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Quinta, 01 Julho 2021 22:07

As guerras contra a desinformação

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O site do INCT/INEAC reproduz aqui o artigo "As guerras contra a desinformação". da professora e pesquisadora Thaiane de Oliveira (IACS/UFF e INCT/INEAC), publicado no Blog Ciência e Matemática do O GLOBO - https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/guerras-contra-desinformacao.html

As guerras contra a desinformação

Thaiane Moreira de Oliveira 

Sob uma agenda de guerra iminente, para combater um vírus tão letal quanto o SARS-COV, a chamada pandemia informacional deu mais visibilidade à urgência de se enfrentar a desinformação e as fake news, sobretudo relacionadas à ciência. O que é essa agenda de guerra e o que esse imaginário bélico-informacional representa para um momento no qual o sistema democrático está fragilizado devido a uma crise política e institucional que assola o país?

 

A caçada pela intencionalidade e a responsabilização das mídias sociais

Desde 2018, dezenas de projetos de lei têm tramitado para enfrentar esse inimigo oculto, que é apresentado como um organismo tão perigoso à democracia que se justifica a suspensão de qualquer racionalidade em nome de uma guerra contra a desinformação. Em sua maioria, estes inúmeros projetos propõem a mudança do Marco Civil da Internet, que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. De pensamento crítico sobre a informação através da educação e transparência, proposto pela deputada Joice Hasselmann (PSL) a projetos mais radicais que enquadram a produção e disseminação da informação a crime contra a segurança nacional, como o do deputado Francisco Floriano (DEM-RJ), o que tramita tem como um entendimento básico de que a desinformação é uma informação intencionalmente produzida para enganar. No entanto, em uma sociedade tradicionalmente inquisitorial como a nossa, como “perseguir” a intencionalidade sem ferir direitos e preceitos democráticos?

No Senado, o Projeto de Lei das Fake News (PL 2.630/2020) prevê multas e penalidades criminais para quem divulga e compartilha notícias falsas e pressiona plataformas digitais a adotar medidas mais rígidas contra ataques cibernéticos, desinformação, notícias falsas e incitação ao ódio. Já no Supremo Tribunal Federal (STF), há uma pressão – e consequentemente a responsabilização – sobre as plataformas digitais para a retirada de conteúdos potencialmente enganosos e retirada de perfis que divulgam notícias falsas. Em maio de 2021, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto o PL 6764/02, que revoga a Lei de Segurança Nacional e passa a considerar crime o disparo em massa de mensagens consideradas como “fake news”, por aplicativos como o WhatsApp, durante o período eleitoral. Quem for responsabilizado pela prática poderá ficar em reclusão por um a cinco anos, além de ter que pagar uma multa. O uso desmedido da Lei de Segurança Nacional, que tem crescido nos últimos dois anos, tem provocado intenso debate, sobretudo em função da instrumentalização recorrente a ela para decisões jurídicas envolvendo o direito à informação e a intimidação contra vozes críticas ao governo, como o ocorrido contra o professor de ensino médio, Arquidones Bittes, em Goiás, em maio de 2021.

Em meio a intensas disputas e desdobramentos em torno da PL das Fake News, e sob um importante debate sobre o papel das plataformas de redes sociais na disseminação de desinformação, observamos uma transferência da responsabilidade do estado para regular os meios de comunicação, entre eles os digitais, para empresas de mídias sociais. O texto aprovado da PL das Fake News, por exemplo, obriga as plataformas a excluírem as contas falsas, criadas ou usadas com o propósito de assumir ou simular identidade de terceiros para enganar o público. Ao passo que essa obrigação é dada, atribui-se também a essas plataformas a possibilidade de ter autonomia no processo de decisão sobre a retirada de conteúdos e de perfis que elas consideram danosos ou criminosos. O texto também prevê que dados de mensagens em aplicativos de mensagens instantâneas, como Whatsapp e Telegram, sejam armazenados por até 90 dias, podendo violar a privacidade do usuário. Dando esta autonomia a estas empresas, quem vai regular e auditar o conteúdo retirado por elas e garantir a privacidade do usuário?

Legitimamos velhas e novas autoridades epistêmicas

A suspensão da racionalidade em nome de uma guerra híbrida talvez seja a primeira e mais imediata tirania neste campo de disputa em torno da desinformação. Mas há outras. A segunda tirania é a legitimação de certas autoridades como promotoras da verdade, que se apresentam como neutras, transparentes, dignas de confiança. De um lado, o jornalismo se apresenta como uma autoridade com compromisso com a verdade, ignorando toda uma crítica acadêmica e de parte da população sobre enquadramentos e silenciamentos na cobertura de acontecimentos históricos, como as manifestações de 29 de maio contra o governo federal. Inúmeros editoriais e artigos de opinião têm sido publicados, exaltando a importância cívica da profissão, sobretudo em um contexto de infodemia, posicionando seus profissionais como figuras essenciais na linha de frente contra a desinformação. Esta reafirmação de autoridade da verdade feita pelo jornalismo é uma forma de autopreservação em um momento de crise epistêmica, em que instituições que produzem ou disseminam conhecimento e informação têm sido contestadas e atacadas em um contexto de ascensão de mitos populistas, que em nome do desejo do “povo” defendem projetos individuais e autoritários.

Uma das ferramentas para garantir a sua a pretensa objetividade, neutralidade e imparcialidade, agências de checagem de fatos são apoiadas pelas próprias empresas jornalísticas que segmentam a cauda longa do jornalismo através de mecanismos classificatórios sobre o que é verdade ou mentira. Agências de checagem de fatos se legitimam como uma nova autoridade, como novos árbitros da verdade, definindo o debate público do que eles consideram o que é fato, meio fato ou inverdade. Nesse ecossistema da verdade, fundações internacionais e a mídia tradicional se autoproclamam como garantidora do selo de qualidade do que eles consideram dignos de sua credibilidade.

Legitimar o jornalismo e suas ferramentas de classificação da verdade, é fechar os olhos para uma atuação da mídia que continua a insistir que vivemos em um mundo de igual equivalência entre dois polos extremos, numa “escolha muito difícil” entre a morte e a negação de princípios democráticos de um lado, e transferência de renda, saúde e educação pública de outro. É retirar do debate público toda uma crítica à mídia e silenciar décadas de pensamento científico do campo da comunicação em nome de ideais de neutralidade, imparcialidade e objetividade. Ideais que na prática estão restritos apenas aos manuais de jornalismo, empoeirados nas prateleiras de quem ainda preza por seu emprego, em um país em que barcaças de demissão e recorde de desemprego nessa área são uma realidade.

Aos poucos, sob a urgência de combater um inimigo invisível, práticas punitivistas vão se consolidando, abrindo as portas para que medidas autoritárias e antidemocráticas ganhem espaço no campo político e jurídico. Sob a mesma agenda, autoridades epistêmicas se consolidam enquanto buscamos culpar o “outro”, que não é jornalista, o “outro” que não é democrático, o “outro” que não é conterrâneo, (especialmente os “russos”) como causa da ruptura de uma ordem informacional. Lenio Streck, em um artigo de opinião no Conjur, pergunta: há como conter o gozo das redes sem ser tirânico? Esta pergunta, tão atual e necessária, talvez seja um dos grandes dilemas que precisemos encarar quando o que se está em pauta é um imaginário bélico-informacional de uma guerra híbrida, que suspende qualquer racionalidade e pode ameaçar a democracia, trazendo para o debate leis retrógradas que enquadram vozes críticas como ameaça à segurança nacional e ao terrorismo informacional.

Thaiane Moreira de Oliveira é pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br)

 

 

 

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Claúdio Salles

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