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Quarta, 21 Dezembro 2022 11:09

Entrevista de Roberto Kant para o Revista Evidências

Escrito por

O site do INCT INEAC disponibiliza aqui a entrevista do antropólogo Roberto Kant de Lima para  Revista Evidência, nº 25.

Evidência é uma publicação digital organizada por profissionais ligados às ciências forenses. 

 

 Evidência entrevistou o Dr. Roberto Kant de Lima, Coordenador do INCT-InEAC - Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (www.ineac.uff.br). Confira a seguir.

 

O Senhor entende como sendo importante a cooperação científica entre as universidades e os Laboratórios Forenses? Quais as vantagens para ambas as instituições?

Extremamente importante. Tanto para a criação e desenvolvimento de novas técnicas e tecnologias cientificas stricto sensu, como para a criação, desenvolvimento e reprodução de tecnologias sociais. Estas últimas, destinadas principalmente a, através de etnografias, acompanhar a produção, circulação e consumo dos trabalhos dos peritos. Ambas as colaborações visam não só estreitar os laços entre a pesquisa de excelência da universidade e as instituições governamentais, mas adicionar melhor qualidade e quantidade de serviços públicos prestados à sociedade, tanto pela perícia, como pela universidade.

Recentemente o senhor teve um projeto aprovado em edital da FAPERJ sobre ciências forenses. Poderia falar um pouco sobre esse projeto e sobre sua relevância?

Sim, intitula-se “Produção, circulação, uso e consumo do laudo pericial no fluxo criminal: tecnologias, impactos e inovação da perícia técnico-científica na construção da verdade jurídica em casos de letalidade violenta” e quando mencionei acima a questão das tecnologias sociais empregadas na produção, circulação e consumo dos serviços periciais, me referia exatamente a alguns dos produtos previstos nele. Note-se que não é um projeto “sobre “ a perícia, mas “com” a perícia. Neste sendo o esforço é conjunto na produção de resultados. A metodologia é fundamentalmente etnográfica, em que os observadores e seus interlocutores interagem no campo do trabalho pericial, partilhando de suas experiências. Mas também estamos interessados no exame dos laudos e nos regramentos de várias instituições sobre as condições e critérios de sua produção. Também faz parte da pesquisa identificar, analisar e interpretar a circulação desses laudos: para onde vão, quem os recebe, quais são as reações e representações que os outros agentes do sistema de justiça têm sobre eles. E, finalmente, como são consumidos pelos magistrados, que são, em nosso sistema, os destinatários finais de todos os atos e peças processuais, visando sua persuasão. Resumidamente, trata-se de acompanhar a produção, circulação e consumo dos laudos periciais em casos de morte, especialmente as intencionais, e classificadas como homicídio doloso.

O senhor é um reconhecido pesquisador na área de Antropologia “Social”. Tradicionalmente, os Institutos médico legais apresentam setores dedicados à Antropologia “Biológica” que tem aplicações diretas em casos investigações de homicídios e desaparecimentos forçados, em geral. Como a Antropologia “social” pode contribuir para a ciência forense e, em especial, para a investigação de crimes?

Como eu disse acima, há vários exemplos dessas contribuições. Eu mesmo, tornei-me conhecido porque fiz uma etnografia do sistema de justiça criminal da cidade do Rio de Janeiro na década de 80, tendo parte deste material se tornado minha tese de doutorado no exterior, que foi publicada em forma de livro, do qual recentemente lancei a 3ª edição (2019). Posteriormente, ve a oportunidade de realizar semelhante trabalho, junto à polícia e ao sistema judiciário dos EUA, em Birmingham, Alabama e em San Francisco, California. A metodologia da Antropologia contemporânea não é a comparação por semelhança, como é a do Direito Comparado, e, mesmo da Ciência Política e da Sociologia em sua maioria. Comparamos diferentes sistemas exatamente por suas diferenças e é este contraste que nos permite “estranhar” o nosso próprio sistema. Por isso, ve vários insights sobre nosso sistema de justiça criminal bastante originais. Posteriormente. acabei por criar, juntamente com meus colegas, linhas de pesquisa em cursos de pós-graduação em Antropologia e em Direito, que resultaram na formação de gerações de pesquisadores que se envolveram com o estudo etnográfico das práticas jurídicas no Brasil e no exterior. No Brasil, principalmente, a etnografia é a única forma de identificar, conhecer e explicitar as práticas dos sistemas de justiça. Isso porque a doutrina jurídica está voltada para definições do “dever ser”, e não do que atualmente acontece. E as leis, como sabemos, não têm interpretações consensuais sobre sua aplicação, havendo mesmo duas ideias de igualdade jurídica vigentes em nosso sistema: uma, escrita em nossa Constuição, que reza que “todos são iguais perante a lei”, isto é, os diferentes cidadãos têm os mesmos direitos; este disposivo, no entanto, é aplicado segundo a regra práca de que “a regra da igualdade é quinhoar de desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”. De acordo com esta regra práca, só os semelhantes têm os mesmo direitos e os diferentes têm direitos desiguais. Isso naturaliza a aplicação desigual, não uniforme da lei, a casos semelhantes, pois ela frequentemente varia de acordo com o status dos envolvidos e não de acordo com os atos comedos. Pesquisas deste po contribuem para um conhecimento mais acurado das formas de aplicação de nosso direito e podem, eventualmente, levar a sua melhor compreensão e aperfeiçoamento. Afinal, não se pode melhorar o que não se conhece...

Este esforço culminou na aprovação de um projeto, em 2009, que criou o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br). Hoje, 13 anos depois, continuamos a pertencer a este seleto grupo de INCTs, centros de excelência na realização de pesquisas, formação de quadros e transferência dos produtos das pesquisas para a sociedade. São ao todo 104 INCTs, em todas as áreas do conhecimento, que foram financiados para continuar trabalhando nas fronteiras da Ciência, Tecnologia e Inovação. O nosso INCT-InEAC hoje está presente em 6 unidades da federação e em sete países, além do Brasil, onde mais de 100 pesquisadores e mais de 200 pesquisadores em formação na graduação, no mestrado e no doutorado das áreas de antropologia, sociologia, ciência políca, história, comunicação, direito e psicologia, realizam pesquisas de caráter etnográfico sobre o sistema de justiça e sobre seus efeitos nas sociedades. Por meio dele, criamos um curso de graduação em segurança pública na UFF (presencial); um curso de tecnólogo em segurança pública (a distância, via convênio UFF/CEDERJ) destinado pelo MEC a profissionais de segurança pública; e um curso de mestrado acadêmico em Justiça e Segurança, todos reunidos em uma Unidade de Ensino, o Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (IAC/UFF), que tem o mesmo nome da rede internacional. Desta maneira, estamos transferindo o conhecimento produto das pesquisas de excelência realizadas para o público interessado. O INCT-InEAC, além de nosso site acima mencionado, também tem programas de divulgação e educação cienfica na área de administração de conflitos através de nossos canais no Youtube, Instagram, Facebook e Twier . Também publicamos, além de argos cienficos,coleções de livros com dissertações, teses e coletâneas realizadas por pesquisadores do InEAC. Uma dessas Coleções, intulada “Conflitos, Direitos e Sociedade”, publicada pela Editora Autografia, tem já 56 tulos publicados, que estão disponíveis no site da editora, inclusive em forma de e-book.

Para o senhor, qual a importância da perícia oficial para a segurança pública?

A perícia oficial pode ter importância crítica para a elucidação de eventos, desde que seja bem-feita, com padrões de qualidade contemporâneos e seja considerada pelos demais agentes da segurança pública e da justiça criminal com o respeito e o valor que merece. Só realizar a perícia não é suficiente para que ela produza efeitos, ela precisa ter legitimidade junto ao sistema de justiça criminal para produzir efeitos consistentes com seus resultados. No Brasil, historicamente, existe um princípio, do “livre convencimento movado do juiz”, que lhe confere poder, inclusive, de desconsiderar os resultados da perícia. Por outro lado, o próprio Direito brasileiro, não sendo uma ciência social aplicada (embora assim seja classificado pelas agências de fomento), tem relações ambíguas com o conhecimento cienfico, com frequência instrumentalizando-o de acordo com os interesses mais imediatos dos agentes e operadores. É preciso muito trabalho ainda para que este quadro se reverta. Esperamos, sinceramente, juntamente com os peritos, contribuir para o aperfeiçoamento dos recursos materiais e humanos encarregados da produção, circulação e consumo dos produtos periciais para fortalecimento e maior eficácia de suas atividades .

 

 

 

 

Ler 610 vezes Última modificação em Quarta, 21 Dezembro 2022 12:03
Claúdio Salles

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