desenvolvido em cursos multidisciplinares como o Bacharelado e o Tecnólogo em Segurança Pública e Social da Universidade Federal Fluminense (KANT DE LIMA; GERALDO, 2022) e também fomentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública por meio de seus anuários e pesquisas, por exemplo.

Construir uma agenda de segurança pública substancialmente republicana e democrática é o maior desafio. E não há como fazê-lo sem valorizar o ponto de vista da sociedade sobre o papel e os limites de atuação das instituições de segurança pública. No entanto, em um campo tradicionalmente avesso à participação social é urgente compreendermos que o cidadão é o verdadeiro destinatário do direito à segurança e, portanto, não deve ser visto como causa do problema e sim como parte integrante da solução. Democratizar é urgente, principalmente a segurança pública.

DELGADO, L. F. P. Formação da agenda municipal em Segurança Pública: A emergência das políticas e dos dispositivos de Segurança Pública em Juiz de Fora. Tese de Doutorado – Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2021.

KANT DE LIMA, R.; GERALDO, P. H. B. Conflitos em formação: a experiência da convivência civil-militar no Curso de Tecnólogo em Segurança Pública e Social a distância da Universidade Federal Fluminense. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 16, n. 1, p. 30–49, 27 jan. 2022.

LETÍCIA FONSECA PAIVA DELGADO – Mestre em ciências sociais (UFJF) e doutora em sociologia e direito (UFF). Atualmente é secretária de Segurança Urbana e Cidadania de Juiz de Fora (MG)
PEDRO HEITOR BARROS GERALDO – Professor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (InEAC-UFF), do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD), bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia do Direito.

 

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Claúdio Salles

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