“Entre a obra e os fatos: os limites da defesa de Boaventura por Marilena Chauí” – Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

23 | 08 | 2025

Em seu artigo “Contra a calúnia”, publicado em 21 de agosto de 2025, Marilena Chauí constrói uma defesa apaixonada de Boaventura de Sousa Santos contra as denúncias de assédio sexual e moral, mas faz isso sem se ater aos fatos. Sua estratégia é recorrer à trajetória intelectual e política do sociólogo, exaltando sua importância acadêmica, sua militância em defesa da democracia e sua generosidade pessoal, para concluir que seria “irrisória” a suposição de que alguém de tal envergadura pudesse cometer os atos que lhe são atribuídos.

O problema é que reputação, obra e prestígio não são argumentos capazes de substituir a análise das denúncias em si. Chauí transforma conceitos como “ecologia dos saberes” em escudo, e sua amizade pessoal com Boaventura em testemunho de caráter, sem apresentar qualquer elemento que dialogue com o conteúdo das acusações. Ao fazê-lo, desloca o debate do campo dos fatos para o da veneração, como se a relevância intelectual pudesse servir de absolvição prévia.

Mais grave ainda é que, ao chamar as denunciantes de caluniadoras, Chauí inverte a lógica da proteção às vítimas, silenciando vozes que deveriam ser ouvidas com responsabilidade e seriedade. Sua retórica, em vez de fortalecer ideais feministas, acaba por fragilizá-los, pois transforma a defesa de um acusado em ataque à credibilidade de mulheres que denunciam.

A defesa de Chauí, portanto, não se sustenta em provas ou apurações, mas em uma hagiografia intelectual que serve apenas para encobrir a gravidade das acusações. Se a presunção de inocência deve ser preservada, isso não significa reduzir denúncias legítimas a “calúnias” apenas porque atingem alguém consagrado.

Em situações como esta, é essencial que o esclarecimento dos fatos ocorra com perspectiva de gênero, reconhecendo que um conjunto de depoimentos coerentes e consistentes deve ser valorado de forma adequada, para que não sejam descredibilizados frente ao peso de reputações consagradas. O podcast O Caso Boaventura (Spotify) ajuda a compreender melhor as dimensões do problema e as iniciativas que vêm sendo tomadas no sistema universitário português para prevenir situações semelhantes, criando protocolos de denúncia, redes de acolhimento e mecanismos institucionais de responsabilização. Essas iniciativas é que merecem o apoio de figuras de destaque no mundo acadêmico, para que casos de assédio e abuso não sejam julgados com base em amizades pessoais e lealdades ideológicas, mas enfrentados com seriedade, responsabilidade institucional e verdadeiro engajamento com a emancipação humana contra toda forma de opressão.

É igualmente fundamental garantir que os mecanismos institucionais e judiciais estejam preparados para lidar com denúncias dessa natureza, de modo que elas não sejam resolvidas por compadrio ou por julgamentos ad hominem — isto é, baseados na imagem pública, nos vínculos pessoais ou na autoridade simbólica do acusado, e não na análise objetiva dos fatos. O devido processo e a presunção de inocência devem ser assegurados, mas em condições que permitam a apuração efetiva a partir do depoimento das vítimas e das demais provas coletadas, garantindo que não ocorra a revitimação das denunciantes, seja nas instâncias judiciais, seja na esfera pública. É preciso enfrentar a prática, historicamente recorrente e agora amplificada pela sociedade informacional, em que homens acusados de delitos contra mulheres utilizam estratégias de descredibilização nas redes sociais e na mídia, transformando-as em arenas tanto de cancelamentos quanto de ataques que enfraquecem denúncias graves, legítimas e penalmente relevantes.

Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo é pesquisador vinculado ao INCT INEAC . Bolsista de Produtividade em Pesquisa nível 1C do CNPq, Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFRGS (1991), Especialista em Análise Social da Violência e Segurança Pública (1996), Mestre (1999) e Doutor (2003) em Sociologia pela UFRGS, com estágios de pós-doutorado em Criminologia na Universitat Pompeu Fabra (2009), e na Universidade de Ottawa (2013). Atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, atuando nos Programas de Pós-Graduação em Ciências Criminais e em Ciências Sociais. 

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