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Segunda, 05 Outubro 2020 23:09

Polícia e racismo: há solução?

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O site do INCT INEAC reproduz aqui o artigo "Polícia e racismo: há solução ?", escrito pela socióloga e pesquisadora do Ineac Jacqueline Sinhoretto (UFSCAR) e publicado na coluna Ciência e Matemática de O Globo  - https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/policia-e-racismo-ha-solucao.html

Polícia e racismo: há solução?


Em 2020, o aumento da violência policial foi registrado em estatística e filmagens, e foi objeto de uma decisão do Supremo Tribunal Federal que proibiu o estado do Rio de Janeiro de realizar operações em favelas durante a quarentena da pandemia. O tema do racismo na ação policial se impôs ao debate público.

Uma equipe de pesquisa trabalhou, durante três anos, dados sobre desigualdades raciais produzidas em abordagens policiais, nas prisões em flagrante e nas mortes cometidas em ações das polícias em São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, entre 2008 e 2017. Os resultados da pesquisa Policiamento Ostensivo e Relações Raciais são contundentes.
Os policiais associam pessoas negras a atitudes “suspeitas”. A proporção de prisões em flagrante de pessoas negras em relação às brancas chega a ser até quatro vezes maior (ponderando o número de brancos e negros na população). As pessoas negras são alvo mais frequente de uso letal da força. A depender do ano e do distrito, a chance matemática de uma pessoa negra ser morta pela polícia é de 3 a 7 vezes maior do que a chance de um branco receber o mesmo tratamento. Esse quadro foi obtido por meio de dados oficiais de São Paulo e Minas Gerais, pois a deficiência das estatísticas dificulta fazer o acompanhamento em todos os estados.
Em geral, o leigo interpreta esses dados como indicadores de que pessoas negras cometem mais crimes, por isso a polícia as prende e mata com maior frequência. Os dados não sustentam essa conclusão, pois os crimes mais violentos ocorrem em áreas da cidade e em horários que não são os mesmos em que as ações policiais mais violentas acontecem. Ou seja, olhando os dados, com os quais as próprias polícias executam seu planejamento, não é possível deduzir que a violência da polícia seja uma resposta necessária à violência do crime. Ela é uma decisão de ação policial sobre o nível de força que irá usar contra a atitude considerada “suspeita”. Foi isso que dezenas de policiais entrevistados explicaram aos pesquisadores sobre a prática do policiamento.
Podemos concluir que policiais são racistas porque é deles a decisão de parar uma pessoa ou de usar a força letal numa ocorrência, e que eles tomam essa decisão com uma facilidade três vezes maior quando veem uma pessoa negra? Sim e não. Os próprios policiais explicam que boa parte do seu trabalho é baseado na busca ativa de atitudes suspeitas. Quando explicam o que seriam essas atitudes, a grande maioria dos policiais descreve características corporais, de vestimenta, de gestual, de modo de andar e olhar, e até de cortar o cabelo. Dessa forma, não são atitudes impessoais que eles procuram, mas tipos físicos considerados afeitos ao crime. Dito de outra forma, o trabalho policial depende fundamentalmente de estereótipos sobre o corpo e características culturais forjadas pelo racismo.
Antes de concluir que a culpa é dos maus policiais, é preciso interrogar o que fazem as organizações policiais para evitar que esse olhar discriminatório dos profissionais da segurança reproduza o racismo da sociedade brasileira. Muito pouco. Os cursos preparatórios não discutem diretamente os efeitos perversos do uso da força letal ou da filtragem racial, que vão desde o constrangimento sistêmico das pessoas negras em sua liberdade de ir e vir, à experiência de ser vítima da brutalidade policial; da desconfiança sistemática na relação polícia-sociedade, até a impunidade de pessoas brancas que cometem crimes sem se tornarem alvo da vigilância das guarnições. Em São Paulo, por exemplo, a maioria dos processados por homicídio é de brancos – que não são geralmente considerados suspeitos.
As polícias não ensinam outros métodos de como fazer o trabalho preventivo sem que os policiais tenham que usar o olhar sobre o corpo como única base de sua decisão de intervir. Mesmo a tecnologia de informação empregada na ação policial está baseada em identificar corpos e rostos suspeitos e destacá-los da multidão. Mapas criminológicos, câmeras, tablets e celulares são apoios tecnológicos ao velho método de “reconhecer” as marcas da mente criminosa no corpo. A diferença entre o que se fazia no tempo das teorias do racismo científico é que os aparatos tecnológicos de hoje custam muito mais dinheiro aos cofres públicos.
Os policiais negros ouvidos pela pesquisa sabem que o método é discriminatório e violento. Eles contam situações em que são parados em blitzes de trânsito dirigindo os carros que seus salários podem comprar, mas que não são comuns nas camadas sociais de que são originários. Contam do receio que sentem das situações em que seus colegas em serviço podem considerar suspeito um negro dirigir um bom carro. Os policiais nascidos nas periferias também apontam o erro de achar que a roupa defina o comportamento criminoso, por se tratar da expressão cultural da juventude das periferias. Uma policial contou como se sente quando seus colegas decidem parar pessoas pela roupa que estão usando, pois aquela roupa “marcada” é a que também usam seus irmãos e primos, jovens negros das periferias.
Os policiais também afirmam o orgulho de participar de uma corporação que emprega profissionais negros e favorece sua ascensão social, por meio do concurso público. Para profissionais negros que se tornam comandantes de área, que têm a oportunidade de estudar, de participar de espaços de deliberação pública, a profissão policial foi o caminho seguro de obter respeito e melhoria de vida para sua família. Como um policial negro poderia admitir, sem mediações, que essa corporação que o acolheu e o incentivou reproduz o racismo?
Problemas complexos não têm respostas simples. Os policiais hoje são parte ativa da política do país, querem sair da posição de quem apenas cumpre ordens para participarem das decisões sobre os rumos da sociedade, com milhares de candidaturas pelo país. Assim como os policiais não são passivos diante das questões sociais, a sociedade tem o direito de participar das decisões que afetam o direito à vida segura, a igualdade de tratamento e o combate aos abusos da ação policial.
O STF reconheceu a urgência e a gravidade da violência policial, cujas consequências são cruéis e perversas para toda a população, em especial negra. Policiais e polícias têm um papel diante da injustiça histórica que produz o racismo. É a hora de discutirmos a sério quais são os objetivos das polícias e os seus limites, seus custos e seus resultados. É necessário debater abertamente como eliminar a filtragem racial e democratizar os padrões de policiamento. O fato de o racismo ser sistêmico obriga a todos nós da geração presente ao compromisso de derrotá-lo.


Para conhecer a pesquisa acesse: www.gevac.ufscar.br
Jacqueline Sinhoretto, socióloga, professora da UFSCar, pesquisadora do INCT-InEAC e do CNPq

 

 

 

 

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